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Gramática do Poder São Paulo: Ática, 1993 Série Fundamentos (215 p.)

No documento PORTCOM (páginas 51-57)

Gramática do Poder: Todo discurso se sustenta em teias invisíveis. No que diz respeito ao discurso do poder, a sua eficácia está justamente naquilo que ele oculta. Por esta razão, revelar a sua estrutura significa também desvendá-lo ou descobri-lo. Nesse sentido, este livro visa buscar os elementos que estruturam os códigos do exercício do poder. Ao procurar subsídios para uma “Gramática do Poder”, Isaac Epstein explicita as regras desta possibilidade de código que regula as relações entre dominantes e dominados. Os primeiros são definidos como aqueles “agentes do poder”, isto é, os que emitem ordens e têm a capacidade e os meios de se fazerem obedecer; Os segundos, ao revés, são os que obedecem ou padece as consequências da desobediência, os chamados “pacientes do poder”. Tido pelo próprio autor como sua principal contribuição no campo do conheci- mento, o livro de Isaac Epstein é composto de sete capítulos 1. O que um dia vou saber, não sabendo eu já sabia; 2.Cruzamentos interdisciplinares 3. Nascimento de uma matriz teórica; 4. Poder de criar um código e poder comandar segundo um código estabelecido; 5. Primeiro cruzamento; Códigos fortes e códigos fra- cos; 6. Segundo cruzamento: algumas verificações; 7. Terceiro cruzamento: o po- der nas organizações, acrescido de bibliografia, índice onomástico e de assuntos. Citando Sapir (1927), Epstein inicia o primeiro capítulo – com um título bem inquietante – mostrando que “inúmeras atividades nas interações humanas operam de acordo com um código elaborado e secreto, que não está escrito em parte alguma, conhecido de ninguém, porém compreendido por todos”. Para Isaac trata-se da cultura encoberta ou implícita, conceito introduzido na pri- meira metade do século XX por antropólogos americanos. Nesse foco, a cultura ocorre em níveis relatados como aberto e encoberto. Dentro e fora da consci- ência, explícito e implícito. A estranheza do assunto, que torna o trabalho do autor inovador, é explicada por Epstein logo no começo da obra: “De fato, pro- curamos descrever um código (que não está, ao que saibamos, escrito em parte alguma), torná-lo conhecido (uma vez que não é conhecido de ninguém), mas que, não obstante, é compreendido por todos” (p.14).

Isaac Epstein relata que a primeira parte do livro é dedicada a explicitar os princípios da Gramática e a segunda a mostrar os “outros modos” através dos quais se evidencia a sua compreensão. Para Epstein, “estes modos consistem em

fragmentos da memória cultural colhidos em vários registros, em características de atitudes, valores ou desempenhos das pessoas ou grupos em algumas situ- ações” (p.15). O autor simplifica o objetivo de seu livro, afirmando consistir numa formulação de uma “nova” linguagem para o estudo e descrição de alguns fenômenos de agenciamento do poder e justifica:

Esta linguagem é nova porque não está escrita em parte alguma, mas é simultaneamente uma linguagem “velha”, porque tem sido efetivamente utilizada pelos atores em determinados marcos socioculturais. Em suma, a “nova” linguagem formulada nada mais faz do que tornar explícito o que há muito está escrito e implícito por um lado, em registros da me- mória cultural e, por outro, em atitudes e desempenho dos atores.

Segundo o idealizador da Gramática do Poder, esta é constituída pela cons- trução de determinados conceitos e suas respectivas articulações, enquanto mo- delo teórico, e pela confrontação deste modelo com certos fenômenos culturais que envolvem o agenciamento do poder. Epstein cita alguns pressupostos que ele mesmo assume para construir o conceito (p.17):

a) O agenciamento do poder é estudado a partir do objeto “ordem” ou “comando” e as entidades mínimas constituintes deste objeto molecular: Agente, Paciente, Ordem 1 (Código) e Ordem 2 (Comando propriamen- te dito).

b) As várias modalidades deste objeto molecular constituem os semas fundamentais da linguagem proposta e a partir da qual analisaremos o agenciamento do poder.

c) Enquanto linguagem científica, isto é, enquanto metalinguagem empre- gada para descrever a “linguagem” ou “Gramática do Poder”, são duas dimensões sintáticas (relações formais entre os signos) ou semânticas (relações entre os signos e os objetos a que são aplicáveis) que assumem relevância especial.

d) Enquanto linguagem realmente “falada” pelos atores, agentes e pacientes do poder, é sua dimensão pragmática que assume especial importância. Explicadas as premissas, o autor parte para os conceitos de modos de agen- ciamento de poder que ele divide em Modo Normal (MN) e Modo Inverso (MI). O primeiro (MN) equivale a uma complementaridade (onde há uma

relação assimétrica de poder) relativamente estável e o segundo (MI) é aquele no qual o Agente é equívoco, ambíguo, seja na edição de normas confusas, seja na sucessão de edição e revogação de normas unívocas.

No segundo capítulo da Gramática do Poder, Isaac Epstein parte para a abor- dagem do conceito de interdisciplinaridade e seus cruzamentos que resultam no nascimento de uma matriz teórica. Dessa forma, explica o autor, seu objeto de estudo (o agenciamento do poder) é a “ordem” e como as interações sociais que envolvem este objeto interceptam contextos pertencentes a várias disciplinas. Por ser algo interdisciplinar, Epstein ressalta que este tipo de trabalho implica no empréstimo de termos consagrados para novas aplicações e criação de novos conceitos e adverte:

Os setores interdisciplinares são, às vezes, “montados” com aparelhos conceituais pertencentes a disciplinas distintas. A princípio estes apare- lhos podem ser instrumentos frágeis, mas que vão se fortalecendo na me- dida em que se mostram viáveis e férteis. Esta “montagem” caracteriza o nascimento de uma nova matriz teórica ou de um novo modelo de pen- sar a partir do cruzamento de matrizes existentes, porém distintas (p.27).

Nesse composto de cruzamentos, Isaac avalia que o primeiro refere-se a um esquema formal que, no trânsito interdisciplinar, adquire significado inespe- rado, que seria a teoria do duplo vínculo. A mesma é baseada formalmente na transposição de um paradoxo semântico para o âmbito da pragmática. O se- gundo cruzamento, explica o autor, demanda, previamente, uma matização do paradoxo pragmático e da contradição como um caso limite de ambiguidade. Para esta finalidade, Epstein introduz os termos Código Forte e Código Fraco, Agente e Paciente do poder, com significados distintos. O terceiro cruzamen- to interdisciplinar revela Epstein, procura associar os esquemas canônicos já mencionados às constrições a que está sujeito o agenciamento de poder nas organizações burocráticas. Para fundamentar os cruzamentos propostos, o autor bebe em diversas fontes: para o primeiro cruzamento seu referencial teórico está baseado em Aristóteles, Wittgenstein e Bateson; no segundo cruzamento cita Whitehead e Russell e, para o terceiro cruzamento, opta por Weber.

O terceiro capítulo da obra de Isaac Epstein dá atenção especial ao conceito de poder e suas manifestações. Segundo o autor, em seu significado mais geral, a palavra “poder” é correlata à competência (atual ou potencial) para agir e produ- zir efeitos. Neste sentido tanto pode referir-se às inter-relações humanas como ao poder sobre fenômenos naturais (p.35). Para Isaac:

Definir o exercício do poder, como circunscrito a situações de emissão e obediência a ordens ou mandatos, deixa aparentemente de lado muitas situações mais latentes onde “ordens” são menos visíveis e concretas, mas nem por isso menos reais em seus efeitos, especialmente em compor- tamentos ocasionados por valores introjetados. A razão, todavia, mais importante para esta limitação é nossa intenção de aprender o exercício do poder através de seu objeto concreto: a ordem (p.36).

Isaac faz uma distinção entre Ordem 1 e Ordem 2, conforme citamos ante- riormente. Para deixar mais claro, o próprio autor explica seus usos e aplicações na construção da Gramática do Poder, afirmando que a Ordem 1 separa um conjunto de possibilidades de acordo com certas regras, dentro de um universo mais amplo da totalidade das possibilidades logicamente congruentes. Assim ocorre com o conjunto de normas jurídicas, com pressupostos de um paradigma científico, de um estilo artístico, das regras de um jogo esportivo, por exemplo. A positividade do poder consiste na capacidade para o restabelecimento de uma Ordem 1, onde anteriormente não existia.

Já a Ordem 2 é um comando, um ato imperativo de um Agente, que dispõe em determinado contexto de competência para tanto, e da qual a Ordem 2, é também efeito. Explica Epstein (p.39):

Se considerarmos esta Ordem 2 como uma mensagem (Comando) pro- nunciada por um emissor (Agente do poder), e endereçada a um receptor (Paciente), verificamos que a noção de Ordem 1 corresponde à de Códi- go e a de Ordem 2 à de Mensagem. Em outras palavras, o lado positivo do poder (o estabelecimento de uma Ordem 1) e seu lado negativo (de obrigar ao cumprimento do que decorre da Ordem 1, através das Ordens 2) complementam as duas faces.

Para exemplificar seu modelo de ordem, Epstein usa a criação do universo para deixar claro seu conceito, salientando poder distinguir dois registros de po- der: o primeiro torna possível o segundo, sendo o primeiro essencialmente uma positividade e o segundo, a consequência do primeiro, restritivo, portanto, de certo modo, negativo. Mais adiante, saindo do macro para o micro, Isaac abor- da sua teoria aplicada ao poder do Estado. Se no âmbito do discurso teológico a Ordem 1 estaria com Deus (ou o criador do universo), o autor acredita que num sistema de governo ditatorial a bola estaria com o dirigente principal, que daria a Ordem 1. Usa Hobbes (1952) para justificar:

O soberano de um Estado, quer seja uma assembleia, ou um homem, não se sujeita às leis civis. Dado que tem o poder de fazer e revogar as leis, pode quando lhe aprouver libertar-se dessa sujeição, revogando as leis que o estorvam e fazendo outras novas; por consequência, já antes era livre. Porque é livre quem pode ser livre quando quiser. E a ninguém é possível estar obrigado perante si mesmo, pois quem pode obrigar pode libertar, portanto quem está obrigado perante si mesmo não está obrigado.

Mais adiante, após exemplificar em uma tabela a questão do uso dos Códi- gos de Ordem 1 e 2 com Agentes e Pacientes, o autor faz uma afirmação com tom revolucionário (p.50):

Em certas ocasiões, os pacientes do poder podem provocar um confronto com os agentes e este confronto pode assumir a forma extremada de uma tentativa de substituição do Código (Ordem 1) vigente por outro. É o caso da substituição de uma Ordem 1 política por outra, ou da substitui- ção de um paradigma científico. Estes eventos radicais são denominados de “revoluções”, sejam estas políticas, científicas etc.

Partindo para o capítulo quatro, denominado “Primeiro cruzamento”, o au- tor questiona o que acontece quando uma ordem é impossível de ser cumprida. Neste caso, Epstein busca na psiquiatria suas respostas, explicando a teoria do duplo vínculo, importada de Bateson. Para aquele autor, a teoria do duplo vín- culo afirma que existe um componente experiencial na determinação ou etio- logia dos sintomas esquizofrênicos e dos padrões de conduta afins, tais como o humor, a arte, a poesia, etc. Notoriamente, a teoria não distingue entre estas subespécies. “Em seus termos, não há nada que sirva para determinar se um dado indivíduo se tornará um palhaço, um poeta, um esquizofrênico ou uma combinação destes...” (p.65).

Epstein explica que a tese de Bateson e de seus amigos (p.66) era de que, quando uma pessoa se encontrasse frequentemente encurralada numa situação de duplo vínculo, sua resposta defensiva seria semelhante às atitudes e respostas usu- ais dos indivíduos considerados como esquizofrênicos: confundir frequentemente o literal com o metafórico, supor que atrás de cada enunciado há um significado persecutório, aceitar tudo o que lhe é dito ou isolar-se da comunicação. Em suma, o duplo vínculo recorrente seria um agente etiológico da esquizofrenia.

Isaac acredita que a teoria do duplo vínculo configura um tipo de comuni- cação que, quando reiterado, pode provocar sintomas patológicos em atores em situação de dependência.

Em suma, um padrão de comunicação capaz de provocar distúrbios de con- duta. Senão um mecanismo de defesa, uma comunicação desqualificada, segun- do os padrões usuais: o esquizofrenês. É fácil compreender que nestas condições o padrão de comunicação configurado pelo duplo vínculo pode se transformar em instrumento de exercício do poder por parte de seus agentes. Daí o interesse da “Gramática” por esta teoria.

No quinto capítulo, o assunto principal são os códigos Forte e Fraco. O au- tor menciona vários exemplos: linguagens, códigos urbanos, táticas de combate armado, organizações, etc.

Entendidos os conceitos dos códigos propostos por Epstein, o autor vira a página e vai cuidar dos significados canônicos da “Gramática” por ele proposta, reiterando o uso e sentidos dos modos de agenciamento do poder, classificados por ele como Modo Normal, Modo Inverso e Modo Paradoxal. Na sequência do trabalho o autor se propõe a tentar mostrar como os desempenhos “nor- mais”, “inversos” e “paradoxais” ocorrem em algumas díades clássicas de agentes e pacientes do exercício do poder e como os referidos significados destes modos emergem em diversos registros da memória cultural.

Nessa toada, o sexto capítulo é repleto de exemplos de aplicação dos códigos. Isaac Epstein os encontra na questão de gêneros, na ficção literária, na paisagem urbana, no trânsito, na publicidade, na arquitetura, em eventos formais e in- formais, na política, na escravatura, na música, na capoeira e no jogo do poder.

Para fechar a obra, o sétimo e último capítulo propõe o terceiro cruzamento interdisciplinar que se refere à adequação dos esquemas canônicos Modo Nor- mal, Modo Inverso e Modo Paradoxal e as interações que ocorrem no seio das organizações, no comércio do poder efetuado entre agentes e pacientes. Nesta parte do livro, o propósito de Isaac Epstein é analisar algumas das estratégias de ação disponíveis aos atores, agentes e pacientes do poder, circunscritas aos pa- râmetros destas organizações e envolvendo semas referidos e seus componentes, Códigos Fortes, Códigos Fracos e Códigos Paradoxais.

Na resenha sobre o livro, publicada em 1994, na Revista Brasileira de Co- municação (INTERCOM), de autoria de Tércio Sampaio Ferraz, o resenhis- ta explica bem a questão dos Códigos Fortes e os Fracos abordados por Isaac Epstein em sua obra. Para Ferraz (1994) quando Epstein analisa o poder nas organizações e nas instituições totais, na análise das mesmas, a questão da irra- cionalidade conduz o autor ao tema da comunicação patológica. O resenhista acredita que Epstein enfrenta o problema da patologia sugerindo que esta surja por uma perversão por ele denominada Modo Normal, em que o agente pode impor ao paciente um Código Forte (portanto, unívoco, com óbvios traços de racionalidade), mas cujo cumprimento é incompatível com a mera sobrevivên-

cia física e da racionalidade do paciente. Nesta situação, a resposta deste é ab- solutamente desencontrada (exacerbação do instinto de conservação), embora literalmente, venha ao encontro do que pede o agente, isto é, os Códigos Fracos com que responde são desenvolvidos individualmente, destruindo a moral co- letiva e o próprio caráter. Esta perversidade do Modo Nornal chama-o Isaac de Modo Normal Pervertido.

Divulgação Científica: 96 verbetes. Campinas, SP:

No documento PORTCOM (páginas 51-57)