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A reapropriação do discurso do compromisso num outro lugar de conhecer

0. Introdução e justificação do trabalho

1.2. Da redefinição de ângulos de visão à construção de quadros de (re) significação

1.2.1 A reapropriação do discurso do compromisso num outro lugar de conhecer

Iniciámos este capítulo expressando a preocupação de não ocultar o quanto a escolha da metodologia das histórias de vida radicava em contradições e dúvidas vividas pessoalmente que exigiam uma nova forma de abordagem da realidade em causa. Confessámos mesmo que dependia desta abordagem a nossa reconciliação com a imagem da comunidade local como espaço de relações humanas passíveis de uma intervenção que fosse consequente com o ideal de emancipação que legitimou o esforço colectivo de transformação das condições de vida no nosso tempo, que consagrou como valores a universalizar, a igualdade, a liberdade e a fraternidade.

Neste momento, não podemos deixar de admitir o quanto nos "pré-ocupam" as implicações sociais desta escolha de constituir a narrativa de vida de uma mulher em circunstâncias de tão grande desvantagem, como lugar de produção de testemunho

histórico, que aspira a ser validado como conhecimento científico-social.

Tememos que esta objectivação da vida possa contribuir quer para trivializar o sofrimento dos grupos que ainda são mantidos em silêncio, quer para relativizar a indignação dos que ainda resistem contra a reprodução da desigualdade estruturalmente estabelecida. Tememos também que a ênfase na subjectividade individual, valorizada pela metodologia das histórias de vida, afaste o nosso pensamento do lugar onde se institui que cada indivíduo é cidadão contemporâneo, para o situar no contexto imediato de produção e reprodução da vida social, onde o tempo e o espaço de oportunidade são criados e regulados pela acção interessada dos grupos favorecidos por uma posição social herdada e/ou adquirida pela posse de capital económico, convertido em poder simbólico.

Vista no contexto da Comunidade, como lugar de oportunidade, a vida desta mulher frustra a expectativas de mobilidade social que se imagina que tenham estado igualmente disponíveis para todos os grupos sociais. Atribuir a responsabilidade das circunstâncias que constituem esta trajectória de vida à subjectividade desta mulher, seria no mínimo injusto!

Tememos, assim, ser levadas pelo próprio processo de produção de conhecimento, a restringir a nossa análise e argumentação aos fenómenos projectados na grande escala, que são enunciados pelo discurso em primeira pessoa, o que pode omitir ou ocultar os mecanismos generativos de condições, interiorizadas como disposições sociais. Tememos vir a dispensar, por falta de pertinência analítica e argumentativa, as teorias substantivas que constróem a visibilidade e conferem inteligibilidade às relações de poder e de força materiais e simbólicas que atravessam, silenciam e reproduzem as subjectividades e a objectividade das relações sociais que as histórias de vida nos dão a conhecer, no âmbito do grupo primário e do contexto local, enquanto cenários reais que são evocados na narrativa de vida.

Tememos enfim omitir a desapropriação do poder social redistribuído pelo Estado a todos aqueles que a ele se encontram vinculados verticalmente por um conjunto de

obrigações, mas também de direitos fundamentais e inalienáveis. E a Modernidade instituiu o Estado como garantia de um mínimo ético, responsabilizando-o pela regulação da produção e redistribuição de condições materiais de existência colectiva pela sua articulação com a Comunidade e Mercado. A análise das trajectórias de vida individuais e colectivas não pode ocultar o Estado, sob pena de subestimar o poder da "gestão controlada da desigualdade e da exclusão" que lhe tem sido dado a exercer e que constitui um dos mecanismo generativos das condições, disposições e relações sociais que alimentam a dinâmica silenciosa da acumulação capitalista, inovadora de todas as formas de discriminação social.

Porém, não omitir ou ocultar estes mecanismos generativos, exige não relativizar a realidade ao ponto de prescindir de uma leitura dos fenómenos construídos em grande escala, pela narrativa de vida, que se socorra dos mapas de pequena escala com que se representam os fenómenos sociais na sua totalidade e interdependência. Sem tais mapas estamos condenados a responsabilizar os sujeitos pelas consequências da desigualdade estrutural da sociedade que se tece e é tecida por trajectórias e narrativas de vida individuais e colectivas.

Foram estas preocupações que nos tornaram especialmente sensíveis à argumentação de Morrow (1994), que propõe o realismo crítico como alternativa à abordagem empírica ou subjectivista9 que, segundo o autor, o relativismo pós-

modernista tem apresentado como únicas alternativas.

Segundo Morrow (1994), a implicação mais importante do realismo crítico é o reconhecimento de que a construção histórica não é completamente arbitrária, mas sim construída sobre propriedades fundamentais que definem a natureza dos fenómenos sociais

Considera-se que não se pode explicar a consciência humana em termos objectivos, porque a subjectividade tem na sua base a interacção social, embora haja fenómenos de

reifícação da realidade que interferem na construção do sujeito sobre si mesmo10. Estes

fenómenos operam através da linguagem que, por isso, não pode ser tomada como representação literal da realidade11.

Para o realismo crítico, a linguagem, ou seja, o significado, não tem existência independente dos contextos da sua produção, o que obriga a que o significado do conhecimento e da acção social seja procurado nos actos da fala dos sujeitos, em forma de proposições (sobre verdade, falsidade de algo) de ordens, promessas ou avisos e/ou de influência sobre o ouvinte e o seu estado mental12. Considerar que a linguagem é o

elemento primordial de conhecimento e de acção social, implica prescindir da análise causal em favor de uma abordagem interpretativa da determinação social, não estritamente subordinada ao político e ao económico. Para o realismo crítico, a ideologia é uma forma de conhecimento social produzida pela racionalização instrumental e pela burocratização que, segundo Weber, impõem limites à contradição capital-trabalho13.

No entanto, o aceitar que a interacção social é a base da subjectividade, não pode, em nenhum caso, dispensar a análise da dominação e do poder, bem como a consideração por uma psicologia profunda do self, sob pena de se explicar a realidade a partir de indicadores de superfície. Por outro lado, reconhecer que é possível apreender a racionalidade do quotidiano no discurso reflexivo dos sujeitos, não significa que se possam apreender aí todos os mecanismos geradores de constrangimentos e aberturas à acção emancipatória dos sujeitos.

Segundo Morrow e Torres (1997), os realistas "colocam o acento tónico no carácter

9 No primeiro caso a realidade social é concebida simplesmente como produto de leis invariantes e no segundo

caso como "encaixe" de eventos particulares em sistemas amplos de estruturas sociais ( cf. Morrow ; 1994:136- 138).

10 Berger e Luckman que integraram elementos da teoria da reifícação na sua teoria sobre a construção social da

realidade, baseada no interaccionismo simbólico de Mead e Blummer

11 Estas assumpção emerge segundo Morrow da reflexão no contexto da fenomenologia social, do

interaccionismo simbólico, do pragmatismo, bem como do existencialismo, do estruturalismo e do pós estruturalismo em Foucault, Bourdieu e Torraine..

este é um contributo da filosofia linguística, da teoria do significado de Austin ( Morrow : 117)

sólido e factual da realidade exterior e na capacidade que os conceitos e que o conhecimento têm de apreender e dar conta da realidade", considerando, noutro lugar, que produzir conhecimento científico como mera (re)descrição de um mundo visto como pronto e determinado, pode levar à perda de sentido da alteridade do mundo e à perda de sentido ontológico da realidade.

Daí que para o realismo crítico seja fundamental a desocultação de mecanismos generativos que não podem ser directamente apreendidos através da análise de variáveis e da sua apropriação da análise estrutural, como forma de interpretação distinta da hermenêutica tradicional, centrada na intenção e em aspectos superficiais da cultura (Morrow e Torres; 1997).

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