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A Educação como fenómeno de produção, selecção, oficialização e redistribuição de saber-poder

0. Introdução e justificação do trabalho

2.2. Para 1er a experiência de quem é habitada pelo mundo social que habita

2.3.2 A Educação como fenómeno de produção, selecção, oficialização e redistribuição de saber-poder

Morrow e Torres consideram que as teorias da reprodução social e cultural, nas quais incluem a leitura da realidade da educação elaborada pelos teóricos funcionalistas, marxistas e neo-marxistas, críticos e pós estruturalistas, partilham algumas características analíticas, tais como a visão da sociedade como unidade complexa, a valorização das instituições educativas formais e especializadas, como pólos estratégicos para a estabilidade e para o desenvolvimento de sociedades com certo grau de complexidade, a perspectiva de que a interacção entre instituições e sociedade é recíproca e que a elaboração de políticas na esfera da educação constitui um contexto crucial de negociação e luta que pode ter efeitos decisivos na capacidade da sociedade.

O que as distingue é o facto das primeiras imaginarem a escola como substituição da igreja, enquanto instituição socializadora central na integração da sociedade e na manutenção da ordem social, enquanto que as outras problematizam esta relação de continuidade (tendencialmente "harmoniosa" e harmonizante) entre educação e sociedade. Assim, há teorias que concebem a educação como instância de socialização e integração social estratégica na disputa de poder simbólico por grupos concretos e outras há que partem do pressuposto de que a educação é um contexto primário de resocialização e de integração social que reproduz os interesses da classe dominante, (cf Morrow e Torres; 1997).

A educação passa a ser entendida como fenómeno que não é totalmente funcional ao sistema social como totalidade e menos seria se não houvesse no seu interior mecanismos que constrangem a possibilidade de uma tomada de consciência crítica do arbítrio cultural que legitima as circunstâncias de dependência e marginalidade social, que mantém os grupos oprimidos, como pólos da dialéctica constitutiva do opressor. Arbítrio que Bourdieu reconhece como resultado da luta de interesses entre grupos sociais para aumentar ou por manter o seu capital cultural e simbólico; capital que, ao ser reconhecido, pode converter em poder simbólico o capital económico concentrado por alguns grupos privilegiados.

Achamos, assim, fundamental, situarmo-nos, embora não exclusivamente, do ponto de vista das macroestruturas, ou seja, no campo onde a representação social da educação foi apropriada como lugar de acreditação de umas e não de outras formas culturais e como dispositivo de reprodução do conceito de "mérito". Conceito esse que é legitimado e que legitima o acesso diferenciado dos grupos sociais a condições de vida que os diferenciam, em termos de oportunidades de acesso a bens materiais, sociais e culturais. Conceito que oculta a não correspondência entre oportunidades de

acesso a e acesso a oportunidade de, o que prejudica estruturalmente e não apenas

individualmente, os grupos sociais que são representados como indicadores negativos ou disfuncionais nas análises estatísticas com que se tende a avaliar o impacto democratizante da educação.

A competência social e cultural dos grupos em posição de desvantagem e a sua realidade sociológica são, neste contexto, imaginados a partir da correlação estatística que se estabelece entre classe social e mobilidade escolar, como se um grupo social correspondesse a uma população constituída como agregado de características isoladas.

Situarmo-nos no tempo e no espaço mais amplos das relações sistémicas que apreendem a sociedade e a cultura como totalidade, permite não só apreender as assimetrias que são reproduzidas a partir de um arbítrio cultural, estabelecido pelos grupos dominantes, mas também apreender raízes da produção de consentimento para esta relação que é de dominação.

Permite entender que a violência faz parte e se reproduz na "ordem comum das coisas", na qual alguns grupos têm que sobreviver, enquanto que outros podem dela tirar vantagem ou se emancipar pela tomada de consciência crítica da sua participação activa ou passiva na sua manutenção e legitimação.

A Educação pode, então, ser reconhecida como fenómeno de produção e reprodução de significados específicos que dão o sentido a ligações das pessoas consigo próprias e com os outros, que tanto podem ser percepcionados como iguais, como semelhantes ( embora não idênticos) ou como diferentes e estranhos, estrangeiros do mundo em que construímos colectivamente leituras dos acontecimentos passados, presentes e futuros, que nos tornam contemporâneos da história, como "unidade composta pela diversidade", como diria Ascher.

Compreender este facto, talvez nos permita pressupor, embora sem poder ainda compreender ou explicar suficientemente, por que a história de vida desta mulher, embora pareça, não é uma "réplica" da história de vida da sua mãe, porque foi simbólica e subjectivamente transformada em luta pela autonomia e resistência contra a adversidade que poderia ter condenado as suas filhas e netas a se tornarem "replicas" da sua vida de pobreza, exploração e opressão. Permite também pressupor que esta possibilidade de ressignificação e recontextualização da sua trajectória de vida, num universo simbólico, povoado de culturas e de configurações culturais híbridas, não foi suficiente para evitar a reprodução de condições de subordinação, dependência e também de opressão a que submeteu directamente as suas filhas que, pelo menos num dos casos, reproduz na relação com duas delas.

O que nos interessaria agora seria estimar em que medida esta diferença e semelhança de trajectórias, que dão visibilidade aos conteúdos e de processos de socialização primária e secundária e de ressocialização, que garantem a possibilidade de reprodução da sociedade e da cultura, foram ou não permeáveis aos significados que a Educação Pública se propõe difundir e desenvolver, enquanto projecto de democratização social.

Embora a trajectória educativa e formativa da D. Silvina resulte de práticas e de ideias que circulam fora da escola, da aula e da classe escolar, ou seja, fora dos âmbitos de convivência que vinculam as crianças e adultos aos modelos sociais que veiculam os quadros valorativos e políticos do Estado como promotor da educação pública, não podemos ignorar a sua inclusão no universo social e simbólico que passa a ser configurado pela cultura escolar. Universo no qual a nossa narradora procura aceder no seu esforço de adaptação ou ajuste à ordem social dominante, na qual se pode construir como cidadã, se não do Estado, pelo menos do Mundo e do Mercado, trazido para a sua vida quotidiano através dos média.

No entendimento que procuraremos construir sobre a educação da D. Silvina, queremos manter a percepção desta tensão entre a representação da educação como espaço de (re)produção da cultura oficial e da ordem social e da educação como luta de quem, sendo construído pelo mundo, quer transformá-lo na objectividade das suas estruturas e nas interacção sociais que formam e transformam identidades sociais e subjectividades particulares.

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