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Oficinas de fotografias

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CAPÍTULO III Apropriação da comunicação dos brancos pelos Indígenas de Dourados: rádio, fotografia, cinema e internet

3. Oficinas de fotografias

Um dos maiores troféus apresentados pelos jovens da AJI tem sido o livro Nossos olhares, um ensaio fotográfico produzido por seis indígenas, três guarani-ñandeva, dois guarani-kaiowá e um terena, cujo objetivo descrito na introdução é o de “apresentar como os jovens da Reserva de Dourados, tida como a mais populosa do Brasil, se relacionam com seu lugar e, ao mesmo tempo, constroem um diálogo cultural pleno de tensão com a cidade de Dourados, a segunda maior cidade do Mato Grosso do Sul”.

Orientados em uma oficina de fotografia pelo fotógrafo italiano Andréa Ruggeri, abordaram temáticas como “paisagem”, “nosso povo”, “adquirindo saberes”, “casa da aldeia”, “meu olhar” e “festas e trabalhos”, e, dessa forma, retrataram uma realidade pouco vista até então, que vai do interior de casas e quartos até flagrantes como o de um cavalo arredio empinando uma carroça que levava uma família, incluindo três crianças.

O trabalho com a fotografia também era meta da ONG, representada por Maria de Lourdes Beldi de Alcântara. Ela conta40 que quando chegou em Dourados em 1999, carregava uma máquina Polaroid41 e na tentativa de manter contato com os indígenas e ganhar a confiança deles, tirava fotos deles e da aldeia e os entregava.

Eu tirava fotografias e dava pra eles. Eles nunca tiveram fotografias de volta, as pessoas tiravam e nunca voltavam, então eles começaram a pegar as fotografias e guardar, então a gente fez um varal de fotografias na casa da Zélia. Teve uma menina que era muito pequena, e eu não posso falar o nome, que uma vez olhou a foto e falou assim, Lou eu não sou tão feia assim né? Eles não se enxergavam, então foi a hora que eu percebi: a imagem traz auto-estima na hora. Foi pura sorte, não tinha teoria nenhuma. Daí que eu descobri que sem a imagem a gente não ia conseguir chegar a lugar nenhum, que a imagem trouxe pra eles uma “puta” auto-estima, porque não adianta dar coisa escrita, não adianta de nada. [É preciso] Eles se verem, eles fazerem a própria imagem.

Trabalhar com imagem era então, a partir dessa experiência ocasional, uma alternativa viável pra devolver a auto -estima aos jovens não só no fato de se verem representados, mas de garantir- lhes a possibilidade de mostrar como eles enxergam o seu entorno, como eles se enxergam, como enxergam o outro. Sem a tecnologia da máquina digital, porém, os custos eram altíssimos e inviabilizavam investimentos maiores.

Demos o primeiro curso de fotografia com máquina Kodak. E pra revelar? E o custo que teve tudo isso? E pra devolver no mesmo dia teve que fazer um acordo. Então teve toda uma logística que era então. Na verdade, eu desde o começo queria trabalhar com imagem mas era muito caro. O filme da Polaroid era caríssimo e eu gastava uns 50 a 100 quando vinha pra aldeia então eu ficava falida, entendeu. Eu comprei umas cinco máquinas e deixava eles tirando de Polaroid.

40 Em entrevista concedida a autora no dia 19 de janeiro de 2008 41

Findada a primeira oficina com o professor Ruggeri, os depoimentos dos jovens publicados no ensaio fotográfico registram, desta vez com palavras, como foi a experiência de ser fotógrafo. Ana Cláudia de Souza, guarani-ñandeva, 20 anos, assim descreve:

Os jovens da AJI que estavam participando da oficina de fotografia estão hoje finalizando o curso.

Eu gostei muito. No começo, achei um pouco complicado, porque a câmera fotográfica é muito delicada e exige muito cuidado. Mas aos poucos fui aprendendo, então ficou mais fácil.

Tirei muitas fotos sobre o tema que escolhi, “Paisagem”, porque gosto muito de apreciar as maravilhas da natureza.

Tenho como objetivo divulgar e mostrar as partes mais lindas da aldeia para o mundo todo. Na nossa aldeia tem tudo – violência, morte, doenças -, e por isso as pessoas nos julgam. Eles nem sequer se interessam em ver a realidade. Quero fazê-los se interessar para que venham ver a realidade da nossa aldeia.

Espero participar de outras oficinas que a AJI oferecer (SOUZA, A., 2007, p. 10).

Antes de apresentarem as suas fotos, cada jovem registrou sua experiência e seus objetivos ao ligarem a câmera fotográfica. Em seus relatos, explicitaram, inclusive, problemas com os quais lidam no dia-a-dia, alcoolismo, miséria, violência. Cada um demonstrando o que mais lhe afligia, o que mais lhe parecia importante trazer à sociedade não-indígena. No caso de Ernesto Raulio Gonçalves, 18 anos, kaiowá, o ensaio que apresentou algumas moradias da aldeia também se vestiu de cunho político, criticando a ação do governo em que nem todos da aldeia ganharam casa de alvenaria.

Olhar de formiga. Eu faço assim. Sabe porque eu quero tirar fotos assim, com olhar de formiga? Porque quero ser uma pequena pessoa para dar um passeio pela terra inteira.

Também gosto de tirar umas fotos de modelo porque gosto de ver as meninas na moda. Gosto de tirar as fotos das meninas mais lindas do palco, por isso tirei foto de modelo e das minhas amigas, da minha irmã e da revista, porque tinha uma foto de moda. Também por isso tirei dos bêbados, pois é importante para mim. Lá na aldeia os homens não param de tomar pinga. Das moradias, tirei fotos porque quero escrever um texto para o jornal da AJI e mostrar que algumas pessoas ganharam casa e

outras não ganharam casa (GONÇALVES, E., 2007, p.20).

Outro ponto a se destacar é a necessidade de representação que os próprios fotógrafos sentem, sendo também fotografados pelos colegas como forma de se sentirem

parte da aldeia. “Tirei fotos minhas, mesmo, porque eu queria sair nas fotos”, explica o kaiowá.

O fato de serem eles os contadores da própria aldeia e de seu povo pela fotografia ficou registrado pela ñandeva Graciela de Souza, 21 anos.

Em se tratando de pesquisa antropológica e trabalho de campo e outras formas que utilizam para definir o meu povo posso dizer que é uma tática relevante uma vez que esta seja utilizada para fins úteis a causa do povo indígena. Como seria vista essa situação se esse povo fosse os analisadores e pesquisadores dessa questão, é o que a AJI – Ação dos Jovens Indígenas está fazendo com a oficina de fotografia, proporcionando novos olhares (SOUZA, G., 2007b, p.48).

Dentre os pontos positivos da oficina, que segundo a indígena começou com noções básicas de como utilizar a máquina digital, depois se aprofundou um pouco mais sobre algumas técnicas e dicas de como obter uma boa imagem, algo importante na experiência foi a troca entre professor e alunos, pois, “ao mesmo tempo em que se aprende, se ensina noções de convivência, onde o outro já não é desconhecido (2007, p.48).

Graciela que em suas fotos chama a atenção para detalhes, explorando principalmente os closes no rosto de idosos e crianças, explica ter enxergado, devido a fotografia, a riqueza de seu povo e cultura.

A partir do primeiro retrato que fiz pude perceber a tamanha riqueza que abriga minha cultura. Não pelo valor material, mas pela emoção e vida que cada retrato trazia consigo, é como se cada rosto contasse uma história, umas felizes e outras tristes.

[...]

Tantas coisas interessantes pude notar que existe na aldeia, coisas que julgava sem nexo passou a ter um valor muito especial pra mim, como um sorriso de uma criança ou a expressão triste e cansada de um idoso, percebi que são essas pequenas coisas que fazem a riqueza de um retrato (SOUZA, G., 2007b, p.48-49).

O contato com a ferramenta também possibilitou novas relações de aprendizagem tanto técnica quanto cultural, além da fixação e reconhecimento de identidades em comum. “A máquina fotográfica me proporcionou um olhar que até então desconhecia, uma visão mais aprofundada do meu povo. Passei a olhar aqueles que a gr ande “massa” os denomina de “exóticos” com mais admiração e paixão, pois tenho orgulho de fazer parte deste povo”, escreve.

A relação com os colegas de grupo e com os fotografados também trouxe novas lições aos jovens, que se questionaram quanto ao fato de usar esses novos conhecimentos de forma a devolver a seu povo algum benefício ou melhoria.

O legal da cultura indígena é que quando se trabalha em [grupos] cria-se um vínculo afetivo muito forte de amizade, o compartilhamento e a solidariedade se tornam mútuas e foi o que aconteceu com o grupo que participou da oficina, pois a fotografia também é uma forma de se conhecer e aproximar pessoas.

O conhecimento para alguns dos que participaram da oficina, trouxe um pouco de curiosidade e vontade de aprender mais, se sentiam felizes em aprender algo novo, adquirindo novos saberes ao mesmo tempo pensavam em como utilizar este recurso em favor do povo indígena. [...]

Mas enfim, eu particularmente amei a oficina de fotografia, pude adquirir um conhecimento a mais, além de usar este atrativo para dar mais vazão à nossa causa (SOUZA, G., 2007b, p.49).

O espaço destinado a cada um no livro ainda serviu, como no caso de Graciela, para tentar deixar claro que os indígenas, principalmente os jovens, não se vislumbram com a tecnologia atual como seus antepassados fizeram com os espelhinhos, segundo a história da chegada dos portugueses ao Brasil. “Ao contrário que muitos pensam, o índio já não é aquele vislumbrado e ignorante com tudo que vê. Para nós isto não é uma coisa do outro mundo, já sabíamos de sua existência, mas não tínhamos a oportunidade de ter um recurso como este em mãos” (SOUZA, G., 7007b, p.49).

Para o terena Nilcimar Morales, 26, o objetivo era com as fotos reivindicar direitos previstos pela Constituição.

Quero mostrar onde a população briga por seu direito social garantido na Constituição Federal e com isso fazer sermos vistos, não como um faz de conta de que somos donos do Brasil. Quero mostrar, por meio destas fotos, que só queremos o direito de ser dignos de receber o que foi tirado de nós.

Não queremos tudo de volta, só o necessário para suprir as nossas necessidades e vivermos sem o alto índice de morte de crianças e de

violência física (MORALES, 2007, p.90).

Pensando nos direitos do homem, o indígena que cursa o 4º ano de serviço social, retratou também os cortadores de cana, indígenas que trabalham nas usinas de álcool e que geralmente são indígenas. A crítica passa pela não viabilidade de se sustentarem dentro da

reserva. “O meu interesse pelos grupos de trabalhadores que cortam cana-de-açúcar e vivem em condições sub - humanas foi de mostrar como nós, índios, temos de buscar uma alternativa econômica fora da reserva e do município de Dourados para sobreviver ”, escreve.

Encerrando sua participação na introdução do ensaio, Morales faz uma reflexão filosófica sobre a fotografia

O principal objetivo é mostrar que um olhar um momento presente de retratos, vale, mostrando a existência dos direitos, o que nós somos e o que construímos.

Apenas em um retrato percebe-se que a mais linda atividade é a de colocar sobre o presente o passado, que pode servir e ser usado para o futuro dos indígenas. Queremos mais dignidade, queremos nossos direitos e tenho certeza de que, se continuarmos nesse caminho, chegaremos a ser escutados e vistos, e não obliterados (MORALES, 2007, p.90).

No ano de 2007, as oficinas de fotografia continuaram a acontecer, trazendo novidades aos jovens como a produção de máquinas Pinhole42 e a revelação dessas fotos pelos próprios indígenas.

Além do cinema e fotografia, o transitar pela comunicação também passa pela Internet, pro meio de um blog e por um jornal impresso, o jornal AJIndo. Quanto ao blog, analisamos agora. O jornal será enfocado no capítulo IV por ser o principal objeto de nossa análise.

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