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Marcas da Trajetória de um Pesquisador Humanista

No documento PORTCOM (páginas 91-96)

José Manuel Morán viveu em Vigo, onde nasceu, até os 10 anos. Depois, foi para o Colégio interno, onde fez o Ensino Fundamental e Ensino Médio, em León, norte da Espanha. Lembra que a direção do colégio escolhia alguns estudantes que aparentavam ter condições de seguir carreira religiosa, o que foi incentivado pela família, principalmente pela mãe e avó. Com 16 anos, em 1962, entrou para o noviciado, o que é chamado de provação, em Salamanca. Depois, fez o juniorado, que corresponderia ao curso de Letras. Tinha a opção de cursar Filosofia. Havia, então, na época, um convênio entre a Espanha e par- te do Brasil. Em função desse convênio, em 1967, Morán veio para o Brasil cur- sar Filosofia, em São Leopoldo, em uma faculdade dos jesuítas, chamada Nossa Senhora Medianeira Brasil. Nesse meio tempo, entre os ajustes de semestre, fez seis meses de estudos em Milão, sobre Televisão e Cinema.

O Curso de Filosofia, no Brasil foi sendo feito, com o aproveitamento de créditos dos estudos clássicos que havia cursado na Espanha. Concomitante- mente com os dois últimos anos, ele foi para Buenos Aires, onde começou a estudar Televisão, na Universidad del Salvador. Nas férias, viajava para o Brasil e fazia cursos de férias, na faculdade de filosofia, para ir terminando os créditos faltantes.

Morán conta que foi em Buenos Aires onde teve a primeira crise, em relação a seguir a vida religiosa, como jesuíta. “Comecei a me questionar. Foi um perío- do difícil, uma decisão difícil, mas acabei optando por seguir em outra direção”, afirmou. Quando voltou ao Brasil, foi para São Leopoldo, cursar Bacharelado em Teologia, no Colégio Cristo Rei, uma das instituições que resultaram na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Quando faltava um ano para ser licenciado, Morán já podia se ordenar, mas decidiu abrir mão da vida religiosa. Lembra que foram questionamentos difíceis, porque, durante todo o tempo de estudo com os jesuítas, vivia num mundo à parte, em certo sentido “protegido”. Teve, então, que enfrentar muitas mudanças. Seus planos, na épo- ca, envolviam o projeto de continuar em Porto Alegre, já que tinha sido contra- tado para dar aulas na Unisinos e na Pontifícia Universidade Católica (PUC). Isso ocorreu até que um colega sugeriu que ele fosse fazer mestrado na ECA. A

ideia pareceu interessante, ele conseguiu a vaga, mas pensava, inicialmente, em voltar para Porto Alegre, o que acabou não ocorrendo. O tempo do Mestrado foi decisivo para que ele construísse raízes em São Paulo, o que ele comenta, brincando consigo mesmo e com suas escolhas: “não foi sinal de inteligência”.

Durante o período do mestrado, ele conheceu sua primeira mulher e os dois tiveram o primeiro filho. Nesse tempo, o pesquisador começou a conciliar a pesquisa com aulas em faculdades locais, como a FAAP, Anhembi Morumbi, a Escola Superior de Propaganda. Ele também fez um estágio na TV Cultura. Então, seguiu fazendo o mestrado e lecionando, para sustentar a família. Seu orientador foi Paulo Emilio Sales Gomes, que era crítico de cinema e ligado à elite cultural de São Paulo. Ele era casado com Lígia Fagundes Teles. Morán fala com carinho do orientador e das conversas de orientação que foram consoli- dando uma amizade forte. Nesse sentido, salienta o quanto foi difícil a morte desse professor, durante o processo de orientação e, também, seguir fazendo a pesquisa e a dissertação. A dissertação era sobre televisão, sobre contradições e perspectivas, o que fazia com que a visão do intelectual ligado à esquerda con- tribuísse muito. Morán conta que, depois da morte do orientador, demorou a conseguir retomar a dissertação. Em 1982, concluiu o Mestrado, defendendo a dissertação, com o título Contradições e Perspectivas da Televisão Brasileira.

Morán também participou de uma série de trabalhos com comunidades e escolas sobre a leitura dos meios de comunicação. Eram trabalhos envolvendo a comunidade, em que eles participavam ativamente, produzindo uma recepção crítica. Também nesses projetos, Morán ia construindo as práticas de envolvi- mento direto dos sujeitos no processo de produção de conhecimento, conheci- mento que, segundo ele, se produz vivendo ativamente o processo, não apenas ‘consumindo’ saberes do outro.

Nas recordações, o pesquisador ressalta o tempo de atividades na Universi- dade Metodista de São Paulo, com professores como José Marques de Melo e Ismar Oliveira. Lembra que havia ali um projeto de Leitura Crítica da Comuni- cação (LCC), do qual ele foi coordenador e que também marcou sua trajetória acadêmica e profissional como um todo. Conta que as ações do projeto envol- viam estudos ligados ao movimento de consciência crítica forte aos meios, como espaço de manifestação das pessoas. “Era de crítica à falta de democratização dos meios de comunicação, crítica a ações da Rede Globo, por exemplo”.

Em 1982, Morán iniciou o doutorado que concluiu em 1987. O longo período de curso deveu-se ao fato de que ele seguiu trabalhando, como pro- fessor, enquanto fazia a pesquisa. Conta que trabalhou, também, no Colégio Santa Cruz, de São Paulo, que era ligado aos padres canadenses, cuja obra era referência na época. No doutorado, fez uma análise de movimentos de recepção

aos meios de comunicação, estudando uma série de projetos, como o projeto Seneca, do Chile, entre outros. A pesquisa e seus trabalhos nos movimentos e como professor seguiam na direção de uma perspectiva de alfabetização para as mídias, de compreensão de como ocorre a midiatização das informações, então, no sentido de crítica aos meios de Comunicação Social.

Em 1985, Morán começou o trabalho como professor da ECA/USP, em tempo parcial, e, em 1989, assumiu o cargo de professor em tempo integral na instituição. Lembra que gostava muito de trabalhar nas outras universidades, como a Metodista, mas o deslocamento se tornava pesado, para o cotidiano. Por isso, teve que optar e se fixou como docente do Centro de Televisão e Rádio (CTR). Aposentou-se na USP, na virada de 2001 para 2002.

Dos estudos de recepção, Morán migrou para os estudos de tecnologia na educação. Participou ativamente do lançamento de um dos grandes projetos da ECA/USP ligado à temática, que se chamou Escola do Futuro, em parceria com o professor Frederic Litto. Só que a visão de aproveitamento das tecnologias no ensino não ofuscou uma preocupação maior com o processo de aprendizado, que teve como fonte a educação humanística da formação jesuíta e, como refe- rencial teórico importante, os estudos de Paulo Freire e Carl Rogers, segundo o próprio Morán.

De Rogers, em especial, a ideia de tornar-se pessoa, com ênfase na comu- nicação interpessoal e não diretiva. Esse entendimento foi sendo associa- do à linha humanista da formação jesuítica e também da visão de Paulo Freire. Então penso que daí vem a base da abordagem da comunicação interpessoal, voltada não apenas para a recepção aos meios, mas à edu- cação escolar. Penso que essa perspectiva se constituiu a linha mestra dos meus estudos e da minha ação como educador. (MORÁN COSTAS, informação verbal, 2013)

Com o trabalho na Escola do Futuro, Morán seguiu suas atividades em pro- jetos voltados para a análise e desenvolvimento do uso de tecnologias comuni- cacionais em redes, em processo de apoio de flexibilização de tempos e espaço. Essa perspectiva foi sendo desenvolvida em paralelo, na Escola do Futuro e com projetos de aprendizagem com os alunos de pós-graduação na ECA. “Eu ia transformando a aula em projetos de pesquisa, de produção de conhecimento e em processos de transformação da própria lógica e prática de desenvolvimento das relações de ensino-aprendizagem”. Lembra que essa transformação foi sen- do feita, a partir de ações simples, como a criação de página para compartilhar textos, a ida do grupo de estudantes para o laboratório de informática, onde se

criava outra condição e processo de aprendizagem. “Fui abrindo possibilida- des de mescla de momentos presenciais e virtuais, com muita produção, mas também iniciava um processo em que os cursos deixavam de ser totalmente presenciais, na perspectiva de uma aprendizagem híbrida, que hoje é uma das tendências da Educação”.

Essas atividades e experimentos foram desenvolvidas a partir do ano de 1991. São ações que levaram à compreensão da necessidade de transformação do pro- cesso de ensino-aprendizagem, contemplando o auxílio direto e intenso das tec- nologias e, ao mesmo tempo, já sinalizavam para como essas mudanças poderiam ocorrer. Morán diz que a cada ano foi aprimorando, incorporando algumas ini- ciativas que mesclavam o presencial com o virtual e afirma: “Entre 1996 e 1997, transformei o curso em semipresencial”. A mudança, a inovação, seja ela tecno- lógica ou nos processos de aprendizagem, em termos de metodologias e pres- supostos, também enfrentou resistências. O educador afirma que nem sempre foi bem compreendido por alguns colegas, que estranhavam a desconstrução do modelo de aula, questionando bastante o fato de que se produzia outro tipo de interação com os alunos e ampliava-se a importância das vinculações e produções compartilhadas pela internet. Era a proposição de outro modelo, mas não só pela presença forte das tecnologias de informação e de interação. A novidade também dizia respeito ao modo de vincular-se, humanamente, descontruindo o lugar central de poder do professor e instalando um processo de redes de aprendizagem em que o professor segue aprendendo em todo o processo, ao mesmo tempo em que o coordena. A força da tradição na formação de alguns colegas, segundo o professor Morán, fazia com que eles estranhassem e até se incomodassem com o modo como ele conduzia os processos com seus alunos. Ao mesmo tempo em que ia percebendo, com os alunos, que estava no caminho certo, enfrentava re- sistências fortes, difíceis de lidar, às vezes. “Posso dizer cheguei a ficar um pouco marginalizado, em alguns momentos, por parte dos colegas que não compreen- diam o que eu estava fazendo e a seriedade da transformação. Mas eu sempre tive referencial teórico que me sustentasse. Não era um experimento qualquer, mas mudanças orientadas por convicções de vivência e também de teoria”.

Nos anos de 1990, foi aprovada a possibilidade de implantação do Ensino a Distância, pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB). Morán esteve diretamente envolvido com o processo de implantação da modalidade, em diversas insti- tuições, como avaliador ou consultor do processo. A partir de então, diante da possibilidade concreta de implantação de projetos, houve a necessidade de formação de educadores, em nível superior. Morán iniciou a supervisão de uma série de projetos de educação a distância, o que foi abrindo novos horizontes, tanto no Ensino Superior, como na Educação Básica.

Depois de se aposentar na ECA/USP, Morán desenvolveu atividades na Fa- culdade Mackenzie, durante dois anos; esteve trabalhando em um Programa de Educação e Currículo, na PUC de São Paulo, e desenvolveu um projeto de Edu- cação Semipresencial, nas Faculdades Sumaré, de São Paulo. “Nessas faculdades, eu trabalhei a ideia de fazer os 20% em todos os cursos e disciplinas. Imagina o que é levar uma instituição, na época, com 3 mil alunos, a mesclar o ensino pre- sencial, abrindo 20% para o processo de virtualização”. Em 2009, as faculdades já estavam com 7 mil alunos. Morán lembra que era um projeto de implantação de algo novo, no sentido de sensibilizar coordenadores, professores, alunos, para desenvolver as atividades a distância.

Atualmente, Morán coordena um grande projeto de Educação a Distância, na Universidade Anhanguera, envolvendo mais de 130 mil alunos de gradua- ção, em um processo amplo de transformação, desde a sala de aula, atividades via internet, redes de interações, um processo de hibridização da aprendizagem, com o apoio das tecnologias e de uma outra visão de interação nas relações.

Em termos de rumos da educação, Morán afirma que se percebe claramente o direcionamento para processos híbridos de aprendizagem. Haverá, inevita- velmente, a mescla entre o ensino presencial, o online, o virtual, com chats e atividades compartilhadas. Segundo ele, não se justifica que a educação siga sendo desenvolvida com os dogmas e métodos tradicionais apenas. Ele se re- fere às grandes mutações sociais decorrentes do desenvolvimento tecnológico, indicando o quanto essas mutações também construíram novas possibilidades. Afirma, por exemplo, que através do uso das tecnologias, em algumas áreas po- dem ser feitas simulações via equipamentos, que evitam, por exemplo, ter que recorrer a animais, como “instrumentos do conhecimento”, como se viu ocorrer amplamente em algumas áreas do conhecimento. Destaca, nesse sentido, o cres- cimento do virtual e do semipresencial.

O educador enfatiza, no entanto, a necessidade de desenvolver e ampliar metodologias mais ativas, no sentido de envolver os alunos em projetos, em jo- gos, de tal forma que eles sejam sujeitos do processo, sejam aqueles que pesqui- sam, que investigam. O professor, nesse processo, orienta, compartilha de modo cúmplice o processo de aprendizagem. “Ele é um tutor, um orientador”, reforça. Segundo o pesquisador, essas mudanças vão afetar o ensino, cada vez mais, em todos os níveis, desde a educação básica, até a educação dos mais adultos, que não puderam estudar ou que estudaram, mas estão voltando para complementar a formação ou para cursar algo que não foi possível fazer, na época da formação na graduação. Lembra que a modalidade tem sido implantada em processos de aprendizagem de atualização, especialização e educação continuada, bem como em modelos semipresenciais, com a existência de sedes polo e modelos online.

No futuro, a educação vai ser mais flexível, adaptada ao rumo de cada aluno, ao que ele conhece e seu próprio ritmo de aprender.

No documento PORTCOM (páginas 91-96)