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O lugar e o valor do saber experiência! na reprodução da vida social

0. Introdução e justificação do trabalho

2.2. Para 1er a experiência de quem é habitada pelo mundo social que habita

2.3.6 Da valorização das "coisas ensinadas" à descoberta de outros universos de saber

2.3.6.1 O lugar e o valor do saber experiência! na reprodução da vida social

Quando perspectivamos a educação no contexto das comunidades e unidades sociais mais simples, é inevitável reconhecê-la como prática entre práticas sociais que organizam e garantem as condições de reprodução da vida biológica e social dos grupos e de populações inteiras.

A sua natureza social está patente nos processos informais que medeiam as trocas sociais num espaço físico e afectivo de convivência intergeracional em que se transmite o saber de reprodução do grupo. Neste contexto, adultos e crianças têm distribuídos entre si um conjunto de direitos e de obrigações que asseguram a produção de novos seres humanos, bem como o ensino da obrigação do trabalho, que permite substituir os mais velhos quando estes já não o puderem fazer. Existe um projecto comum de vida, que reúne adultos e crianças que, em função dele, empreendem actividades conjuntas, nas quais cada novo elemento aprende qual o trabalho a fazer e qual o rendimento que o grupo espera de si, de acordo com as suas capacidades pessoais.

O que os mais novos aprendem nesta relação, não são apenas a obrigação e as competências de trabalho social, mas também a conversão da sua relação com o adulto. Os mais jovens devem aprender a transferir a sua afectividade para alguém que lhes interesse como par de uma relação, da qual o grupo social espera a produção de filhos e a acumulação de bens, pela junção de força de trabalho, da experiência, do salário...(cf Iturra).

Neste caso, é a cultura tradicional partilhada pela comunidade que autoriza e legitima o saber e o poder que os mais velhos exercem sobre os mais novos, ao transmitir-lhes, através da sua prática e de diversos rituais colectivos, a visão e os princípios de divisão que ordenam e justificam o mundo social que é partilhado e que

é interiorizado como natural, nas interacções sociais e que é representado por instituições reconhecidas por todos.

É desta perspectiva que Brandão (2000)41 considera a educação como "fracção do

modo de vida dos grupos sociais, que a criam e recriam entre tantas outras invenções dentro da sua cultura e em sua sociedade . O saber da comunidade é aquilo que todos conhecem de algum modo e que se transmite em situações pedagógicas, interpessoais e familiares e comunitárias" (:20), porque a Educação atravessa as trocas correntes de símbolos, de bens e de poderes que tornam comum, como saber, como ideia, como crença, aquilo que é comunitário.

Nas Comunidades, cada elemento ocupa um lugar que obedece a determinada divisão do saber comum e, a partir do momento em que passa a ser reconhecido como portador legítimo do saber que lhe foi distribuído e apto para a vida de adulto, pode exercer o poder que lhe corresponde, (cf Brandão).

Brandão refere que só quando o trabalho que produz os bens e o poder que reproduz a ordem são divididos é que este saber, que é da comunidade que o afirma, passa a ser desigualmente dividido e se processa uma divisão e hierarquização em tipos de saber, dos seus usos e dos próprios educandos. Trata-se, no entanto, de uma divisão que legitima o uso político de reforço da diferença que separa cada vez mais aquele que faz daquele que sabe com o que se faz, daquele que faz com o que se sabe.

O saber passa, então, a ser cada vez mais controlado e recodifícado segundo domínios, sistemas, modos de usos e situações colectivas de distribuição e a constituir uma competência específica que justifica o investimento de poder em agentes externos e respectiva criação de um sistema pedagógico que é administrado pelo exterior da comunidade. Uma das consequência deste processo, emergente da própria complexificação do trabalho social, é a desqualificação e ruptura com os saberes e a participação da comunidade no processo educativo dos mais novos; rompe-se e desqualifica-se também a relação dos mais novos com o saber que é parte da cultura da comunidade (cf Brandão 2000).

Desta perspectiva que privilegia a transmissão intergeracional da cultura local tradicional, podemos apreender processos que se mantêm implícitos em muitos contextos sociais, nos quais a penetração da modernidade não implicou a deslocalização e descontextualização das práticas e dos saberes sociais a ponto de romper, com crítica, com lógicas sociais que são sancionadas pela tradição e transmitidas pela convivência intergeraccional.

O que importa aqui é ter consciência de que esta resistência da cultura e da estrutura social e cultural da comunidade, tem um impacto desigual e diferenciador de alguns grupos que ocupam posições de integração subordinada e de exclusão, o que dificulta a sua participação e, fundamentalmente, o seu reconhecimento nos outros contextos criados pelo Estado Nação, na figura do Estado Providência. Esta marginalidade interfere na construção da sua identificação e da sua identização social como cidadãos e cidadãs contemporâneos, com direitos consagrados pela constituição dos Estado Nacionais e por acordos internacionais, que se pretendem universalizar.

Num estudo sobre a aprendizagem fora da escola, Cavaco,C( 1979) analisou as entrevistas biográficas de seis mulheres e três homens, não escolarizados e residentes num meio rural, para reconhecer as aprendizagens experienciais que foram realizando ao longo das suas trajectórias de vida. Depois de nos dar conhecimento de algumas especificidades da educação de adultos, a autora situa-nos diante do problema do analfabetismo, como construção social estigmatizante dos sujeitos que, não tendo acesso a aprendizagem da leitura e da escrita, vêem a sua situação de iletrados (re)defmida em termos de (in)felicidade, (in)dignidade, (falta de) poder, (sub)desenvolvimento, etc., à custa da ocultação da desigualdade social que a justifica.

Cavaco chama a atenção para a contribuição do discurso negativo sobre o analfabetismo e iletrismo, para a desvalorização da identidade social dos indivíduos designados por esta condição e também para a valorização da cultura letrada e dos saberes daqueles que dominam as competências de leitura e da escrita. A autora qualifica como etnocentrismo cultural esta atitude que contribui para ocultar os muitos

outros saberes - não letrados - que geram competência para a vida e que criam uma ideia de homogeneidade da situação dos analfabetos (:22).

As circunstâncias que recaem fora da esfera individual, tais como as raízes culturais, sociais e políticas do analfabetismo, são omitidas pelo discurso que remete para os indivíduos e para as suas opções o que é um problema social. Debaixo deste olhar estigmatizante, as pessoas e os grupos não alfabetizados tendem a desvalorizar a cultura e os saberes de que são portadores e com os quais constróem os seus projectos de vida. É a própria cultura letrada que neste contexto se sobrepõe, desvaloriza e retira a credibilidade da cultura iletrada. Ao fazer recair sobre esta o estigma de analfabetismo, a sociedade passa a representar estas pessoas como culturalmente vazias e como que suas desconhecidas quando, na verdade, o sentido que as pessoas atribuem às suas vidas é constituído pela articulação de capacidades, referências e práticas que podem ter a sua raiz em narrativas tradicionais oralmente transmitidas e incorporadas, mas também podem ter tido os seus modelos nos media ou em contextos de educação formal e também nas experiências acumuladas ao longo da vida (cf Cavaco;: 23).

Um dos aspectos para que somos alertados pela reflexão desta autora são os efeitos pragmáticos do designar as pessoas como alguém que está fora ou à margem da realidade estrutural, o que pressupõe a pressuposição por quem o faz, de um centro e de uma periferia, expressando mais uma vez o etnocentrismo cultural.

Para Freire, citado por Cavaco em suporte da sua argumentação, a pessoa que não domina a leitura e a escrita "não é uma pessoa que vive à margem da sociedade, um homem marginal, mas apenas um representante dos extractos dominados da sociedade, em oposição consciente ou inconsciente àqueles que, no interior da estrutura, o tratam como coisa". Estes sujeitos não só vivem no interior da sociedade que assim os designa, quanto sofrem os efeitos desta designação que os desqualifica socialmente e que reflecte a pressão da cultura letrada.

A autora refere que a própria investigação "tem contribuído para fortalecer a estigmatização e a discriminação dos saberes iletrados relativamente aos saberes letrados" (:25).

Sugere que o ponto de vista alternativo seja procurado na resposta às seguintes questões relacionadas com a educação informal e que se prendem com o como se aprende, o que e a partir de que fontes. A partir do que se pergunta onde começa a verdadeira formação experiencial e como os saberes apropriados através da experiência são validados e modificados quando são confrontados com incoerências ou inconsistência, transformando os saberes pré-existentes e pela adopção de critérios de pertinência. A aprendizagem experiencial é entendida, assim, como resultado da relação entre observação e acção e entre teoria e prática num processo cuja energia e vitalidade são dadas pela experiência e a direcção é dada pela teoria. Teoria e prática que são mais facilmente integradas pela aprendizagem em grupo e que implicam mecanismos de assimilação e acomodação que se expressam em diferentes fases e como estilos de aprendizagem.

Dado que a aprendizagem modifica a representação das relações dos sujeitos com os outros e com o mundo, há uma dinâmica de transformação que passa pela reavaliação da experiência acumulada, à luz de novas experiências de observação concreta, de observação reflectida, de conceptualização abstracta e/ou de experimentação activa. É assim que o vivido é transformado em experiência quando é reflectido pelo sujeito na relação consigo mesmo e se transforma em consciencialização quando a experiência reflectida é socializada, passando de implícita a explícita.

A autora referencia, como contextos e situações de aprendizagem, a família, o espaço profissional, a envolvência social e a política. Localiza na família a aquisição de competências de expressão, de comunicação, de relação interpessoal; no local de trabalho localiza a aprendizagem de competências para execução de tarefas específicas, a relação de proximidade com pessoas subordinadas às mesmas regras de funcionamento da organização e que resulta na aquisição de automatismos no tratamento dos problemas, da capacidade prever e antecipar a sua frequência e adaptar soluções.

Apesar do carácter local deste saber experiencial, enquanto "saber de uso, produzido no contacto com uma situação concreta, num determinado contexto" , não

deixa de ser também "um saber complexo, extradisciplinar e multireferencial", (refere a autora, citando Courtois), que quando incorporado pelo indivíduo "dá valor as suas mensagens, às situações, às vivências"(Cavaco:39).'

2.3.6.2 O risco da (re)produção cognitiva da ausência do sujeito; do sujeito que

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