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A Recepção do Jornal Nacional

No documento PORTCOM (páginas 130-134)

É no mesmo capítulo introdutório em que examina as características da chamada indústria cultural em termos globais e no âmbito das especificidades de América Latina e Brasil – e que, a considerar o foco firmemente mantido pelo autor sobre as produções dos meios de comunicação de massa, hoje, talvez nomeássemos simplesmente mídia –, que Lins da Silva apresenta com grande riqueza de detalhes e contextualiza o Jornal Nacional, da Rede Globo.

Na verdade, “uma das raríssimas expressões do jornalismo brasileiro que con- seguiu atingir a plenitude simbiótica do pesquisador acadêmico e do jornalista profissional” (p. 10-11), como o qualifica, no prefácio do livro, José Marques de Melo, observando que tal reunião constitui “uma façanha intelectual”. Lins da Silva abre esse capítulo com o que podemos tomar como um lead belamente construído, pouco importa se pela métrica do new journalism norte-americano

ou do refinamento literário somado à precisão da informação próprio de alguns grandes textos da imprensa brasileira. Vejamos:

Todos os dias, centenas de pessoas remuneradas por uma empresa or- ganizada com objetivo de lucro trabalham em conjunto em dezenas de municípios espalhados por todo o Brasil e alguns países do Mundo para que às 19h55m cerca de metade da população do País assista a uma série de informações por eles preparadas através de sofisticada divisão de tarefas.

Outras centenas de indivíduos, igualmente pagos pela mesma empresa tratam de, diariamente, comercializar o tempo conhecido como ‘interva- lo’ que separa cada bloco de notícias. Em dezembro de 1983, cada trinta segundos deste tempo custava, para quem tivesse a intenção de veicular uma mensagem a todo o Brasil, a bagatela de Cr$15 milhões (p. 19).

Observada a elegância desse começo, lembremos que a população do país era, em 1983, de aproximadamente 120 milhões de habitantes, como nos in- formará Lins da Silva mais adiante (p. 26). Portanto, ele está nos dizendo que cerca de 60 milhões de brasileiros postavam-se diariamente à frente do aparelho de televisão para assistir o telejornal em foco. Hoje, a população ultrapassa os 190 milhões de almas e a média de audiência do JN está em 25 milhões de pessoas, uma massa ainda formidável de telespectadores que, entretanto, não deixa margem a dúvida de que a época do quase monopólio do telejornalismo da Globo ficou, há muito, definitivamente para trás. Mais do que isso, o pró- prio predomínio da TV aberta em seu modelo tradicional já vai se desenhando há algum tempo como fenômeno histórico ligado à comunicação linear, desde que nos encontramos numa era de múltiplos formatos da mídia eletrônica e de cruzamento incessante de tecnologias de informação propiciados pela infraes- trutura da comunicação digital em rede, cujos desdobramentos futuros somos ainda incapazes de prever.

Pelos dados oficiais de 1982 apresentados em Muito além do Jardim Bo-

tânico, o Brasil tinha então quase 24,6 milhões de domicílios, dos quais 15,7

milhões dispunham de aparelhos de televisão, “o que significa que 71.389.000 [...] de brasileiros podem ser atingidos pela TV”, dado que o autor oferecia tam- bém para ressaltar o quadro desconexo da estrutura da comunicação de massa no país. Por isso mesmo ele completa a frase com o comentário, “mas a tiragem total de jornais não alcança a casa dos 2 milhões de exemplares” (p. 26).

Em fevereiro de 2013, ao divulgar os resultados mais recentes da Pesqui- sa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), o Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE) informou que o país tem 58,6 milhões de do- micílios, dos quais 95,7%, portanto, 56 milhões de residências, dispõem de televisão. Seguindo a linha adotada por Lins da Silva no desdobramento dos dados, e ressalvando que hoje, de acordo com o IBGE, o número médio de moradores por domicílio no país é de 3,2 pessoas (contra 4,5 moradores em 1983), isso significa que 179,2 milhões de brasileiros podem ser atingidos pela TV.

De forma geral, a comparação dos dados de 1983 com os atuais nos permite ver que, se o JN dirigia-se no começo dos anos 1980 a metade da população brasileira, hoje ele consegue por diante dos aparelhos de televisão apenas 13% dessa população e, ainda assim, mantém o status de mais influente e mais assis- tido telejornal brasileiro. Por aí se tem uma indicação do tamanho da mudança ocorrida no panorama da comunicação de massa no país em três décadas.

Em linhas esquemáticas, o telejornal que emerge das páginas de Muito além

do Jardim Botânico (p. 38-43), na primeira metade dos anos 1980, é “o segundo

noticioso do mundo em termos de número de seguidores e tem um impacto considerável sobre a opinião pública”. Na época, o primeiro era o CBS News, dos Estados Unidos, conforme nota o próprio autor. Levado ao ar pela primeira vez em 1º de setembro de 1969, tempo de endurecimento do regime ditatorial que tomou o estado brasileiro de 1964 a 1985 – coincidência que não é gratuita e que Lins da Silva enfatiza – “o JN inaugurou um novo estilo de jornalismo na TV brasileira”. Por que? Primeiro, ele responde, por iniciar o modelo de jornal apresentado em rede nacional no país, depois, por submeter os fatos a uma fragmentação em tempos curtíssimos, com enorme obsessão pelo “agora” e desprezo pelo background que ajudaria os telespectadores a contextualizarem a notícia. Em terceiro lugar, “porque consagrou um estilo de apresentação visual requintado e frio, pretensamente objetivo, em que o locutor mostra-se formal e distante e os efeitos especiais e teipes têm importância decisiva, como nunca até então no telejornalismo brasileiro”. Por fim, o autor destaca a extensão da cobertura do JN, com seus escritórios e correspondentes no exterior e nos vários estados do país e o fato de ter-se transformado no principal, senão no único meio de informação dos brasileiros, “sua ponte com o país e o mundo”. Aliás, ressalta, “uma ponte trôpega e enganadora, como qualquer análise crítica mais rigorosa demonstrará, mas – em função do virtual monopólio – de fundamental importância para o país”. Segundo o autor:

Os critérios de seleção de informação [...], aliados à identificação pro- funda existente entre a emissora e o regime militar, por certo foram fatores para a linha editorial oficialista e triunfalista que marcaria o de-

sempenho do Jornal Nacional durante toda a década de 70, tempos de ‘milagres econômicos’, ufanismo nacionalista e consolidação do império global (p. 38).

Para dar uma ideia do poder do JN de impactar a opinião pública, Lins da Silva relata o interessante resultado de uma reportagem levada ao ar em outubro de 1983, que mostrava a incineração de pintinhos por produtores insatisfeitos com o preço de mercado das aves. Isso “fez com que mais de 50 mil pessoas indignadas de todas as partes do país ligassem para as afiliadas da Globo e para a Central do Rio de Janeiro, congestionando todos os troncos da Globo no país” (p. 41).

Lins da Silva detém-se no telejornalismo (p. 33-38) e observa como sua exis- tência está vinculada ao fato de a exploração de canais de televisão ser, de modo geral em todo o mundo, uma concessão do Estado. E isso porque entre as regras da concessão que ele estabelece usualmente está a obrigatoriedade de prestação de serviços informativos ao público.

Embora possa ter grandes audiências, o telejornalismo, comenta o autor, “é tido originalmente pelos empresários de televisão como um gênero de progra- ma pouco atrativo em termos de público”, um tipo de programação capaz de render mais prestígio do que dinheiro. Ele recorre a Edward Jay Epstein (News

fromnowhere, New York, Vintage Book, 1974, p. 91) em sua argumentação de

que, ao contrário do que acontece na imprensa, que pode atrair seus consumi- dores apenas pela qualidade do noticiário que é capaz de produzir, o jornalismo na televisão “depende substancialmente de fatores que lhe são externos”, com destaque para “a abrangência geográfica da rede que o transmite e o chamado ‘fluxo de audiência’ que ele herda dos programas que o antecedem ou recebe da expectativa gerada pelos que o sucedem” (p. 34).

Lins da Silva constata que por essa lógica “a estratégia da Rede Globo quan- do decidiu lançar o Jornal Nacional em 1969 foi absolutamente perfeita”.

Aquele seria o programa de prestígio da casa. Para que tivesse uma au- diência garantida, ficaria espremido entre duas telenovelas, já então o gênero mais popular e com uma fórmula que se mostraria imbatível ao longo dos anos: às 19 horas, um enredo mais leve e bem-humorado e às 20 horas outro mais adulto e dramático. No meio delas, um telejornal que desse à dona-de-casa o tempo certo para colocar o jantar na mesa e ao chefe de família a chance de inteirar-se, mesmo que superficialmente, dos principais assuntos do dia (p. 35).

No documento PORTCOM (páginas 130-134)