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A(s) cultura(s) como outro lugar de presença e de pertença societária e comunitária

0. Introdução e justificação do trabalho

1.4. Pontos de chegada sobre a possibilidade de conhecer a vida como (con)texto

2.1.5 A(s) cultura(s) como outro lugar de presença e de pertença societária e comunitária

Abordar o mundo da cultura como universo colectivo requer, mais uma vez, que se redimensione este fenómeno em termos de escala, de modo que nos permita situá-lo no

seu contexto temporal, espacial e social.

Trata-se de pensar na coexistência e sobreposição parcial de diferentes tipos de culturas que implicam relações de pertença e não pertença, não se podendo ignorar o que Smith, referido por Sousa Santos (1997), designa como "família de culturas europeias", constituído pelo direito romano, pelo humanismo renascentista, pelo racionalismo iluminista e pela democracia e também as representações mediáticas, ideológicas e uma grande diversidade de culturas locais e subculturas.

Considerar este universo simbólico complexo é aproximarmo-nos de múltiplos modelos e significados de padrões de acção de práticas sociais, de produção e consumo material e simbólico, de crenças, de ideologias, de utopias e de outras formas de conhecimento social que participam na produção do consentimento ou de resistência para uma ordem social relativamente arbitrária, que faz coexistir contraditoriamente a afirmação da igualdade de direitos de cidadania com discursos que legitimam relações de dominação.

Sabendo que a diferença de condições materiais tem expressão nas práticas sociais, nos saberes e na forma de os transmitir intergeracionalmente, como princípios de visão e de divisão social do mundo que reproduzem a vida social, importa ter em conta que o mundo social pode ser experienciado como unidade transcendente e orientada por princípios e finalidades universais, mesmo quando se trate de universos locais ou particulares em que as proposições culturais, sejam elas apropriadas como subculturas ou como contraculturas, têm poder para legitimar formal ou informalmente a autoridade das instituições locais de base comunitária ou societária e para configurar comportamentos individuais que são sancionados pelos grupos.

Para descobrir as instituições ou as configurações simbólicas que conferem orientação e significado à vida quotidiana, torna-se indispensável reconhecer a tradição e outros "regulamentos" explícitos ou implícitos que instituem padrões sociais locais, como "saberes de receita" que circulam, que são reproduzidos e recriados nos contextos imediatos e através de relações de proximidade. Dado que estes saberes são muitas vezes instrumentais, quer à naturalização, quer ao enfrentamento de problemas

da vida quotidiana, não podem ser subestimados como mediações fundamentais da organização da vida pessoal, dos grupos e das colectividades.

Tal como veremos mais adiante, a cultura do meio de origem é transmitida pelo grupo primário e é incorporada através da socialização primária que ocorre em redes sociais constituídas por relações de parentesco, de vizinhança e de pertença a grupos étnicos ou religiosos. Trata-se de uma visão do mundo dada precocemente como verdadeira e que será interiorizada por processos emocionais intensos, como fonte de identificações que são legitimadas por um conjunto de proposições descritivas e normativas acerca da natureza dos homens e da sociedade, ou seja, pela cultura de origem.

A Cultura requer aqui ser entendida como sistema simbólico público, porque está codificada em signos colectivos e porque forma uma rede de configurações de ordem superior que orienta e instiga a acção individual e colectiva. Neste sentido, a cultura deve ser apreendida no conjunto de proposições que contêm os conceitos com os quais as pessoas pensam e que se expressa nas suas emoções, na motivação e na forma dos seus comportamentos sociais individuais. No entanto, os modelos culturais não podem ser deduzidos destes comportamentos, na medida em que há factores situacionais, ecológicos, económicos, políticos, biológicos e emocionais que definem a sua forma, com ou sem interferência dos factores ideativos(cf. Spiro; 1984).

Pensamos também que é importante discriminar o que resulta de uma aprendizagem de proposições culturais de uma dada cultura, dominante ou dominada e o tornar-se enculturado, porque não basta aprender determinadas proposições descritivas e normativas da realidade social para que o sujeito as assuma como verdadeiras, apropriadas e certas.

Só quando as proposições culturais são internalizadas como crenças pessoais, com grande carga de significação, é que elas podem evocar e prescrever respostas emocionais e as condições apropriadas para a sua expressão.

Seja como for, a cultura não pode ser confundida com as emoções nem com os pensamentos, embora as proposições culturais tenham antecedentes e consequências

emocionais. Pode acontecer dos actores aceitarem nominalmente determinadas proposições de uma cultura como clichés, sem qualquer importância emocional.

Segundo percebemos, a possibilidade de inferir sobre a pertença cultural de alguém requer que a cultura seja considerada como descrição histórica de um processo de apropriação de proposições descritivas ou normativas. Passa pela enculturação, ou seja, pela sua aquisição e pela familiarização do sujeito, a ponto de ter relevância cognitiva. Esta relevância depende não apenas da compreensão do seu significado tradicional mas também da aceitação da interpretação que lhe é dada pela comunidade que as partilha. Só quando as proposições culturais são internalizadas como verdadeiras, correctas e certas e são transformadas em crenças pessoais, com implicações na maneira como os indivíduos orientam as suas vidas, é que se pode atribuir à cultura um valor explicativo dos comportamentos ou contextos individuais ou de grupo. Estas crenças, culturalmente constituídas, servem também para instigar a acção, por terem uma relevância legítima e uma urgência moral e emocional, que as torna parte da herança do grupo.

Pensamos que este entendimento é fundamental para não confundirmos aquilo que é expressão da cultura transportada por esta mulher e os efeitos da sua condição social.

Spiro (1984) realça que a cultura não é nem a única, nem a mais importante fonte de cognições e dos esquemas construídos pelos actores sociais, porque há proposições sociais que estão ligadas a modelos de estrutura, de organização social e de preferências que não devem ser confundidos com conteúdos e formas culturais. O autor refere que até uma experiência partilhada, cujas consequências não intencionais tiveram efeitos importantes sobre o comportamento, sobre a estrutura social ou sobre a visão do mundo, pode construir crenças e orientações cognitivas, que fornecem uma concepção do universo social diferente ou mesmo oposta à que lhe foi transmitida por endoculturação.

Uma consideração importante que é feita por Spiro é a de que todos os humanos têm a capacidade comum para distinguir fantasia da realidade, assim como preferem sentimentos de prazer ao sofrimento e relações não conflituais a relacionamentos

conflituais, porque os processos que caracterizam o trabalho da mente humana são os mesmos em qualquer lugar.

O que importaria saber é em que contextos experienciais esta percepção constitui ou não, o fundamento de um outro sentido universalista da cultura como afinidade, que pode levar a que o mundo social seja experienciado como habitat colectivo.

Outra perspectiva da cultura é-nos dada por Sousa Santos ( 1995) que a define como processo social situado na intersecção entre universal e particular. Considera mesmo que, embora as fronteiras que eram estabelecidas pelo costume, língua ou nacionalismo e ideologias sejam constantemente abaladas pela desterritorialização das relações sociais provocada pela globalização, tal facto não evita a emergência de novas formas de localização da identidade nacional ou étnica.

Sousa Santos questiona, no entanto, se a ideologia do consumismo e o imperialismo cultural, que são elementos que circulam no mundo, chegam a constituir uma cultura desligada de qualquer cultura nacional. Para o autor, estas culturas parciais dizem respeito apenas a determinados aspectos da vida social ou a determinadas regiões, embora reconheça que haja grupos, classes e Estados interessados na especialização de localismos que geram práticas adaptadoras. Não só a comunicação social, como também o próprio sistema educativo favorece a uniformização, ainda que defenda a diversidade cultural (cf. Sousa Santos; 1997).

Um outro fenómeno a considerar é a hibridação cultural das identidades regionais, nacionais e locais, que decorre da intensificação dos fluxos transnacionais de mercadorias, capital, mão-de-obra, pessoas, ideias e informação. O que a emergência de novas identidades parece expressar, segundo Sousa Santos , "é uma nova projecção do direito às raízes em contraposição ao direito de opção" (Sousa Santos; 1996) ainda que, segundo o autor, se mantenha o sentimento da terra de origem, ligado ao território real ou imaginário. O autor refere que estes fenómenos podem constituir uma fonte de tensão, quando esta esfera cultural, reproduz a hierarquia entre sociedades do centro e da periferia no sistema mundial. Sousa Santos refere também que a compressão mundial do tempo e do espaço não beneficia da mesma forma a classe capitalista e os

migrantes e refugiados; havendo ainda aqueles que continuam presos ao tempo e espaço locais (cf. Sousa Santos; 1997; 1994).

Situando-se ainda em outra escala de reconhecimento do papel mediador da cultura no pensamento, na acção e na subjectividade dos actores sociais, Nunes (1995) considera que a cultura emerge da maneira como os actores sociais se relacionam entre si e estabelecem associações que constituem grupos sociais e formas de sociabilidade. Deste ponto de vista, as relações de parentesco e de amizade, bem como a participação em diferentes tipos de actividades, fornecem recursos indispensáveis a identificações em situações nas quais os actores definem o que e a quem os une e o que e de quem os separa. Dado que diferentes actividades têm vínculos com diferentes espacialidades e temporalidades particulares, à medida que os sujeitos alargam as redes de relações sociais, alargam também o seu repertório cultural, que pode conter, ao mesmo tempo, elementos da alta cultura, da cultura popular ou da cultura de massas.

Nunes (1995) parte da definição de cultura de Swidler (1968) — como repertório de práticas, representações, símbolos, crenças, objectos, rituais, memórias, tradições, identificações e concepções de subjectividade — para abordar a cultura como recurso que os sujeitos podem identificar e mobilizar nos mundos sociais nos quais são submetidos a uma diferenciação desigual. Nestes contextos, as competências, os sentimentos de pertença e os vínculos de solidariedade, podem ser accionados de diferentes maneiras, podendo haver circunstâncias de conflito de lealdades que o sujeito tem que gerir.

O autor refere que, embora as tradições sejam os elementos mais importantes das reafirmações identitárias na actualidade, estas são frequentemente recuperadas ou reinventadas na autenticação destas identidades. Neste processo social, as identidades são fragmentadas e produzidas pela identificação social e cultural que pode envolver a escala local, nacional e/ou transnacional. O autor considera mesmo que as ideologias são formas de conferir coerência e estabilidade às representações culturais pela sua permeabilidade as dinâmicas globais em curso.

a temporalidades cujos fundamentos são a identidade e a diferença, constituídas como narrativas. O que é importante é, então, identificar os recursos culturais que asseguram a possibilidade de transmissão desta narrativa, o que implica uma nova visão das tradições e das memórias, como reconstruções periódicas que estão ligadas a reavaliações de experiências de cada momento histórico. Uma advertência do autor que nos parece fundamental reter aqui é que a referência à cultura e à tradição, oculta a heterogeneidade social produzida pelas desigualdades e hierarquias ligadas a divisões baseadas no sexo, idade, geração, classe, posse da terra, profissão, escolaridade, raça, etnia, experiência de emigração ou diferentes graus de diferenciação entre os locais e os de fora, baseados na naturalidade, no parentesco, na afinidade e na residência (Nunes; 1995).

Para poder distinguir, em maior profundidade, aquilo que pode ser expressão de raízes ou de opções, mas também e, de forma crucial, das posições ocupadas pelos sujeitos em campos sociais que são material e simbolicamente estruturados, achamos fundamental adaptarmos o ponto de vista de quem é incluído, através de um grupo social que habita o mundo em condições e circunstâncias históricas concretas.

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