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Entre a racionalidade camponesa e a racionalidade capitalista

3. A D Silvina como participante de tempo e de um lugar ampliados

3.1. Águeda enquanto terra "quase prometida"

3.1.1 Entre a racionalidade camponesa e a racionalidade capitalista

Apesar do ritmo e da intensidade do processo de industrialização que o concelho de Águeda mantinha nos anos 70, persistia uma forte absorção de mão de obra na actividade agrícola em minifúndio, com produção intensiva e diversificada.

Raul da Cruz considera que as pequenas explorações teriam desaparecido se tivesse sido a racionalidade capitalista a orientar o desenvolvimento da actividade agrícola local. O que constatou foi que as explorações agrícolas foram conservadas e que o número de pequenas explorações de operários, emigrantes, funcionários e comerciantes, aumentou. Os que não eram herdeiros ou proprietários de terras recorriam ao arrendamento de parcelas de terra. As propriedades agrícolas herdadas foram conservadas porque a alienação de um património com valor afectivo continuar a ser considerada um risco para o prestígio social da família.

Para o autor, esta sobrevivência da pequena exploração agrícola familiar, fora da concorrência do mercado, pode ser compreendida por referência à família rural ou à sociedade rural tradicional, em que há uma ligação simbólica entre família, trabalho agrícola e posse de terras. O trabalho agrícola de pequena dimensão mantém-se, então, como complemento do rendimento das famílias na indústria, como forma de ocupação familiar e de trabalho para o autoconsumo, próprio da racionalidade camponesa. É sobre este cenário de transformação de estruturas económicas e de preservação de modos de vida que se reproduzem as relações sociais no concelho.

No estudo a que nos temos vindo a referir, Raul da Cruz constatou que relações entre os agricultores e os seus filhos empresários na indústria passaram a ser recontextualizadas pelo empreendimento de bens comuns e pela dinâmica de desenvolvimento da própria empresa.47 Estas relações têm, sem dúvida, significado nas relações entre pais

47 Em 1973 , verificou-se que 78% das empresas era constituída como sociedade por quotas; forma de organização jurídica que está ligada à dimensão da empresa e ao facto de pertencerem ou serem controladas por famílias. Nestas pequenas empresas a presença do fundador ou dos seus herdeiros é frequente ou pode verificar-se a atribuição de funções bem diferenciadas a cada um dos sócios. Aos proprietários cabe a direcção técnica e financeira da empresa bem como a tomada de decisões que vão desde a dispensa de um operário até os grandes investimentos.

(agricultores) de empresários que pagam o trabalho de outros agricultores que se tornaram operários.

Com a falta de trabalhadores na década de 70, estes passaram a ser recrutados entre homens e mulheres, entre vizinhos e estranhos, migrados das zonas do interior do concelho e de zonas distantes. A agravar o impacto social destes antecedentes e da proximidade física entre sujeitos que foram sendo reposicionados pela divisão social do trabalho, há a tensão gerada pelo facto de, ainda em 1973, muitos dos empregados na indústria se sentirem mais agricultores do que operários. Esta disposição tornava ainda mais difícil a sua subordinação - voluntária ou imposta - a uma cadeia hierarquizada de funções, aos horário e ao controlo das cadências da sua actividade.

Por outro lado, era a coesão do bloco família-exploração, que assegurava o equilíbrio do agregado doméstico, que passa a estar em risco à medida em que a mulher e os filhos jovens passam a trabalhar na fábrica. O homem perde o seu lugar de chefe de exploração, quando a mulher e os filhos deixam de conformar-se ao estatuto de ajuda familiar, em que ao trabalho não corresponde qualquer salário e em que é o homem que ajuda a mulher apenas nos trabalhos que são considerados mais árduos: sementeiras, pulverizações e transportes. Os jovens-operários continuam a "ajudar" apenas por uma atitude de respeito, mas esta circunstância leva a que passassem a casar mais cedo, em busca da sua autonomia. Livram-se, desta forma, da exigência de entregar o salário aos pais e da prática de ajuda na exploração agrícola que os subordina à autoridade patriarcal.

Os jovens integrados na indústria na década de 70, passaram a ter consumos industriais que incluem tempos livres e de lazer, tempos esse que antes eram utilizados no trabalho da terra, abandonando a economia de autoconsumo familiar que garantia produtos vegetais e animais para consumo doméstico.

Quanto às mulheres passaram a ter acesso à educação formal e, consequentemente, a práticas de controlo da fecundidade. Esta margem de autonomia e de projecto continua a ser ocultada pelas relações sociais em espaço publico ou pela sua obrigação de trabalho doméstico e cuidado de dependentes. Embora as mulheres tenham constituído uma resposta a necessidades locais de mão de obra, nos anos 70, com a expansão da indústria e com a

emigração, o salário e a formação profissional, continuaram a assinalar a desigualdade da sua posição relativamente aos seus parceiros e a demarcar limites das suas possibilidades de autonomia.

Raul da Cruz constatou que as mulheres tinham pouca participação nos ramos de actividade em que havia maior incidência de mão-de-obra qualificada, ou seja, no sector da metalomecânica (60%) e na construção de motociclos e bicicletas (56%). Pelo contraries, estavam mais representadas entre as situações de analfabetismo literal da indústria do barro vermelho e das madeiras. Constatou também que as mulheres tinham salários que chegavam a ser 50% inferiores aos dos homens, em diversos ramos da indústria, mas esta situação podia ser ainda mais grave na cerâmica de barro vermelho, ou na indústria das madeiras, em que os salários são inferiores. Neste mesmo período os salários agrícolas fixaram-se ao mesmo nível do trabalho industrial, ou seja, 80 escudos para os homens e 40 escudos para as mulheres.

A Revolução de Abril foi o momento em que esta diferença salarial passou a ser interditada legalmente. No entanto e apesar de todas as transformações sociais, mantém-se a desigualdade de poder entre homens e mulheres. A autoridade do homem continua a ser a base da estruturação das relações que articulam casamento, a família e o trabalho. Em alguns sectores da população, as mulheres continuam a acumular o trabalho da indústria com as tarefas de cuidado do gado, como extensão do trabalho doméstico e mantêm a responsabilidade do cuidado dos dependentes.

Em trabalho datado de 1996, Ana Matos e Margarida escutaram as perspectivas de trinta mulheres que fazem subsistir a actividade agrícola na Comunidade a que nos referimos. Constataram que essas trinta mulheres, nascidas entre 1951 e 1971, se sentiam inferiores relativamente às outras que tinham actividade remunerada, regalias e prazeres a que elas não podiam aceder. Constataram que elas justificavam o seu baixo nível de escolarização pela combinação entre falta de incentivo dos pais e as dificuldades de acesso a uma escola que não era obrigatória. Para estas mulheres, a sua falta de escolarização correspondia à falta de cultura, que restringia a sua esperança profissional e as fechava em relações de sociabilidade, no contexto das relações de solidariedade e entreajuda

tradicionais, com outros agricultores. 71,9% destas mulheres não iam a passeios nem se deslocavam para a venda de produtos fora da aldeia.

Segundo as autoras, o limite das expectativas destas mulheres era fixado na casa e na pequena exploração agrícola. Tinham pouca consciência da sua participação económica e auto-excluiam-se das acções de gestão e de organização da vida da comunidade local. Destas mulheres, as que mantinham ligação com a economia formal para além da sua condição de mães e de domésticas, constituíam excedente de mão de obra e o seu salário era considerado complementar ao do marido .Achamos interessante referir aqui estas disposições que nos estimulam a questionar a história da D.Silvina.

Entretanto, quando olhamos para Águeda, na década de 90, podemos constatar o quanto se vai esbatendo o horizonte de promessas que atraiu naquele momento as populações do interior, mas que ainda hoje continua a atrair pessoas de outros concelhos, dos países PALOP e de Leste. A imigração torna-se num aspecto crítico quando consiideramos que, apesar das condições de apoio social às crianças terem melhorado substancialmente nas duas últimas décadas (em termos de serviços dirigidos a esta faixa ectária, o mesmo não se pode dizer relativamente a sectores tão essenciais quanto a habitação.

O Relatório do IEFP de 1994 referia que o tecido industrial local tinha subido a um nível superior ao do Continente, embora inferior ao da Zona Centro (IEFP, 1994). Este documento refere o aparecimento de sinais de crise no ramo têxtil vestuário, dos motociclos, da cerâmica de barro vermelho e da indústria de ferragens, apesar de haver expansão de emprego. José Reis atribuía os sinais de esgotamento da dinâmica local à insuficiência de formação de recursos locais, face à exigência de domínio das técnicas de produção consideradas relevantes.

O autor considera que, apesar de na década de 90 Águeda continuar a gerar a oferta de novos empregos, está a criar também desemprego de longa duração que afecta maioritariamente as mulheres e, de modo geral, os indivíduos com mais de 50 anos. O contrato a prazo é utilizado cada vez com maior frequência relativamente a trabalhadores indiferenciados e as relações de trabalho que não são sujeitas a qualquer contrato nem a

rendimentos declarados estão a aumentar. Há famílias que são também envolvidas pelo trabalho no domicílio, uma forma de emprego invisível, com o pagamento à peça. ( cf.Reis; 1996)

Por outro lado, apesar da agricultura ter perdido a sua importância como actividade produtiva, diminuindo em cerca de 50% na década de 90, esta continua a ser uma actividade secundária de 50% do conjunto de trabalhadores industriais e constata-se que cerca de 2/3 das famílias residentes possuem ou estão ligadas a uma exploração agrícola. A cultura de milho, batata, vinho, frutos e legumes serve para auto-consumo familiar e constitui um complemento aos rendimentos salariais.

Todos estes indicadores nos falam de realidades que podemos entender tanto por referência aos contextos económicos e sociais da pré-modernidade quanto o fenómeno da globalização económica, política e cultural. No entanto, o que importa aqui é saber que é deste espaço "híbrido", do interior da Sociedade local que continua a viver transformações e de uma Comunidade que mantém disposições ligadas à tradição oral, que nos falou a D.Silvina, sentada à cabeceira da mesa da sua cozinha.

3.2- A D. Silvina que conta a à cabeceira da mesa

Antes de dar a 1er a história de vida da D. Silvina, como texto escrito, gostaríamos de dar conta do processo que o produziu.

Tal como atrás referimos, a nossa relação com a D.Silvina tinha alguma antiguidade e, por outro lado, ela mesma foi um dos sujeitos entrevistados para o Projecto do CES sobre o Papel da Sociedade na protecção social,. Contávamos, por isso, com muitos recursos que abreviaram o processo de recolha da história de vida. A relação estava criada, ela sabia de quanta informação dispúnhamos sobre a comunidade e sobre as suas circunstâncias sociais. Por outro lado, o facto de termos alargado as entrevistas à sua mãe, às suas quatro filhas e a três netas, pode ter contribuído para que o número de entrevistas realizado fosse menor do

que, à partida, imaginávamos necessário. Foram nove as horas de entrevistas gravadas, embora o tempo de diálogo não se restringisse à gravação.

Todas as entrevistas eram precedidas de um tempo de conversa e a nossa narradora decidia quando seria o momento de ligar o gravador. Por outro lado, sempre que visitávamos a casa para as restantes entrevistas, contámos sempre com um tempo para conversar, que não foi gravado. De registar também que houve muitos telefonemas com pedidos de esclarecimentos pontuais, que se prolongaram em conversas e que foram importantes para a produção deste texto.

Importa, no entanto, referir que a palavra que aqui está registada é da D.Silvina. Por outras palavras, não acrescentamos nada à sua narrativa oral. Pelo contrário, por motivos óbvios, tivemos que omitir algumas descrições repetidas ou outro material que tornava o texto ininteligível, pelo excesso de detalhes que foram, sem dúvida, fundamentais para sustentar a comunicação oral, mas que seriam redundantes num texto como o que se apresenta. De qualquer forma, o material gravado, foi transcrito integralmente e está cuidadosamente arquivado.

Uma das condições criadas foi a de realizar as entrevistas em dia e hora marcados pela D. Silvina com antecedência de alguns dias, de modo que ela pudesse organizar a sua vida pessoal e também apropriar-se afectiva e cognitivamente deste tempo de produção sobre as suas memórias e narrativa.

O espaço onde se realizaram as entrevistas também foi escolhido por ela. Estivemos sentadas à mesa da cozinha, que é o espaço do seu domínio, onde está colocada a televisão, onde ela cuida do agregado familiar e acolhe os que chegam. Por duas vezes ficamos no quintal, uma espécie de extensão da cozinha, onde a família também toma as refeições e conversa. Em todas as situações de entrevista ela tomou o lugar da cabeceira da mesa e indicou, de seguida, a cadeira colocada ao seu lado esquerdo, para nos sentarmos.

A duração de cada uma das entrevistas foi basicamente de uma hora mas, como referimos, era preparada e antecedida por conversas sobre acontecimentos com o que ela própria criava o contexto da conversa. A dado momento ela marcava o início do seu relato com a pergunta, " está a gravar?" A duração do tempo de fala e escuta da história de vida

foi estabelecido segundo a duração da cassete audio, para dar referentes à D. Silvina, que não tem o hábito de se fazer ouvida por longos períodos. Pensámos que, assim como era importante ela ter controlo sobre o uso do gravador, seria também importante que tivesse alguma previsão do tempo do seu trabalho discursivo. Uma vez estabelecido este tempo, houve pelo menos duas vezes, em que ela aceitou que continuássemos a gravar noutra cassete.

É importante referir que todo o discurso foi produzido em contexto interpessoal e a entrada de alguém correspondeu sempre a uma interrupção (excepção para a entrevista da sua mãe, em que a D.Silvina, se ofereceu e se manteve como ajuda à mãe, já muito idosa). Como já referimos havia um acordo entre nós de que o gravador seria desligado sempre que ela não quisesse ter o seu depoimento gravado.

Um dos instrumentos que criámos e que tivemos que abandonar, discretamente, foi um caderno como auxiliar de memória, para cada uma de nós. Sugerimos que apontássemos dúvidas, questões ou assuntos que desejássemos ver abordados na sessão seguinte. No entanto, logo na segunda sessão, apercebemo-nos do embaraço que o caderno lhe tinha causado. Começou então por justificar eventuais erros de escrita e obrigou-se a produzir "algo" - desenhos, versos - como se se tratasse de um dever escolar. Este efeito imprevisto e indesejável, parece estar patente no segmento da entrevista que transcrevemos. Assim , depois de me ter dado o caderno a 1er, acrescentou:

" Eu mandei escrever. Mas mesmo assim eu não sei dizer... Veja lá se isto está

bem. Era para pôr no livro, eu tirei da minha cabeça. Há- de estar aï as coisas que... ora veja lá se está bem ...as coisas que eu pensava, que eu fiz e as que eu pensei, eu fui escrevendo para não me esquecer. Eu mandei escrevê-las, na

altura. Tem um bocadinho de erros, vamos lá ver... "

Ne sessão seguinte, antes que ela se precipitasse a dar conta do que parecia sentir como dever, perguntei o que ela achava de usarmos fotografias como auxiliares de memória. Entusiasmada, foi buscar fotografias e não voltou a fala no caderno.

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