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A decisão por um método que pudesse dar voz ao vivido

0. Introdução e justificação do trabalho

1.1.2. A decisão por um método que pudesse dar voz ao vivido

Cada método é uma linguagem e a realidade responde na língua que pergunta.

Angustiamo-nos com esta afirmação de Boaventura Sousa Santos extraída do seu

Discurso sobre as Ciências (1987) que nos confrontou com o compromisso e com o

peso das dúvidas e dos (re)sentimentos) que transportamos do nosso relacionamento face a face com as crianças e famílias em posição de subordinação e de exclusão social na comunidades.

Angustiamo-nos por reconhecer a desadequação da língua com que nos habituámos a construir a racionalidade da nossa intervenção comunitária no grupo de Águeda, para mediar o diálogo, o que seria dito pela nossa narradora e o que era dito a respeito dos mesmos temas pela comunidade científica.

A linguagem com que com que comunicávamos com a nossa narradora resultava de uma pragmática de comunicação centrada nos afectos, ao que se subordinava a racionalidade instrumental. O significados das experiência, das ideias, das ideologias e das crenças sobre a mudança social, eram construídos no face a face e através de

mensagens que eram sancionadas no próprio acto da comunicação. A linguagem com que apreendíamos as suas circunstâncias de vida, de discriminação e desvantagem face a oportunidades de participação e de mobilidade social, era construída com estes significados que eram reapropriados colectivamente, como uma das dimensões visadas

da praxis de transformação social.

Ao admitir que seria o método que definiria a linguagem que interpelaria e seria respondida pela realidade social construída discursivamente pela nossa narradora, ficamos diante do problema de como pôr em comunicação universos sociais tão distantes e que são construídos e vividos segundo línguas tão diferentes!

Que condições seria possível criar para mediar a escuta da sua história e construir visibilidade para a realidade social que ela transporta?

Que linguagens nos propunha a comunidade científica para descodificar o significado de um vivido, construído também sobre não ditos, como parte do que se quer comunicar?

Que conhecimento seria possível construir sobre um passado silenciado pelos que não podem falar sobre as circunstâncias que os oprimem?

Como garantir a prudência no uso do poder de nos pronunciarmos, nos nossos próprios termos, sobre estas mesmas circunstâncias, sem corrermos o risco de distorcer o significado real que estas têm para os que as vivem?

Como é que a metodologia das histórias de vida poderia dar ressonância ao silenciamento e ao desconhecimento sobre condições objectivas e subjectivas que tornam a educação o lugar em que os grupos com menor poder social vêm os recursos simbólicos adquiridos nos seus meios de origem e de inserção desqualificados como défice, responsável pelo insucesso e abandono escolar?

Todas estas questões poderiam ser talvez evitadas se adoptássemos outra metodologia que não a das histórias de vida, mas para nós esta opção foi o modo que encontramos de respeitarmos o compromisso de "dar vez e voz" ao vivido de mulheres e crianças cujo sofrimento silencioso é silenciado pela arbitrariedade de uma ordem social legitimada por argumentos racionais, considerados plausíveis, pelos grupos

dominantes e até pelos grupos dominados.

1.1.3 A intercompreensão presumida, a assimetria e a implicação como possíveis factores de "perturbação "

Logo que começámos com as entrevistas, apercebemo-nos da ingenuidade da perspectiva que nos levava a imaginar que a redefinição da relação instituída pelo contexto de investigação seria suficientemente clara para constituir a palavra da nossa interlocutora como fonte de entendimento da realidade social.

O que é que nos levaria a esperar um testemunho espontâneo e autêntico, sobre uma trajectória de vida que estava ligada e separada da nossa própria trajectória de vida, vivida na mesma comunidade, na qual ocupávamos posições tão assimétricas ? O que é que nos levaria a supor que a nossa narradora daria testemunho, em primeira pessoa, dos problemas sociais que poderiam ser considerados relevantes para o nosso estudo?

A fragilidade das condições de possibilidade de conhecimento que até então havíamos criado, perturbava o nosso próprio pensamento, em sucessivas tentativas de definir um problema do qual éramos parte. No nosso pensamento, confluíam e sobrepunham-se diferentes versões "teóricas" que pareciam dispensar o esforço de análise e interpretação da realidade, que ia sendo natural e presumidamente inter- compreendida na relação de investigação.

A objectividade que procurávamos assegurar tecnicamente e pelo reenquadramento social da narrativa como documento, não estava a ser suficiente para escapar às ideias pré- construídas. Por outro lado, a compreensão dos fenómenos parecia depender da ampliação do ângulo de observação sobre fenómenos que tendíamos a definir nos mesmos termos com que estávamos habituadas a regular e a reflectir sobre a nossa prática de intervenção profissional e social.

e entre Staff Callewaert e Luíza Cortesão , que "afectaram" criticamente a forma como procurávamos criar a "objectividade" de uma realidade, fortemente subjectivada.

A ruptura com a coerência interna do discurso com que apresentávamos dados que pensávamos ter apreendido objectivamente, sem interferência das nossas percepções e inferências, deu-se quando demos ênfase ao facto da nossa narradora não assumir o lugar de vítima das condições objectivas de precariedade e opressão que nos indignavam. Ao enunciar os problemas sociais que pareciam evidenciar-se naqueles dados, o nosso pensamento parecia ser atravessado pelo fluxo da realidade que queríamos analisar.

O ponto crítico deste diálogo com Callewaert esteve na procura de justificação para o inesperado da atitude existencial da nossa narradora, através de pré- interpretações da sua situação, o que nos confrontou com o padrão social que informava os nossos juízos de realidade e de valor.

Constatámos que a atitude que esperávamos reconhecer na D. Silvina correspondia à que nós próprias teríamos assumido, disposição que foi denunciada pelo seguinte reparo do nosso interlocutor:

"Porquê procurar causas psicológicas para explicar esta atitude existencial que pode ser encontrada em outras pessoas que vivem nas mesmas condições e posição social ? "

"Fascinação", foi como ele qualificou esta forma de imaginar a realidade de um outro como reflexo do próprio ponto de vista, definido pela posição ocupada no campo social que se objectiva com uma linguagem auto-referenciada.

Como "antídoto" deste jogo de imagens com que tendemos a construir a realidade social em que estamos implicados, Callewaert sugeriu que puséssemos em cena todos os pontos de vista a partir dos quais definíamos a situação das mulheres daquela

4 Diálogos que ocorreram no âmbito do seminário de investigação do Mestrado Educação e Diversidade Cultural

(1998) em que se discutiu a possibilidade de transformação da realidade social, a partir do diálogo entre saberes constituídos como cultura científica, no contexto académico e os saberes constituídos na pratica de resolução de problemas emergente em processos de intervenção sócio-educativa. Seria possível construir um outro conhecimento que, recorrendo a racionalidades diferentes, poderia tornar-se instrumento de transformação social?

família e daquele grupo considerando, no entanto, que:

pontos de vista são como o termómetro...o que nos dão é uma medida da febre a febre é outra coisa a compreender.

No diálogo que se sucedeu com Luíza Cortesão, pudemos descobrir que

a implicação é uma "lente que amplia, mas que também pode distorcer a realidade ".

Esta afirmação levou-nos a revisitar Barbier (1985), que integra a implicação como recurso no processo de produção de conhecimento social. Para o autor, a implicação histórico- existencial pode constituir uma fonte de intuições e de hipóteses de base; a implicação psico- afectiva gera condições para ir mais além da comunicação sobre a investigação; e a implicação estrutural profissional, pode orientar a procura de elementos que tenham sentido para o trabalho social em que estamos envolvidos. O autor refere, no entanto, que podendo ser apropriada como recurso, a implicação pode também constranger a possibilidade de conhecimento, se forem ignorados os mecanismos de defesa contra aquilo que questione fundamentos da personalidade e o poder de reprodução do habitus que reproduzem esquemas de pensamento e de percepção sistemáticos que estão ligados à profissão e socialização de classe.

A questão, para Barbier (1985), não se coloca em termos de aceitar ou rejeitar a implicação como factor constitutivo da investigação, ou como condição de possibilidade de conhecimento, porque se trata de uma realidade vivida que não resulta, portanto, da vontade consciente, da intencionalidade ou de escolhas..

Para lidar activamente com a implicação, pensamos que é importante considerar o modo como Bourdieu e Santos analisam a possibilidade de distorção da realidade construída como intersubjectividade ou como representação das relações sociais enquanto totalidade.

1.1.4 A "reflexividade reflexa" como modo de transformar obstáculos em

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