• Nenhum resultado encontrado

A "reflexividade reflexa" como modo de transformar obstáculos em recursos

0. Introdução e justificação do trabalho

1.1.4 A "reflexividade reflexa" como modo de transformar obstáculos em recursos

Segundo Bourdieu (1998), a "reflexividade reflexa" é a atitude que torna possível transformar a familiaridade entre os interlocutores e as suas possíveis homologias de posição em recursos de investigação, na medida em que cria a possibilidade do investigador perceber e controlar os efeitos da estrutura social na condução da entrevista. Tais efeitos são criados pelo facto da relação de pesquisa continuar a ser uma relação social que se faz sentir sobre os resultados obtidos, não havendo, no entanto, "maneira mais real e mais realista de explorar a relação de comunicação na sua generalidade do que nos atermos aos problemas inseparavelmente práticos e teóricos que decorrem do caso particular de interacção entre pesquisador e aquele que ele interroga" (1997:693).

Esta posição de Bourdieu encorajou-nos a reflectir sobre as potencialidades contidas em muitas afinidades que emergiram, como elementos da nossa relação, na situação de entrevista, que derivam não só dos antecedentes do nosso relacionamento com a entrevistada, centrado na preocupação com o bem estar, desenvolvimento e aprendizagem das suas filhas e netas, como também do facto residirmos na mesma freguesia e de aí partilharmos a condição de não-naturais, percepção que é reforçada por alguns momentos em que os naturais procuram revitalizar pertenças, pela definição de não pertenças identitárias5. Por outro lado e embora salvaguardando as diferenças

atribuíveis à classe social, há as afinidades da condição feminina, que impuseram a ambas uma integração social com sede no espaço doméstico, apesar da nossa intensa participação no espaço do emprego e da comunidade que, de qualquer forma, foi

5 Refira-se só a título de exemplo a celebração da "volta ao termo" anual, em que os notáveis da freguesia e

outros elementos das associações locais, vão visitar os marcos que delimitam do território da freguesia. Outro exemplo é a existência de uma Confraria, que reúne os mordomos - maioritariamente naturais - que visa conservar algumas tradições da festa religiosa anual, como os carros de boi, que antes constituíam o meio de transporte na romaria das Almas da Areosa. Refira-se também que a Associação que presta homenagem à personalidades de mérito no Concelho de Águeda é designada ANATA ou seja Associação dos Naturais de Águeda.

constrangida não só pelo ciclo de reprodução familiar, mas sobretudo pela dominância do poder e cultura patriarcal.

Bourdieu (1998) refere que a "cumplicidade entre mulheres" pode criar condições de possibilidade de franqueza social e de compreensão simpática que permitem superar "obstáculos ligados a diferenças entre condições e particularmente o temor de desprezo de classe que vem redobrar o receio, muito geral, se não universal, da objectivação"(1997: 699). A permutabilidade dos papéis dos interlocutores da entrevista protege os sujeitos entrevistados contra o risco de verem "as suas razões subjectivas reduzidas a causas objectivas; suas escolhas vividas como livres, reduzidas aos determinismos objectivos revelados pela análise" (1997).

A proximidade que antes nos parecia constituir um obstáculo à escuta, constituiu um recurso fundamental para lidar com a memória de incidentes dramáticos ou de simples acontecimentos quotidianos relacionados com as crianças da família. Criou condições especiais de empatia e de respeito mútuo, num processo que, tal como refere Bourdieu, é sujeito a "não ditos, censuras e estímulos que impedem ou encorajam os sujeitos a dizer ou acentuar certas coisas" (Bourdieu; 1997)

Julgamos que assim ficamos mais próximos da "possibilidade de acedermos ao vivido, às coisas que as pessoas têm "enterradas" nelas e que, embora não conheçam, as conhecem melhor do que ninguém", o que requer o "conhecimento aprofundado das condições de existência de que elas são produto e dos efeitos sociais que a situação de pesquisa e, através desta, possam ser exercidos pelas suas posições e disposições primárias" (1998).

A reflexão sobre a nossa implicação tornou, afinal, mais possível lidar com a ilusão do já visto e do já ouvido que, segundo o autor, pode favorecer a "semi-compreensão imediata do olhar distraído e banalizante" ou a "indiferença da atenção" que limita as possibilidades de "entrar na singularidade da história de uma vida e a tentar compreender, ao mesmo tempo, na sua unicidade e generalidade, os dramas de uma existência". Tornou mais possível o situarmo-nos em pensamento, no lugar que esta mulher ocupa no espaço social para "precisar e decidir pelo seu ponto de vista e não

nos projectarmos nele" (1998).

O que parece ser importante ter aqui presente é que, se em alguns momentos das entrevistas estas afinidades reais atenuaram a assimetria de posições sociais, noutros momentos fomos confrontadas com os efeitos mais ou menos explícitos desta assimetria, o que constituiu, não um obstáculo intransponível, mas um imprevisto que foi sendo "trabalhado" pela narradora e narratária no contexto imediato da relação.

Temos bem presente um ou outro momento6 em que fomos confrontadas quase

explicitamente com os efeitos da estrutura social sobre a relação de investigação, o que foi resolvido com a recontextualização da relação que orientou o diálogo para os critérios de auto-apreciação social da narradora. Nestes casos, os contratos de investigação, narrativo e autobiográfico, constituíram um recurso por excelência, na medida em que permitiram reactualizar as expectativas recíprocas relativas à situação, às finalidades e à relação particular necessária ao trabalho da investigação.

Quanto às diferenças dos hábitos de comunicação e do capital linguístico mobilizados na interacção, foram também resolvidos com o trabalho continuado sobre o contexto e na reformulação, especialmente cuidadosa, do discurso da narradora ou das questões relacionadas com o conteúdo da interacção em causa. A implicação revelou-se, assim, um recurso a ser utilizado "de forma inteligente e crítica", como defende Luíza Cortesão (1998).

Pudemos, pois, requalificar como mais valia da investigação, a proximidade e a implicação, desde que sejam reapropriadas como condições de possibilidade de conhecimento criadas pela "reflexividade reflexa". No nosso caso, esta situação tornou possível, por exemplo, a reformulação de ressentimentos contra a discriminação por parte de residentes na "comunidade" que vivem nas mesmas condições de precariedade. Permitiu também abordar o facto da nossa narradora recusar identificar- se com os que são acusados de falta de competência e de disposição para o esforço de

Veja-se por exemplo a 2a entrevista, em que a notícia da morte da Princesa Diana é o tema com que a nossa

narradora explicita alguma indignação pelo facto das nossas acções "voluntárias" não serem reconhecidas na comunidade. A recentração do diálogo na história de vida da nossa narradora, pôs a descoberto um mecanismo de identificação social que lhe serviu para expressar a própria subjectividade e protagonismo social na comunidade.

trabalho. Tomou também possível reconhecer a arbitrariedade social latente nos processos de diferenciação das trajectórias de mobilidade social. Esta situação, ao mesmo tempo que era naturalizada pela nossa narradora, era também objecto da sua indignação, com a tomada de consciência de que o facto de ter vendido, até à exaustão, a força do seu trabalho em diversas actividades, não foi suficiente para escapar à condição de mão de obra barata, desqualificada e disponível para manter o ritmo de desenvolvimento industrial no qual participou.

Que mecanismos sociais e efeitos psíquicos e sociais poderiam justificar esta tomada de posição tão ambígua e contraditória?

Outline

Documentos relacionados