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Como a objectivação linguística da realidade (assim) conhecida reifica formas de acção e identidades sociais

0. Introdução e justificação do trabalho

2.2. Para 1er a experiência de quem é habitada pelo mundo social que habita

2.2.2 Como a objectivação linguística da realidade (assim) conhecida reifica formas de acção e identidades sociais

Enquanto Bourdieu (1998) recusa a hipótese dos agentes terem uma relação teórica e intelectual com a acção, que na sua perspectiva é uma relação prática com a prática social, Berger e Luckman (1966) consideram o universo simbólico como lugar que dá significância, significado e legitimidade às interacções sociais que constróem pragmaticamente a realidade social. É o conhecimento social, em todas as suas formas e conteúdos, que torna subjectivamente real e socialmente reconhecíveis as acções objectivadas linguisticamente.

Para estes autores, a sociedade é construída pela atribuição de sentido subjectivo a acontecimentos objectivos, o que é conseguido pela relação precoce com outros significativos que se interpõem na relação da criança com o ambiente natural e humano. Berger e Luckman acrecentam (1966), com um universo simbólico que contém diversas formas de conhecimento de uma dada sociedade — formulações teóricas científicas, mitológicas ou filosóficas, mas também a ideologia, a utopia e o senso comum.

Este é o conhecimento que dá a certeza aos sujeitos de que os fenómenos são reais e têm características específicas e é neste universo simbólico que se enraízam valores e concepções do mundo, que são interiorizados como facticidade objectiva. Por isso, os autores consideram que "a biografia do indivíduo e a sociedade histórica inteira são acontecimentos que ocorrem dentro de um universo de significados socialmente objectivados e subjectivamente reais " ( Berger e Luckman; 1966). Este universo passa a habitar o sujeito por um processo que se inicia quando a criança brinca e assim toma conta dos papéis desempenhados pelos seus outros significativos.

Segundo Mead, citada por Dubar, o papel começa por ser percebido como conjunto de gestos que funcionam como símbolos significantes que se associam para formar uma personagem socialmente reconhecida (cf. Dubar; 1997). A criança aprende, assim,

a organizar as reacções que estes papéis provocam nos outros e nela, rectroactivamente. É este acto social que implica a adaptação à reacção do outro e à antecipação do resultado dos actos, que faz com que ela deixe de reconhecer o papel pela particularidade de quem o desempenha e passa a entendê-lo como organização de atitudes entre indivíduos comprometidos no mesmo processo social.

Para Mead, refere Dubar (1997), esta é a lógica da socialização das formas institucionais que constróem o eu social. A identificação com estes papéis institucionalizados, construídos pela tipificação de acções a que é dada objectivação linguística, transporta em si um conjunto de definições sobre a realidade social que passam a ser partilhadas e que, ao serem legitimadas num universo simbólico, deixam de situar-se na esfera pragmática. A relação entre o pensamento e o contexto social constrói-se desta forma, o que nos permite compreender o que implica o nascimento numa dada estrutura social objectiva.

Na verdade, é aí que cada sujeito encontra os outros significativos que escolherão aspectos do mundo de acordo com a sua própria localização social e das suas idiossincrasias individuais. São estes outros que irão fornecer as definições de situação que se apresentam ao sujeito como qualidade pertencente a fenómenos que são reconhecidos como independentes da sua volição.

É a socialização primária que faz "aparecer como necessidade o que é, de facto, um feixe de contingências" (Berger e Luckman; 1966). É o que faz com que uma atitude, que poderia ser lida como manifestação de processos subjectivos momentâneos, deixe de o ser numa situação experienciada pelo outro como sendo subjectivamente significativa. Na consciência dos sujeitos, cria-se uma abstracção progressiva de papéis e de atitudes que, embora sendo de outros sujeitos particulares, são apropriados como papéis e atitudes dos outros em geral, ou seja, do "outro generalizado".

Apesar das acções instituídas como papéis serem conhecidas, recorrentes e repetíveis por qualquer actor social, são elas que determinam a auto-compreensão do sujeito, no momento em que este as executa. Desde que o indivíduo interioriza este mundo social, constituído por definições sociais partilhadas, ele partilhará com os

outros o "nexo de motivações que se estendem ao futuro e promove a sua identificação mútua" que lhe proporciona identificações, legitimadas a nível do universo simbólico (cf. Berger e Luckman; 1966).

2.2.3 Quando as identidades sociais são "individualizadamente" reconstruídas como subjectividade, na interacção com um sistema social que se altera

Dubar critica tanto a abordagem culturalista quanto a abordagem estruturalista, por partirem igualmente do pressuposto de que existe uma unidade do mundo social, unidade que, para os primeiros, é constituída em torno da cultura tradicional e, para os segundos, é constituída em torno de uma economia generalizada, com a sua lógica de maximização de interesses materiais e simbólicos, dominantes nas sociedades modernas.

O argumento é o de que a abordagem culturalista entende a cultura como "algo" exterior ao indivíduo que, para se tornar membro de determinada sociedade, terá de a incorporar na forma de características gerais e especializadas, comuns a certas categorias socialmente reconhecidas, que partilham o mesmo status social.

Segundo Dubar (1997), estas perspectivas restringem as particularidades individuais às opções de reacção perante as mesmas situações, por darem ênfase à questão de fidelidade às raízes do grupo de origem, pressupondo que, em todas as sociedades, "há experiências subculturais de base, que respondem a uma necessidade psicológica primordial de pertença social.

Dubar considera que esta foi a perspectiva que levou os funcionalistas a criarem uma teoria geral da socialização que é parte da teoria geral da sociedade, circunscrevendo o processo de socialização a quatro subsistemas de acção: a estabilidade normativa, a integração, a persecução de objectivos e a adaptação. Neste caso, a identificação primária com a mãe corresponde já à aprendizagem dos padrões de acção constitutivos das normas e valores da cultura, geradora de uma conformidade precoce. O facto de alguns indivíduos, em algumas situações, se definirem ou referirem positivamente a

outro grupo social que não o de pertença, é explicado pelo desejo de adesão aos modelos de outro grupo de referência, (cf. Dubar; 1997).

Dubar refere que a correlação entre posições actuais e posições passadas, ou entre posições em campos diferentes, foi um contributo importante de Bourdieu, embora considere que pareça haver uma incongruência no facto deste autor considerar que a relação específica que os indivíduos estabelecem com o futuro é determinada pela sua pertença ao grupo com quem partilham a mesma visão do mundo sócio-económico, quando descreve o habitus, em termos de estilos de vida que são caracterizados pelo consumo de determinados tipos de bens culturais e práticas sociais e quando faz presumir que a relação com o futuro, inclua o capital económico e cultural, (cf. Dubar;

1997).

A sua posição é a de que a socialização deve ser entendida como produto constantemente reestruturado sob a influência presente ou passada de múltiplos agentes de socialização e como processo no qual se constrói, lenta e gradualmente, um código simbólico. É este código que servirá como sistema de referência e de avaliação do real a nível de processos de identificação, identidades, pertença e relação.

O autor fundamenta esta sua posição construtivista nas afinidades e diferenças entre Durkheim e Piaget que, embora concordem que a interiorização da vida social requerida pela individualização crescente da vida social, foi resultante da passagem da solidariedade mecânica à solidariedade orgânica, discordam nas causas que atribuem a este fenómeno. Assim, enquanto o primeiro atribui a interiorização a modelos culturais, ao espírito da disciplina, do constrangimento e da ligação entre grupos sociais, em que assenta a "autonomia da vontade", o segundo considera que as trocas sociais que até um momento são vividas pelos mais novos, como relações de constrangimento, transformam-se em relações de cooperação, devido à aquisição, pelo sujeito, do sentido da justificação lógica e autonomia moral (cf. Dubar; 1997). Considera ainda que, dado que este processo de ligação entre estruturas lógicas e formas sociais de cooperação, decorre de desequilíbrios e reequilíbrios, da acomodação e da assimilação que são mediados simbolicamente, a análise cultural dos sistemas simbólicos e das

representações é importante para compreender como o indivíduo define e interpreta as situações vividas.

Para enfatizar que a reprodução social ou a adaptação das identidades provenientes da socialização primária é apenas um entre outros resultados possíveis da articulação primária e secundária dos aparelhos de socialização, Dubar refere a conclusão do trabalho de Percheron, sobre a socialização política das crianças que confirmou a hipótese de que "tanto as representações como as escolhas políticas não são transmitidas e constituídas de uma vez para sempre".

Para Dubar, as identidades são resultados simultaneamente estáveis e provisórios da socialização secundária que promova o domínio de um vocabulário, a interiorização de receitas e a incorporação de um programa correspondente à aquisição de um saber legítimo que permite a elaboração de estratégias práticas e a afirmação de uma identidade reconhecida.

As representações e escolhas são o resultado de um processo de renegociações permanentes no seio da família, na escola, na rua, no grupo de pares e, embora reconheça que há sistemas tipificados de "representações automáticas" que permitem respostas rápidas e estereotipadas às situações, o autor considera que estes são reutilizados de acordo com aspirações e experiências subjectivas (cf. Dubar; 1997).

A esta concepção relativista da sociedade, em que a socialização é abordada como desenvolvimento de uma competência de base que permite que o indivíduo se torne actor numa sociedade e segundo Van Van Haetch (1992) Perrenoud opõe a "teoria interaccionista do habitus", que propõe que se estudem as estratégias de socialização como "conjunto de práticas sociais que procuram dominar os processos de interiorização da ordem social pelos indivíduos, por meio da acção educativa explícita ou através do meio". A socialização é, neste caso, abordada como uma prática dos actores que é também uma política de controlo de habitus. Esta posição parece reclamar que se revisite a socialização como processo social aberto, mas dentro de limites que são estabelecidos pelo habitus produzidos pela socialização.

2.3 - Outros lugares e sentidos para revisitar e imaginar a Educação Introdução

Quando conseguimos resistir à pressão ideológica de explicar as desigualdades dos efeitos da educação em termos de capacidades inatas ou intrínsecas aos indivíduos, somos desafiados a lidar com a complexidade de um sistema social e cultural, que é organizado hierarquicamente e cujo equilíbrio depende da reprodução destas assimetrias. Cada indivíduo é "nó" de uma teia de relações sociais, cuja totalidade é mantida pela operação simultânea de agentes, que se articulam à diferentes níveis da organização social, no desempenho de práticas sociais diversificadas.

Se, ao aceitar este pressuposto, conseguirmos ainda resistir à tendência de explicar a acção individual em termos da sua funcionalidade do sistema sócio-económico, ou da correspondência entre subsistemas, então temos que enfrentar a difícil tarefa de descobrir o que liga a vida dos indivíduos e dos grupos à sociedade.

É desta perspectiva que a Educação pode ser objectivada não só como instancia que sanciona e legitima os comportamentos individuais, mas também como campo social específico que pode reproduzir ou alterar conjuntos de relações sociais transversais aos diversos segmentos sociais. É também neste sentido que a educação pode ser investida como recurso individual e colectivo, na desnaturalização de desigualdades que constituem como réus, aqueles que são prejudicados pela desigualdade estrutural.

É, enquanto espaço de posições e enquanto fonte de significados que constróem mediações entre sujeitos individuais e colectivos e destes com as estruturas sociais que Educação pode dar visibilidade e problematizar a "ordem comum das coisas" ; esta ordem que Bourdieu qualifica como "fonte de pressão e de opressão, que passa pela imposição de condições materiais de existência e de injunções surdas, mais dirigidas ao corpo do que ao intelecto e "que reproduz a violência inerte das estruturas económicas e sociais objectivas e os seus mecanismos de reprodução".(cf Bourdieu; 1997).

Concebida como mediação sócio-estrutural e sócio-simbólica, a educação pode constituir um meio desocultar os mecanismos ideológicos que justificam a definição da situação de alguns grupos sociais em termos de ausência e de défice: de conhecimento, de competência cognitiva, emocional ou social, de motivação ou de iniciativa.

Para romper com o habitus de atribuição causal das desigualdades a atributos mais do que aos recursos que efectivamente os sujeitos podem mobilizar para melhorar a sua posição nos campos sociais importa compreender mais profundamente o que constrange e o que facilita a acção e as tomadas de posição social que são mediadas pela educação. A educação requer ser vista como elemento constituinte da ordem social assimétrica e da cultura dominante que atravessam, estruturam e dão significado às relações sociais reproduzidas no espaço público e privado, através da acção social organizada na pequena e na grande escala que articula as práticas sociais de sujeitos individuais e colectivos. As evidências criadas pelas ideologias da modernização, do comunitarismo, do consumismo, da domesticidade e outras fazem pressupor consensos sociais e culturais que ocultam a distribuição e legitimação desigualitária do poder entre grupos reconhecidos como criadores e proprietários ou depositários, expropriados de capital simbólico.

A Educação requer assim ser revisitada como recurso que consolida, define e pode desestabilizar fronteiras dos e entre os campos sociais onde se sancionam diferentes tipos de capital simbólico.

Requer também ser vista como lugar estrutural que tem tido a sua "sede" oficial na Escola, enquanto contexto de interacção social e instância de poder simbólico que concorre com outras instancias e subjectividades não reconhecidas pelo sistema educativo, constituindo-se a este nível como campo de reprodução e de transformação social e cultural relativamente autónomo.

Finalmente a Educação requer ser entendida como fatia da vida da comunidade e como praxis de sujeitos que procuram apropriar-se da sua experiência como vida, como drama, reconstruindo-se a si mesmo como actores, hermeneutas e sujeitos.

2.3.1 A Educação como representação da realidade passível de reificar ou

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