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Ausculta com Método no Coração da Audiência

No documento PORTCOM (páginas 136-141)

No final do capítulo introdutório de Muito além do Jardim Botânico, Carlos Eduardo Lins da Silva diz que a crítica aos estudos de recepção conforme a abor- dagem da escola sociológica norte-americana era então liderada no Brasil pelos estudos de Michel Thiollent que defendem a utilização da pesquisa-ação. Adiante explica que sua pesquisa de recepção foi concebida dentro da perspectiva delinea- da pelos trabalhos de Hoggart, Matellart, Thiolent e outros. Há importantes no- mes contidos nesse genérico “outros” e Gramsci, por meio de quem aparentemen- te o autor prefere incluir a vertente marxista que há em sua análise, em contínua articulação com os estudos culturais, é certamente um deles. De todo modo, não resisto a comentar que, por vezes, é na linguagem que cristalinamente se revelam as filiações de um autor. Como nesta frase do capítulo dedicado aos objetivos e hipóteses da pesquisa que faz ressoar o próprio Marx, em afirmação contundente do Manifesto Comunista: “Interpretar o mundo apenas não é suficiente; é neces- sário tentar modificá-lo quando não se está satisfeito com o que se tem” (p. 50).

Vale tomar contato com o tom indignado no qual o jovem adulto, mal ul- trapassara os 30 anos, exercita com garra sua cidadania, somando-a a sua ati- vidade mesclada de pesquisador e jornalista, ao apresentar os objetivos e hipó- teses de seu trabalho. “A proposta desta pesquisa partiu da convicção de que a Universidade brasileira não pode mais manter-se à margem da sociedade sob o risco de deixar tão patente sua inutilidade que nada mais conseguirá salvá-la”, manifesta-se ele. Irônico, mesmo mordaz, quando assevera que somente a escas- sez de recursos de nossa instituição universitária, “em especial nas áreas ligadas às ciências sociais e especificamente a comunicação”, impede sua analogia com a imagem tradicional da torre de marfim, ele afirma que qualquer busca nos trabalhos de pesquisa universitária em comunicação “indicará uma esmagadora maioria de estudos de gabinete, abstratos, teóricos e de pequena (quando não nula) contribuição para a comunidade” (p. 49).

Lins da Silva define na sequência que sua tese não assume o princípio da neutralidade da pesquisa científica, afirma que foi realizada com objetivos aca-

dêmicos e políticos bem claros e deixa patente sua total descrença em que um cientista político consiga colocar a si e a seu trabalho fora de suas convicções ideológicas e de suas posições políticas.

Isso não quer dizer que um trabalho de pesquisa científica deva adul- terar os fatos, mascarar a realidade ou transformar-se em panfleto. Mas a direção que um pesquisador dá à sua tese e o destino que confere aos dados obtidos em sua elaboração têm uma clara conotação política que não deve ser escamoteada sob o risco de, aí sim, ferir-se a ética do trabalho científico que existe e precisa existir para diferenciá-la do proselitismo (p 49).

Para ele, a escolha da metodologia “já é uma tomada de posição política”. E sem eufemismos, define o que pretende com seu estudo:

É uma pesquisa com o inequívoco objetivo de auxiliar de alguma forma as pessoas que integram as chamadas ‘classes trabalhadoras’ a consumi- rem mais criticamente o conteúdo de programas noticiosos transmitidos pela televisão. E pretendeu atingir esse objetivo não apenas de forma di- dática, no sentido convencional, como também – e principalmente – na prática, desde o instante da própria coleta de dados (p. 50).

Essa afirmação segue-se ao esclarecimento de que o estudo não pretendeu proporcionar a anunciantes ou empresas concessionárias de televisão indicações de como agir para ampliar sua audiência. E antecede outra afirmação importan- te para que se entenda o caráter do trabalho, qual seja: que embora a mensagem que a indústria cultural transmite tenha significação por si, “aquela que seus autores, ao final de uma operação em que avultam contradições e conflitos, resolveram apor-lhe, ela só adquire significação definitiva quando é consumida e reelaborada pelo público” (p. 50). Mais ainda: essa reelaboração, ele defende, é influenciada muito fortemente pela classe social a que as pessoas pertencem e pelas suas condições concretas de vida. Lins da Silva volta a definir seus objeti- vos mais adiante, refinando-os:

Tentar desvendar os sistemas de referências com base nos quais as men- sagens dos noticiários de televisão adquirem significado para determina- das comunidades de trabalhadores e tentar perceber que variáveis podem influir para que eles enxerguem com maior senso crítico tais noticiários: estes são os objetivos deste trabalho, conjugados com a continuidade de

uma ação através da qual tentar-se-á dar divulgação a outras comunida- des de trabalhadores às conclusões finais a que se chegar (p. 52).

Para alcançá-los, ele propõe cinco hipóteses quanto às variáveis mais impor- tantes para a formação da consciência crítica dos telespectadores:

1. O grau de interferência de outras fontes, além da televisão, na formação da representação da realidade de uma pessoa;

2. O grau de conhecimento que a pessoa tem a respeito de cada assunto trata- do na televisão;

3. O grau de conhecimento do meio de comunicação em questão e do acesso a ele;

4. Tratando-se de uma pesquisa que lidará com uma parcela específica da so- ciedade, as classes trabalhadoras, em duas comunidades particulares, o fator que mais se relaciona com as três variáveis anteriores é o nível da instituição de organização social a que o indivíduo está filiado;

5. No caso específico do Jornal Nacional, seus efeitos sobre a representação do real que os trabalhadores fazem não é, provavelmente, tão decisiva como se costuma dizer, em especial no caso dos que militam em algum tipo de movimento social ou político.

A explicitação da essência do método que vai usar para se afundar “na vida das pessoas cujas reações pretende conhecer” se dá quando ele diz que o traba- lho realizado numa universidade norte-americana o convenceu de que, “para se chegar a alguma conclusão sólida e consequente com relação ao processo de comunicação, é preciso mais do que fazer nas amostragens selecionadas per- guntas com respostas limitadas, as quais serão tratadas pelos entrevistados de forma desobrigada, desconfiada, apressada e irrefletida” (p.68). É preciso ganhar a confiança dessas pessoas até o ponto em que se possa estar seguro de que não há mais cautela entre pesquisador e pesquisados, até que se “participe com elas de atividades concretas relativas ao objeto de escuta, discuta, ensine e aprenda” (p. 68).

Lins da Silva cita o trecho de Crítica metodológica, investigação social e enque-

te operária em que Michel Thiollent define que na pesquisa-ação “o pressuposto

de não neutralidade está explícito e é considerado como critério de descrição e análise” (p 68). E ainda, que se oferece “às pessoas interrogadas a possibilidade ou mesmo a necessidade de raciocinar para que seja captada uma informação

relevante e não uma vaga reação moral baseada na desinformação” (p. 68). Dirá em seguida que seu trabalho tentou adaptar a metodologia definida por Thiol- lent no livro citado a uma situação específica da comunicação social.

Assim, enquanto a pesquisa-ação baseada na ‘enquete operária’ de Marx é relacionada fundamentalmente com os problemas de consciência de clas- se, esse estudo vai relacionar-se com os problemas de consciência crítica ou espírito crítico diante dos meios de comunicação, especificamente a televisão (p. 68).

É assim que Lins da Silva vai buscar grupos que não precisam ser quantita- tivamente representativos e trabalhadores que não precisam ser representantes típicos da maioria dos trabalhadores brasileiros, mas ainda assim “eram expres- sivos de uma situação corrente no país”.

A metodologia, ele adverte, não permitirá ao observador uma observação “naturalista” da realidade. Há uma intervenção, uma interferência, portanto, a expectativa é de que, ao final do trabalho, haja uma mudança no comportamen- to e no senso crítico dos grupos.

Como o objetivo da pesquisa é descobrir de que maneira pode-se constatar a existência e incentivar a formação e desenvolvimento do espírito crítico diante do conteúdo televisivo, então as alterações ocor- ridas no decorrer da própria investigação são úteis para suas conclu- sões. Mais uma vez, o método adapta-se com perfeição aos objetivos do estudo (p. 70).

Lins da Silva concebeu sua pesquisa e começou a trabalhar nela em 1979, enquanto atuava como professor visitante no Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e pretendia realizá- -la integralmente num bairro operário de Natal. No entanto, “por motivos de força maior” deixou o Rio Grande do Norte antes de concluir o trabalho e pre- cisou desdobrar a pesquisa numa segunda etapa no Guarujá, Baixada Santista. Um outro ajuste do plano original deu-se quando toda a pesquisa de cam- po já estava concluída. O autor analisara e discutira com seus companheiros de jornada todo o conjunto do chamado “bloco das oito” da programação da Globo, ou seja, o Jornal Nacional, a novela das oito (hoje, novela das nove) e os anúncios dos intervalos dos dois programas. Ao fim, diante do volume impres- sionante dos dados, ele previu que seria extremamente difícil lidar com toda aquela massa de informações.

Lins da Silva observa que a variedade de interpretações das pessoas diante do enredo e seu envolvimento emocional com os personagens também pesaram em sua decisão de abandonar “a ideia da interpretação extensiva do problema da consciência crítica diante das telenovelas”. E finalmente, “fatores similares leva- ram à mesma decisão no que se referia à publicidade” (p. 73). Dessa forma, por “economia de tempo e espaço”, também pela facilidade maior do autor, jornalista por formação, para a interpretação de depoimentos referentes a fatos reais (em lugar de fictícios) e a possibilidade de aí chegar a conclusões mais substanciosas, o trabalho concentrou seu foco sobre o JN. O noticiário foi objeto de estudo sistemático de agosto de 1980 a fevereiro de 1981, no bairro de Lagoa Seca, em Natal, e de setembro de 1981 a março de 1982, no bairro de Paicará, Guarujá.

Em Lagoa Seca, distante de três a quatro quilômetros do centro da cidade, com 300 casas que abrigavam cerca de mil pessoas, “a maioria dos quais ope- rários e operárias de indústrias têxteis e alimentares, empregadas domésticas e funcionários e funcionárias públicas de baixo rendimento”, o grupo com o qual o autor trabalhou sistematicamente era de aproximadamente 20 pessoas cons- tantes e mais outras 10 menos assíduas. No começo dos trabalhos ele aplicou um questionário com respostas abertas em cerca de 250 pessoas.

No Paicará, na periferia do Guarujá, no subdistrito de Vicente de Carvalho, então “uma das maiores concentrações operárias do litoral paulista”, com cerca de 70 mil pessoas, a maioria de origem nordestina, cerca de 25 pessoas participaram assiduamente das reuniões para a coleta de dados primários e outras 20 de forma flutuante, menos assíduas. A população do bairro era predominantemente de ope- rários do porto de Santos, da indústria da pesca e do turismo no Guarujá, além de empregadas domésticas, que prestavam serviços em casas de classe média de Santos.

No primeiro bairro não havia, observa Lins da Silva, centro social nem qual- quer tipo de organização, “exceto a associação de moradores que um pequeno grupo tentava fundar”, através do qual a pesquisa foi centralizada. Já no Paicará eram várias as associações de moradores, além de haver, quando o trabalho lá começou, em junho de 1981, uma intensa movimentação político-partidária em torno delas. O pesquisador completou seu universo de investigação com militantes sindicais e partidários (do Partido dos Trabalhadores) tanto em Natal quanto no litoral de São Paulo, e mesmo em São Paulo, em encontros menos sistemáticos do que os realizados com os moradores dos bairros escolhidos, por- que lhe interessava testar a fundo a hipótese a respeito da relação entre consci- ência crítica e organização social a que o trabalhador se afilia.

É muito interessante o modo natural e semelhante como se dá a entrada de Lins da Silva nos dois bairros: em cada caso, um estudante de jornalismo, filho de operário, solicitou seu auxílio para a implantação de um jornal dos morado-

res. E foi como uma pessoa com muita experiência em jornalismo que se deu sua apresentação aos moradores. Enquanto esperava, em cada uma das situações o começo de uma novela para começar a observação sistemática do “bloco das oito” da Globo – Coração Alado, em Natal, e Brilhante, no Guarujá –, o con- tato com os grupos ia se aprofundando em conversas a respeito do jornal que seria feito e lá para as tantas ele introduziu a ideia de se discutir televisão de forma programada, em encontros semanais. Os encontros com militantes do PT também foram tranquilos, já com os militantes sindicais a aproximação foi, segundo Lins da Silva, mais artificial e, por isso, mais problemática.

As sessões de trabalho coordenadas pelo pesquisador, cuja pauta era sempre a programação do bloco das oito da semana que se encerrava e conduzidas dentro de uma dinâmica em que a palavra era franqueada a todos os pesquisados, cons- tituíram-se no instrumento principal da coleta de dados primários do estudo. Lins da Silva realizava a análise de conteúdo do JN. Nas discussões havia, além disso, análise comparativa entre o noticiário do JN e o dos principais jornais im- pressos do país. Também foram utilizados questionários abertos e outras ferra- mentas de pesquisa. Entrevistas em profundidade foram feitas com profissionais do jornalismo do JN e da área comercial da Rede Globo. Em resumo, Muito

além do Jardim Botânico mostra um trabalho de pesquisa profunda, consistente

e rigorosa, que se vale de múltiplos instrumentos adequados ao método escolhi- do para dar conta dos objetivos do projeto.

No documento PORTCOM (páginas 136-141)