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A relação entre a língua oral e a escrita

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.2 ENTRE A ORALIDADE E A ESCRITA: ALGUNS PONTOS RELEVANTES

2.2.1 A relação entre a língua oral e a escrita

Os estudos sobre a relação entre a língua oral e a escrita são muitos, seguindo vertentes diversas, e vários enfoques podem ser tomados para alcançar tal intento. Apontam-se, nesta seção, aspectos que aproximam e que afastam os sistemas verbais oral e escrito, visando, finalmente, a um enfoque fonológico.

Saussure (1969)15, preocupado com a primazia dos estudos da escrita e a decorrente confusão derivada por seu prestígio, já afirmava:

Língua e escrita são dois sistemas distintos de signos; a única razão de ser do segundo é representar o primeiro; o objeto lingüístico não se define pela combinação da palavra escrita e da palavra falada; esta última, por si só, constitui tal objeto. Mas a palavra escrita se mistura tão ìntimamente com a palavra falada, da qual é a imagem, que acaba por usurpar-lhe o papel principal; terminamos por dar maior importância à representação do signo vocal do que ao próprio signo. É como se acreditássemos que, para

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A obra póstuma Cours de Linguistique Générale, compilação de registros de aulas ministradas por Ferdinand de Saussure, teve sua primeira publicação em 1916. Em 1996, manuscritos seus (Écrits de Linguistique

Générale) foram encontrados, sendo publicados por Bouquet e Engler em 2002 e traduzidos para o português

conhecer uma pessoa, melhor fôsse contemplar-lhe a fotografia do que o rosto. (SAUSSURE, 1969, p. 34).

Como comenta o mestre genebrino, a língua oral é o objeto da linguística. Ong (1998, p. 15) chama a atenção para o que dizia Edmonson, em 1971: “de todas as milhares de línguas – talvez dezenas de milhares – faladas no curso da história humana, somente cerca de 106 estiveram submetidas à escrita em um grau suficiente para produzir literatura – e a maioria jamais foi escrita.” É consenso entre cientistas que a forma de comunicação das comunidades é oral, e que a escrita não é o sistema adotado por todos os indivíduos de uma comunidade, ainda que grafocêntrica, o que facilmente é evidenciado pela presença, nos dias de hoje, do analfabetismo. Uma das necessidades de se estudar a escrita, e aqui se poderiam elencar inúmeras razões, porém, deve-se ao fato de muitos ainda a tomarem como representação “fiel” da oralidade, o que é um grande equívoco.

Ong (1998) procura desmistificar esse equívoco numa linha argumentativa que busca explicitar o funcionamento da memória e do pensamento em culturas ágrafas, mencionando, inclusive, os estudos realizados por Luria (1976). Diferentes outros autores procuram esclarecer essa interpretação equivocada da escrita como representação fiel da oralidade. Scliar-Cabral (1995; 2003b) sinaliza as propriedades comuns e divergentes entre os dois sistemas. Entre as propriedades partilhadas pelos dois sistemas, está o fato de ambas as modalidades de comunicação serem verbais, de modo a garantir características já levantadas por Saussure, tais como linearidade, arbitrariedade16, convencionalidade, assim como a própria noção de valor. A reificação e a metalinguagem, embora em graus diferenciados, também se encontram tanto no sistema oral quanto no escrito. Os dois sistemas também servem de meio para a transmissão cultural, além de exercerem as funções expressiva e estética. Conforme aponta a autora, ainda, existem em ambos três articulações.17 Por último, a produtividade e a retroalimentação também podem ser evidenciadas tanto no sistema oral quanto no escrito.

Apesar de tantas características comuns, são significativas as diferenças entre os dois sistemas. Enquanto o sistema oral, de acordo com Scliar-Cabral (2003b, p. 40), acompanha “[...] o processo de humanização, como condição de

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As divergências teóricas que envolvem as concepções de linearidade e arbitrariedade do signo defendidas por Saussure fogem do escopo do presente trabalho e não serão discutidas. Sugere-se a leitura de Silva (2003) para mais referências sobre o assunto.

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sobrevivência do indivíduo e da espécie e está vinculad[o] à estrutura e funcionamento do sistema nervoso central”, o sistema escrito consiste em uma invenção. Há significativa diferença entre as “pausas e contornos finais que assinalam o término dos enunciados” e a “distribuição convencional das vírgulas e pontos”, além de o continuum da fala se opor aos limites das palavras escritas e, inclusive, à “discriminação das unidades gráficas alfabéticas”. (SCLIAR-CABRAL, 2003b, p. 42-43). A inércia da escrita, por sua vez, contrapõe-se à diversidade sociolinguística oral, assim como a ruptura espaço-temporal ocorrente na escrita, que pode se dar na ausência de um leitor, diferentemente da língua oral, em que há simultaneidade entre a fala do sujeito (1.ª pessoa do discurso) e a escuta da 2.ª pessoa do discurso18, afirma a autora.

Ainda que as similaridades e diferenças entre a língua oral e a escrita apresentadas não tenham sido esgotadas, são suficientes para que se perceba que a relação entre ambas é complexa. Dada a existência de diferenças de forma, função e na maneira de representação, como apontam Garton e Pratt (1989), não há como conceber que ambas as formas de comunicação se desenvolvem da mesma maneira, o que, dentre outros fatores, inviabiliza a escrita como representação fiel da oralidade. Assim, cabe mencionar que os processos de aquisição da linguagem verbal oral e de aprendizagem da linguagem verbal escrita não podem ser ingenuamente tomados como sinônimos.

Todo ser humano, salvo aquele com alguns tipos de distúrbios neurológicos ou psicológicos, é capaz de adquirir o complexo sistema gramatical de sua língua – relacionando frases, fazendo perguntas e respondendo a elas, selecionando palavras adequadas a determinadas situações, utilizando regras sintáticas, fonológicas, morfológicas e semânticas, dentre outras – antes de completar cinco anos, "apenas em função do 'input' natural" (KATO, 1999, p. 202), sem que tenha passado por alguma espécie de ensino sistemático para tal intento.

A escrita, por sua vez, caracteriza-se por ser um produto culturalmente construído, uma vez que é, como afirma Ong (1998), uma tecnologia, portanto, uma invenção, necessitando de um ensino estruturado para que se efetive seu domínio. Seu aprendizado, então,

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Tecnologias de comunicação colaboram, cada vez mais, para a anulação dessas rupturas e/ou simultaneidades. Seria o caso do telefone na comunicação oral, em que há a ruptura espacial, e as interações síncronas virtuais promovidas por diferentes softwares e ferramentas de bate-papo, em que há a “quase” simultaneidade na escrita.

não acontece se não houver instrução específica sobre o que se quer ensinar, pois, para se chegar à compreensão do alfabeto enquanto sistema de representação mental e gráfica da língua precisam ser desenvolvidas capacidades de análise e síntese dos componentes desse sistema. (PELANDRÉ, 2002, p. 102).

Morais (1997) destaca o contraste entre a “força irresistível” da linguagem oral, adquirida por crianças com inúmeros tipos de patologias cognitivas, e as “lamentáveis falhas” na aprendizagem da leitura e da escrita por crianças “espertas e inteligentes”. “O reconhecimento destes paradoxos constitui o melhor ponto de partida duma reflexão eficaz sobre os problemas da aprendizagem da leitura e da escrita”. (MORAIS, 1997, p. 44).

Góes e Smolka (1995), com base nos preceitos de Vygotsky, chamam a atenção para a necessidade de práticas educativas que incentivem uma produção textual relevante para a vida do sujeito escrevente, de forma que “as experiências com o escrever po[ssam] propiciar um aumento da competência comunicativa, da sistematização e organização do próprio conhecimento, da imaginação criadora e da incorporação de critérios lógico-verbais implicados na organização do discurso”. (GÓES; SMOLKA, 1995, p. 68).

Para que isso seja possível, é necessário que a criança ultrapasse as primeiras etapas do processo de alfabetização, quais sejam, o reconhecimento dos traços que distinguem as letras e as correspondências entre grafemas e fonemas, ambos com a função de distinguir significados, automatizando tanto os processos de recepção quanto os de produção, a fim de que possa avançar em níveis de letramento que lhe propiciem de fato apropriar-se de todos os benefícios decorrentes do domínio da leitura e da escrita.

Não se podendo tomar os processos de aquisição da linguagem verbal oral e de aprendizagem da linguagem verbal escrita como sinônimos, são relevantes algumas considerações apontadas na seção a seguir.

2.2.2 Aquisição ou aprendizagem da escrita? Considerações acerca

dos termos

Os termos aquisição e aprendizagem costumam ser utilizados no meio científico, muitas vezes, como sinônimos, no que se refere à língua escrita, o que é possível ver em nomes de cursos e disciplinas e em trabalhos, nos quais os termos apresentam-se em variação no corpo do texto, havendo, por vezes, referência a um deles no título da obra.19 Parece haver uma despreocupação generalizada no que se refere ao assunto, sendo poucos os que se mostram criteriosos no uso das expressões. Numa época em que se discutem com afinco as diferenças que subjazem a outros termos ligados ao processo de ensino e aprendizagem da língua escrita, como é o caso de toda a discussão em torno das noções de alfabetização, letramento e alfabetismo funcional nos últimos anos, tal ausência de apuro mostra- se, por assim dizer, no mínimo, incoerente.

A proposta de uma análise das diferenças entre os termos aquisição e aprendizagem, no que diz respeito à língua escrita, não se apresenta apenas como um capricho taxonômico. O fato que move a presente discussão consiste na reflexão sobre o uso consciente de um conceito e tudo o que essa escolha traz implícito. A preocupação, movida pelas consequências que a falta de tal reflexão promove, principalmente em termos educacionais, leva a uma proposta de apresentação das possíveis diferenças que envolvem os termos, por meio de uma exposição de como o ser humano se apropria da língua falada e de como isso ocorre em relação à língua escrita, em uma análise das convergências e divergências entre os dois processos.

Uma das características mais notáveis que envolvem a aquisição de uma língua natural, de acordo com Crain e Lillo-Martin (1999), é o fato de a criança se apropriar dessa língua sem um treinamento especial ou um input cuidadosamente elaborado. Outra característica que chama a atenção, segundo os autores, é o fato de a criança cometer poucos “erros” no uso da língua, ainda que haja uma ampla gama de possibilidades para tal. Esses “erros” não devem ser associados a

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Cf. Abaurre (1999), Abaurre, Fiad e Mayrink-Sabinson (1997), Ellis (1995), Godoy (2005), Kato (1995; 1998; 1999), dentre outros.

alterações fonéticas, dada a falta de domínio articulatório por crianças que ainda estão em processo de aquisição da linguagem.

Os autores, embora utilizem learn paralelamente a acquisition – o que evidencia que o descuido com os usos decorre, também, das traduções – alertam para uma das afirmações equivocadas sobre linguagem – “that children need explicit instruction in order to learn a language” (CRAIN; LILLO-MARTIN, 1999, p. 8, grifo nosso), referindo-se à apropriação da língua falada. Ao contrário, não é necessário nenhum tipo de instrução explícita para que a criança se aproprie da linguagem verbal oral, de acordo com os autores, os quais enfatizam que estágios, mais do que idades, são melhores indicadores do nível de desenvolvimento da linguagem de uma criança. São vários os autores que apresentam esses níveis de desenvolvimento, ainda que com diferentes abordagens. Wallon (1975), por exemplo, entende esse desenvolvimento como um processo conflituoso e não linear. Já Piaget ([1936] 1987) entende esse desenvolvimento de forma mais linear e mais vinculado a faixas etárias, embora alguns estudiosos não entendam as concepções piagetianas de forma tão positivista (LA TAILLE, 1992). Vygotsky ([1982-1984] 2000; 2001) relaciona o desenvolvimento linguístico ao desenvolvimento dos demais processos psicológicos superiores, e assim por diante.

O desenvolvimento linguístico não se dá isoladamente. Ele coocorre com outras instâncias: percepção, cognição, locomoção, etc.20 Há que se considerar, ainda, no desenvolvimento da linguagem oral, fatores inatos, ambientais e de maturação relacionados às várias etapas desse desenvolvimento, conforme aponta Scliar-Cabral (2003b, p. 26). No que se refere aos fatores inatos, a autora os entende como os fatores biopsiquicamente determinados pela espécie, ou seja, pela estrutura e funcionamento do sistema nervoso central. Segundo afirma, “[...] a criança normal nasce programada para operar com signos verbais, no devido tempo, em virtude de como o sistema nervoso central está estruturado e funciona.”

A respeito dos fatores ambientais, Scliar-Cabral (2003b) cita a importância do ambiente que cerca a gestante, os primeiros meses de vida da criança, assim como todo o processo de socialização. Quanto aos fatores maturacionais, a autora lembra que os circuitos que formam diferentes redes do sistema nervoso central não nascem prontos. Os neurônios sofrem um processo de mielinização, que possibilita

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Jakubovicz (2002) apresenta um paralelo do desenvolvimento da linguagem em relação a outras habilidades não linguísticas.

a especialização de diferentes funções. A autora menciona, ainda, que “[...] aspectos culturais, socioeconômicos e afetivos decidirão, definitivamente, sobre a variedade sociolingüística do falante e sobre seu idioleto”. (SCLIAR-CABRAL, 2003b, p. 28).

Feito um paralelo de como se desenvolvem a língua falada e a língua escrita, para que se chegue a uma conclusão acerca da diferença entre a apropriação e o desenvolvimento da linguagem verbal oral e da linguagem verbal escrita, alguns aspectos merecem atenção.

Em primeiro lugar, em termos de níveis de desenvolvimento, ao período do balbucio poder-se-ia relacionar o período inicial de imitação na escrita – conforme aponta Kato (1995) –, em que a criança experimenta, em um ato apenas motor, e não de representação, o contato com a língua escrita. Não há, contudo, uma fase na escrita que corresponda à fase de reduplicação silábica, como ocorre com a língua oral; tampouco que se aproxime das produções orais facilitadas pela pronúncia dos fonemas oclusivos bilabiais; nem ao período holofrástico ou, enfim, ao de produção de apenas duas palavras. No que diz respeito ao desenvolvimento morfológico e sintático, não há na escrita nada semelhante ao que ocorre na língua falada, embora alguns estudos apontem para possíveis aproximações no componente fonológico, no que se refere à apropriação dos fonemas de maior complexidade, em que ocorrem inúmeros processos fonológicos, parecendo haver, na escrita, características semelhantes, ainda que a criança tenha superado essa fase na língua oral. 21

Um processo bastante curioso de flutuação ortográfica por que passam as crianças – em que ocorre um vaivém de menor ou maior grau de desvios ortográficos – parece estar relacionado ao aumento do léxico, uma vez que a criança está exposta a itens lexicais novos em decorrência do contato com o universo escrito. Tal processo também não encontra correspondência no desenvolvimento oral da linguagem.

Seguindo o paralelo entre os dois desenvolvimentos, ao passo que o desenvolvimento da língua oral se dá conjuntamente ao de outras habilidades cognitivas, o desenvolvimento da língua escrita ocorre em fase na qual essas habilidades já se encontram, em sua maioria, estabelecidas.

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Enfim, se se tomar, por exemplo, o paralelo elaborado por Jakubovicz (2002) entre o desenvolvimento linguístico oral e demais habilidades não linguísticas, não seria possível traçar um quadro paralelo em relação à escrita. Embora os aprendizes passem por diferentes fases ou níveis de desenvolvimento da escrita mais ou menos semelhantes, como apontam Ferreiro e Teberosky (1985), há muita variação individual. Além disso, nada garante que uma criança que adquire a fala sem qualquer dificuldade não encontre barreiras em relação à aprendizagem da língua escrita, dominando-a eficientemente.

Outro dado relevante apontado por Scliar-Cabral (informação verbal)22 é o fato de, no processo de aquisição, parecer independente a qualidade do input, enquanto o mesmo não pode ser afirmado em relação à escrita: a qualidade do processo de ensino e aprendizagem interfere diretamente, comprometendo ou não o domínio da leitura e da escrita.

Quanto aos fatores inatos mencionados por Scliar-Cabral (2003b), tomem-se como argumento as palavras de Lenneberg, citado por Kato (1999, p. 202), para quem “[...] aprender a falar é como aprender a andar – um fenômeno biológico – enquanto aprender a escrever é um fenômeno cultural”. Assim, os fatores biopsiquicamente determinados pela espécie que possibilitam com que o ser humano nasça “programado” para falar não caberiam à escrita, uma vez que, segundo Ong (1998), ela é uma invenção cultural.

Quanto aos fatores maturacionais, a maturidade cognitiva de uma criança de dois anos não pode ser comparada à de uma criança de seis ou sete anos. Quanto aos fatores ambientais, Scliar-Cabral (2007) salienta que

Uma criança em fase de aquisição da fala só entende aquilo que está à vista dela, porque ela não tem maturidade cognitiva pra poder pensar coisas que estão ausentes do seu campo de visão, espaço, tempo. Uma criança de seis, sete anos está muito bem com as pessoas do discurso internalizadas. Ela tem a primeira e a segunda pessoas. Ela já internalizou o seu próprio eu. Já tem a dêixis completamente estabelecida: de pessoa, de tempo e de espaço. (SCLIAR-CABRAL, 2007).

No que diz respeito aos níveis da escrita mencionados por Ferreiro e Teberosky (1985), não há na fala a passagem da hipótese silábica à hipótese alfabética. Ao falar em hipótese alfabética, poder-se-ia pensar no desenvolvimento da consciência fonológica. Sabe-se, porém, que a pessoa não alfabetizada não

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consegue manipular os diferentes fonemas, uma vez que é a aprendizagem do sistema escrito alfabético que lhe dará ferramentas para o desenvolvimento de tais habilidades metalinguísticas. (SCLIAR-CABRAL et al., 1997)23.

Posto que a escrita caracteriza-se um produto culturalmente construído, portanto, uma invenção, necessita de um ensino estruturado para que se efetive seu domínio. Tanto isso é fato que, se assim não o fosse, não haveria analfabetos, pois a apropriação do código escrito seria espontânea.

Todo ser humano é capaz, nos primeiros anos de vida, de apropriar-se da língua falada, desde que não tenha algum tipo de distúrbio que impossibilite o desenvolvimento linguístico normal, como já mencionado. Ocorre, no caso, um processo natural de aquisição. No que se refere à apropriação da escrita, entretanto, dada a necessidade de um conhecimento que se dê sistematicamente, por meio de um estabelecimento formal de ensino, no caso, a escola, não há dúvidas: trata-se de aprendizagem, não de aquisição. Ainda que o termo aquisição possa se remeter a um ato que requeira esforço – o que não se aplica à aquisição da fala –, tantas diferenças entre o desenvolvimento e apropriação de ambas as modalidades de uma língua merecem um maior cuidado no uso de noções que carreguem semanticamente esses aspectos distintos.

O que se faz necessário registrar é a preocupação relativa a uma possível atitude que tenda a uma interpretação equivocada e associe a aprendizagem da escrita ao laissez-faire, caso se tome o processo de apropriação da linguagem verbal escrita como um processo natural de aquisição. A escrita, uma vez que requer de seu aprendiz um esforço sistematizado, planejado e mediado de estudo, roga aos que a estudam o critério da adequada especificação desse processo, garantindo que ele não seja associado ao espontaneísmo da aquisição da linguagem verbal oral.

Por fim, expõe-se que, diferentemente da naturalidade com que a linguagem oral é adquirida, as estruturas e interconexões neuronais, que de forma tão surpreendente se mostram aptas ao desenvolvimento linguístico oral desde os primeiros anos de vida do ser humano, apresentam-se geralmente apenas por volta dos cinco ou seis anos de idade desenvolvidas a ponto de viabilizar a aprendizagem da escrita, não sem lhe impor ao menos uma barreira a ser superada logo no início

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desse processo: a tendência à simetrização, a qual, por sua vez, exigirá do leitor aprendiz a “reciclagem neuronal”, nas palavras de Dehaene (2007).24