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A rádio comunitária da Bororó: experiência extinta

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CAPÍTULO III Apropriação da comunicação dos brancos pelos Indígenas de Dourados: rádio, fotografia, cinema e internet

1. A rádio comunitária da Bororó: experiência extinta

Embora a rádio comunitária da Bororó se configure como uma experiência já extinta de comunicação entre os indígenas, buscamos apresentá- la por ser esta uma iniciativa de comunicação popular que se utiliza de formas não-tradicionais da comunicação indígena para garantir espaço de interlocução para a comunidade.

A rádio FM 107,1 Awaete Mbarete, que de acordo com Silva (2004, p.1) vem do guarani “Índio nato tem poder”, funcionou de setembro de 2002 a agosto de 2004. Surgiu como instrumento emergencial para a prevenção de doenças e valorização da cultura indígena na região e extinguiu-se devido as mesmas burocracias que acometem a legalização das rádios comunitárias em todo o país.

Retomando a curta duração da rádio, que como iniciativa popular também reflete a efemeridade das experiências populares de comunicação, na década de 1990, Dourados foi considerada a área indígena mais problemática do país. Esse fator se deu, segundo Silva (2004, p. 4-5)

devido ao registro de muitos casos de suicídio de jovens kaiowá, fenômeno cujas origens ainda são estudadas. A tuberculose ainda é um problema de saúde na região, principalmente entre crianças desnutridas, mas o que mais chamou a atenção das autoridades nos últimos tempos foi a incidência de casos de AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis na área.

Diante da existência dessa problemática cuja solução advém da prevenção, entre outras iniciativas, foi proposto um projeto de comunicação que desse conta do complexo contexto local.

Numa comunidade onde a religião e instituições como o casamento não são barreiras à liberdade sexual os argumentos morais não servem em campanhas de conscientização contra a disseminação de doenças. A Divisão DST-AIDS do Ministério da Saúde havia solicitado à Faculdade

de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás31 a

elaboração de um projeto de rádios para o universo indígena que, em princípio, contemplaria grupos tikuna, ianomâmi e caiapó. [...] Numa reunião em Brasília, no entanto, a equipe da Divisão DST-AIDS informou ao grupo que elaborara a proposta que possuía pouco dinheiro para a ação e queria investi-lo em rádios para a área do PI de Dourados e

da reserva terena de Campo Grande32, devido à forte incidência de DSTs

nessas regiões (SILVA, 2004, p. 5).

O grupo, segundo a mesma autora, aceitou o desafio e foi firmado um convênio entre a UFG, a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e a UNESCO/ Divisão DST- AIDS – Ministério da Saúde.

Em agosto de 2002, na escola indígena Tengatuí Marangatu, houve um grande evento para a implantação da rádio comunitária, sendo que, neste mesmo mês, de acordo com Silva (2005, p.32) “foram mobilizados diversos grupos para as várias atividades de artes e comunicação que o evento promoveu”. Dentre as oficinas destacamos o curso de Formação em Comunicação Comunitária, que para Silva (2005, p. 27), uma das monitoras das atividades, “teve como objetivo capacitar um grupo para operação do equipamento de rádio e mobilizar a comunidade para o uso da nova ferramenta de comunicação”.

No jornal VOZ do ÍN DIO produzido pela oficina de jornal impresso também ministrada nesse período, indígenas falaram sobre a Awaete Mbarete.

A rádio Comunitária instalada na reserva indígena de Dourados tem o objetivo de transmitir mensagens sobre as questões indígenas vividas na região, como por exemplo, a situação da saúde, da educação, da cultura e para diminuir problemas como a violência, o alcoolismo, drogas e exploração de crianças.[...] O estúdio da Rádio Awaete Mbarete 107,1 FM (que quer dizer ‘índio nato tem força’) estará concluído em meados do mês de novembro na aldeia Bororó. A rádio já está em funcionamento e por enquanto ela está localizada na escola Tengatuí Marangatu na aldeia Jaguapirú. O alcance da onda da rádio chega a um raio de 20 km de distância, isso significa que não só os moradores da reserva estarão ouvindo, mas também moradores de distritos vizinhos como Itaum, Panambi, São Pedro, Picadinha e outros (Oliveira; Cabreira; Veron; Franco apud SILVA, 2005, p. 32-33).

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Essa solicitação, feita por intermédio de Arlete Silveira da Silva, se direcionava especificamente ao Núcleo de Integração com a Sociedade, mais conhecido como Núcleo de Comunicação Comunitária, da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás, então coordenado pelo professor Nilton José dos Reis Rocha.

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Neste trabalho não trato do processo de construção da emissora de rádio na aldeia de Campo Grande, que aconteceu concomitantemente à construção em Dourados. Me restrinjo aqui ao estudo dessa segunda experiência.

Desde o início da implantação da rádio, havia, segundo a autora uma promessa da prefeitura de construção de uma sede para a rádio, dentro da própria aldeia. Feito jamais realizado.

Após seu nascimento na Tengatuí Marangatu, a Awaete Mbarete 107,1 foi alojada no “Clube das mães”, um local criado em 1992 com auxílio da prefeitura para oferecer oficinas em que as mulheres aprendem alternativas para a geração de rendas. De acordo com Silva (2005, p.33-34), uma senhora guarani, D. Valmira, que sempre foi a responsável pela sede do clube, morava nos fundos com uma filha, uma sobrinha e um casal de netos gêmeos.

D. Valmira contou que, depois do curso na Escola Tengatui Marangatu, S. Sebastião conversou com ela a respeito de colocar a rádio num espaço desocupado do Clube. Desde o início, ela não teria visto problema nisso. Na sala da frente da sede montaram os equipamentos. Ela conta que a nova vizinha não a incomodou durante sua estada por lá. “Fazia gosto ver aquele monte de gente interessada, participando”, conta a senhora. Com o movimento na casa, ela pediu que o caseiro do espaço construísse um cercado no seu quintal para que as pessoas pudessem guardar com segurança suas bicicletas enquanto faziam programas.

A guarani contou também para a autora como o movimento lá começava cedo. Destacou senhor Ambrósio33, “que chegava todo dia 5h da manhã para fazer o primeiro programa, o cacique kaiowá Getúlio, que chegava de trator, e o terena Wilson Matos34” (SILVA, 2005, p.34).

Foi este último que começou a pressionar o senhor Sebastião para levar a rádio para a sede da Funai, pois o Clube das mães localizava -se bem na entrada da Bororó, perto da Jaguapiru, e teria sido por medo de um saque noturno ao Clube das Mães que Sebastião decidiu retirar a rádio daquele espaço. Em sua monografia, porém, Marília Silva destaca que outros motivos foram levantados durante as entrevistas, entre eles o incômodo da falta

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Na bibliografia em que nos embasamos, a autora chama o indígena por S. Ambrósio (ou Seu Ambrósio). Optamos por tratá-lo como senhor, exceto quando a citação é direta.

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Wilson Matos é um Terena mestiço, bacharel em Direito. Foi por muitos anos radialista em rádios

comerciais das cidades de Dourados e Itaporã, vizinhas da área indígena, e se declara um amante de rádio. Foi Coordenado r do Núcleo da Funai em Dourados, e é muito mal visto pelos Kaiowa e Ñandeva, bem como por agentes que trabalham na área, por usar o conhecimento que tem para se beneficiar em detrimento dos outros grupos indígenas (SILVA, 2005, p.34).

de privacidade a que dona Valmira estava submetida e brigas pessoais entre Sebastião e seus familiares contra dona Valmira (SILVA, 2005, p.34).

O fato é que a mudança de sede precisava ser feita. Foi neste momento que Sebastião solicitou a Fábio que acolhesse a rádio, por morar sozinho. A situação de certa forma se alterou no período em que a rádio esteve lá e alguns problemas relacionados às responsabilidade para com a rádio, como energia e segurança, decepcionaram o novo “guardião da sede”.

Durante a entrevista, [Fábio] se mostrou bem indisposto a conversar. Não demonstrava interesse em falar sobre a rádio e, no pouco que falou, tinha um ar decepcionado. Contou, com certo rancor, de dificuldades com o S. Sebastião, que além de chegar sempre bêbado em sua casa, deixara para ele pagar uma conta de energia com os gastos dos dois meses em que a rádio ficou por lá. Essa questão dos gastos com energia foi problemática em todos os lugares por onde passou a emissora. O jovem conta que há uma rádio em Buriti, numa aldeia terena, que funciona melhor, é bem organizada, mas não vê perspectivas para a Awaete Mbarete funcionar bem (SILVA, 2005, p.35).

Entrevistando outros indígenas sobre o episódio, a autora tomou ciência de um episódio ocorrido na rádio que não fora relatado por Fábio.

Enquanto a rádio estava em sua casa, a mesa de som, parte do equipamento, foi roubada. Depois disso, o pessoal da Associação teria ido até lá, e levado os equipamentos para a casa de Sebastião. Algumas pessoas suspeitam de Wilson Matos, pelas ameaças que disseram que vinham dele a respeito de tomar a rádio da Associação, mas o caso não foi solucionado. Depois desse episódio, outras pessoas da Associação Beneficente passaram a acompanhar mais de perto o trabalho da rádio, para que ela ficasse mais protegida. S. Ambrósio, mais tarde, teria conseguido uma mesa de som emprestada, que depois foi doada para a Awaete . Assim, partiu-se em busca de uma nova casa para colocá-la no ar novamente (SILVA, 2005, p.36).

A alteração de sede ainda passaria por outras três casas, a de Pedrina Machado, Waldemar Fernandes e Epitácio de Souza.

Conta Silva (2005, p.36-37) que foi na casa de Pedrina que a rádio permaneceu por mais tempo: de setembro de 2002 a agosto de 2003. Acompanhemos dados de um depoimento retirado de sua monografia:

Pedrina conta que nessa época a programação começava às 4h da manhã e parava 9h da noite, todos os dias, e era dividida em programas de 2h cada. As pessoas da comunidade iam até o estúdio sempre que tinham um aviso pra dar ou quando queriam se informar sobre algo que souberam que ia acontecer. A casa era freqüentada por gente de toda idade, homens e mulheres.

Havia programas bem ouvidos, outros não, e ela conta que isso dependia de serem em horários em que a maioria das pessoas está trabalhando ou em casa. O primeiro programa era do terena Celso Machado, que tocava só música sertaneja e era bastante ouvido. Tinha um grupo de adolescentes terena de Jaguapiru que ficava lá o dia inteiro, até sem almoçar, mas só selecionavam músicas e passavam vinhetas, quase não usavam o microfone.

Havia quem fizesse locução nas línguas kaiowá e guarani e usassem músicas tradicionais, mas a maioria era só em português. O programa que Tainá fazia, com sua irmã e seu irmão, era “de rock, mesmo”, mas tocava qualquer música que não fosse sertaneja, como Paralamas, Five, Red Hot Chili Peppers. Sua mãe conta que o programa era bastante ouvido, que ela recebia até cartinhas de ouvintes.

A indígena conta ainda que a comunidade passou a questionar o fato de que sem sede própria a rádio poderia ser tirada do ar, e ainda, as más condições de armazenamento dos equipamentos, de ventilação etc, que faziam com que a CPU do computador necessitasse constantemente de conserto. Quando estragou em agosto de 2003 e foi levada à prefeitura para os reparos necessários, já não voltou.

Segundo Nivaldo, da Associação, a rádio foi tirada da casa de Pedrina porque o grupo não estava conseguindo coordenar o trabalho ali. Pedrina conta que Sebastião queria que apenas pessoas autorizadas por ele participassem da rádio, e que ele chegou a expulsar pessoas do estúdio. Uma pessoa contou que, quando o pessoal da associação levou embora a rádio de Pedrina, ela e Wilson chamaram a Polícia acusando o grupo de roubo, mas depois de um depoimento, o pessoal da Associação foi liberado.

Quando levou os equipamentos de lá, S. Sebastião disse que e emissora não iria mais funcionar até que tivesse uma sede. Dali a um tempo, uma nova casa a recebia, marcando a volta da rádio para Bororó (SILVA, 2005, p. 38).

E foi à casa de Waldemar Fernandes que a rádio voltou, dada a difícil situação da falta de sede para o veículo. Evangélico porém, Waldemar não aceitava bebidas alcoólicas e afirmou que as pessoas bebiam enquanto usavam a rádio. Não esclarecido explicitamente

o fato de mudar a rádio de casa, destaca-se que o último lugar a abrigar a rádio antes de sua extinção foi a casa de Epitácio de Souza , cunhado do senhor Sebastião.

Nas conversas que a autora teve com seu Epitácio (Silva, 2005, p.39), ele lhe mostrou duas fotos de sua filha: uma em seu aniversário de 16 anos e outra em seu velório poucos dias após a última transmissão da rádio, a causa da morte foi suicídio. O indígena conta que a menina apresentava o programa que abria a transmissão todas as manhãs com ele e que “aprendera muitas coisas na emissora”.

Ele não sabe se foi por causa da rádio que ela se matou, mas agora anda muito triste, pensando sobre essas coisas. Outras pessoas chegaram a dizer que a rádio não teria voltado ao ar por causa dessa morte. Sebastião conta que quando tirou a rádio do ar, a garota foi até ele dizer que estava muito triste, porque gostava muito da rádio e que se suicidou dois dias depois disso. D. Cassiana, sua esposa, diz que ela trabalhava muito bem e que não foi só ela a ficar triste (SILVA, 2005, p. 38).

Trilhar o caminho da rádio, mesmo que a partir de revisões bibliográficas, deixa claro uma trajetória de desilusões, tristeza, desentendimentos, mas ao mesmo tempo de ter movimentado a esperança e proporcionado uma experimentação de deterem o poder de informar, de se expressar, de serem ouvidos. A complexidade da organização político- estrutural de onde o veículo estava inserido, além de muito peculiar, demonstra a importância da rádio pra essa comunidade e, ao mesmo tempo, a necessidade de um melhor preparo das lideranças e da população para a manutenção de uma atividade como essa.

Logo que surgiu, a rádio veio representando esperança para as entidades que lutam por direitos humanos e democratização da comunicação. Entre elas, citamos a União Cristã Brasileira de Comunicação Social (UCBC): “A Rádio Awaete Mbarete, uma das primeiras rádios comunitárias indígenas do país, leva à concretização as idéias de democratizar a comunicação, tão fundamentais para o desenvolvimento social por todo país” (DUARTE, [s/d], p.1). As circunstâncias em que o surgimento e o fechamento da rádio inscrevem, que de toda forma já havia sido ameaçada pela ANATEL por supostamente atrapalhar o funcionamento do aeroporto de Dourados, devem portanto representar a importância de que este veículo faça parte do dia-a-dia da aldeia, a favor do desenvolvimento social e do direito à comunicação para os povos indígenas.

Garantir a concessão à rádio, a construção da sede apropriada, como prometido pela prefeitura, e uma capacitação mais efetiva da comunidade para que entenda quais os objetivos e como se dá o funcionamento de uma rádio comunitária, são passos fundamentais para que a experiência seja positiva e realmente desenvolva ações transformadoras dos sujeitos e da comunidade envolvida no processo.

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