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3 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA

3.4 INSTRUMENTOS DE PESQUISA

3.4.1 O silabário

Haja vista o fato de um sistema alfabético ser de uma complexidade, em relação à leitura, maior do que um silabário, uma vez que seus componentes grafêmicos correspondem a unidades bastante abstratas da língua – os fonemas –, elaborou-se para a investigação proposta um silabário, sistema no qual os componentes grafêmicos correspondem a unidades silábicas.

A opção por um silabário permitiu que se efetivasse um processo de ensino e aprendizagem viável e eficaz para os propósitos da investigação. A escolha, assim, deveu-se à adequação das tarefas aos fins da pesquisa, ou seja, à necessidade de viabilização da coleta de dados com um número reduzido de ensaios e com um sistema que pudesse ser rapidamente aprendido pelos sujeitos de pesquisa: adultos não alfabetizados e crianças pré-alfabetizadas.

O silabário da pesquisa constitui-se, desse modo, de dezoito símbolos distribuídos em três sistemas distintos, cada qual contendo doze símbolos, a fim de ser controlada a principal variável em análise: o espelhamento. Assim, cada sujeito de pesquisa teve acesso a apenas um dos três sistemas, conforme ilustração que segue:

Figura 9 – Constituintes grafêmicos do silabário Fonte: Elaborada para fins de pesquisa

Dos doze grafemas de cada um dos três sistemas elaborados, seis eram os símbolos-raiz (primeira coluna da figura), que se repetiam nos três sistemas e dos quais sairiam as variações dos outros seis símbolos. O primeiro sistema (definido para ser usado com o G1) foi composto com seis pares espelhados, produzidos a partir dos seis símbolos-raiz e seis símbolos a eles espelhados (segunda coluna). O terceiro sistema (definido para ser usado com o G3) foi composto com seis pares de símbolos alterados topologicamente, produzidos a partir dos seis símbolos-raiz e seis outros símbolos semelhantes a eles, com acréscimos de traços e/ou alterações das relações entre os pares (terceira coluna). O segundo sistema (definido para ser usado com o G2) foi composto com os símbolos-raiz (primeira coluna), três símbolos espelhados (segunda coluna) e três símbolos com alterações topológicas (terceira coluna), de modo a compor um sistema misto.

Assim, de acordo com a hipótese da reciclagem neuronal e da necessária dissimetrização na leitura, em se tratando de grafemas espelhados, esperava-se que os sujeitos do G1 obtivessem um desempenho pior nos testes avaliativos referentes ao período de aprendizagem do que os do G3, ficando os sujeitos do G2 com um desempenho intermediário na leitura do sistema.

Os símbolos foram selecionados dos alfabetos fonético, cirílico e dos alfabetos japoneses Hiragana e Katakana. A escolha por símbolos desses sistemas se deu pela necessidade de não poderem ser de conhecimento dos sujeitos de pesquisa, mas, ao mesmo tempo, por se querer trabalhar com símbolos que fossem grafemas em sistemas de escrita existentes, e não frutos de criação experimental. O critério de seleção dos símbolos gráficos teve a ver com sua complexidade gráfica. Não era desejável para os fins de pesquisa que houvesse algum símbolo com características

físicas muito mais complexas que os demais dentro de cada sistema. Sendo assim, os símbolos foram selecionados por apresentarem simplicidade física e semelhança quanto ao nível de complexidade gráfico-visual.Os resultados do teste de luminância discreta apresentados no capítulo seguinte trazem mais detalhes em relação a essa característica do silabário.

A definição das contrapartidas sonoras dos doze grafemas de cada sistema foi feita com o intuito de se chegar o mais perto possível do atendimento aos critérios elencados a seguir:

a) sílabas com estrutura CV (padrão canônico do PB); b) não formação de palavra isoladamente;

c) ausência de pares mínimos com alternância de vogais muito semelhantes, tais como /h/ e /d/ ou /n/ e /t/;

d) sílabas orais;

e) formação de palavras frequentes e pertencentes ao universo lexical da população da pesquisa;

f) formação de palavras substantivas;

g) composição de palavras e pseudopalavras paroxítonas e em estrutura dissílaba;

h) controle das repetições de cada sílaba, de modo a ser utilizado equilibradamente o total de palavras e pseudopalavras formadas.

A combinação desses diferentes critérios na seleção dos componentes fonológicos do silabário gerou alguns impasses, dada a limitação natural do número de sílabas em português e suas características na formação de palavras. Assim, cabem algumas considerações referentes aos critérios recém-apresentados, mas não sem antes serem apresentadas as sílabas escolhidas, após longo estudo, como as contrapartidas fonológicas mais convenientes para os fins da pesquisa:

Quadro 5: Componentes fonológicos do silabário

/l`/ /ft/ .f`. .Kt. .≤`. .r`. .oh}. .a`. .et}. .Rt. .ln. .≤t.

G1 G2 G3

Na necessidade de resolver os impasses surgidos em decorrência da limitação natural do corpus de sílabas do português do Brasil (PB), buscou-se um equilíbrio na adoção dos critérios, de modo a não prejudicar o instrumento. É sabido que o rigor metodológico nem sempre se faz viável na prática, o que requer do pesquisador habilidade para avaliar onde ceder e onde se tornar intransigente, a fim de não provocar viés na pesquisa ou pôr por terra o controle das variáveis a serem investigadas. Assim, escolhas são feitas e o pesquisador assume algumas imperfeições metodológicas que entenda não comprometerem o resultado da investigação, a fim de torná-la exequível, ainda que lamente os pontos controversos, uma vez que sempre buscará o construto metodológico perfeito.

Quanto ao primeiro critério exposto, não se poderia abrir mão da estrutura silábica canônica do PB, uma vez que, assim como era indesejável o nível heterogêneo de complexidade gráfica dos símbolos selecionados, o mesmo se dava em relação às suas contrapartidas fonológicas.

Seguir o critério da não formação de palavra isoladamente foi, talvez, o maior desafio, pois algumas sílabas do português bastante produtivas não puderam ser utilizadas por gerarem isoladamente palavras, como tu, mi, lá, pá, etc. Este critério foi definido por não ser desejada a associação dos símbolos a nenhuma palavra ou referente, o que se caracterizaria por uma variável interveniente indesejada. Apesar disso, optou-se por manter a sílaba /l`/ entre as escolhidas, dado o benefício que sua presença gerou ao sistema. Ao pesar prós e contras, seguir à risca esse critério, eliminando a sílaba referida, implicaria outros problemas menos desejados na pesquisa.

Quanto à semelhança entre as sílabas selecionadas, o ideal seria que não houvesse. Entretanto, a combinação dos diferentes critérios inviabilizou concretizar tal objetivo. Assim, evitou-se a seleção de sílabas que se diferenciassem por vogais próximas, como /h/ e /d/, /t/ e /n/ ou por pares que se distinguissem por consoantes [+sonoras] ou [-sonoras], por exemplo. Enfim, objetivava-se que o sujeito não tivesse dúvidas para distinguir as doze sílabas do sistema, nem que houvesse o perigo de confundi-las oralmente, uma vez que o que se queria analisar eram as confusões visuais.

Das doze sílabas selecionadas, dez são orais e duas nasais, dada a inviabilidade de conseguir um grupo composto apenas por sílabas orais. As duas

sílabas nasais foram associadas a um único par de grafemas, o que facilitaria algumas correlações decorrentes dessa distinção.

As relações grafêmico-fonológicas do silabário elaborado para a pesquisa podem ser observadas no quadro que segue:

Quadro 6 – Correspondências grafêmico-fonológicas do silabário

Contrapartida sonora Grafemas do Grupo 1 Grafemas do Grupo 2 Grafemas do Grupo 3

/l`/ /oh}/ /a`/ /ft/ /f`/ /Kt/ /r`/ /et}/ /ln/ /≤`/ /Rt/ /≤t/

Fonte: Elaborado para fins de pesquisa.

Quanto à formação de palavras, chegou-se a um resultado bastante satisfatório em relação aos itens lexicais formados para a pesquisa. Foi possível, com o conjunto de sílabas escolhidas, formar 28 palavras e 18 pseudopalavras de modo a equilibrar a quantidade de vezes em que cada sílaba se repetia em cada conjunto, conforme se pode observar no quadro a seguir.

Quadro 7: Palavras e pseudopalavras formadas com as sílabas

Palavra Pseudopalavra 1 /!ohÒft/ /!a`Kt/ 2 /!f`Kt/ /!Rtl`/ 3 /!a`≤`/ /!etÒa`/ 4 /!r`≤t/ /!Rtf`/ 5 /!lnr`/ /!oh}ln/* 6 /!etÒft/ /!f`r`/ 7 /!l`Kt/ /!ftKt/ 8 /!f`ft/ /!lnf`/ 9 /!lnKt/ /!l`≤t/ 10 /!etÒRt/ /!lnft/

Continuação Palavra Pseudopalavra 11 /!≤`Kt/ /!oh}l`/* 12 /!et}l`/ /!≤`ft/ 13 /!lnRt/ /!etÒ≤t/ 14 /!l`≤`/ /!r`a`/ 15 /!a`≤t/ /!ohÒ≤`/ 16 /!etÒf`/ /!≤tKt/ 17 /!ln≤`/ /!etÒr`/ 18 /!Rt≤t/ /!Rt≤`/ 19 /!ohÒr`/ 20 /!l`Rt/ 21 /!a`ft/ 22 /!ohÒf`/ 23 /!ohÒa`/ 24 /!≤tr`/ 25 /!≤`r`/** 26 /!a`Rt/** 27 /!l`ft/** 28 /!ln≤t/**

Os itens lexicais foram checados mediante consulta a corpora do Núcleo Interinstitucional de Linguística Computacional (NILC), confirmação de falantes nativos quanto à presença dos itens lexicais escolhidos na variante sociolinguística da população de pesquisa (tanto de adultos quanto de crianças) e avaliação de psicolinguistas.

Para garantir que as crianças soubessem o significado dos itens lexicais mago e funcho, foram inseridas nos comandos das atividades de aprendizagem do silabário suas respectivas explicações.

A estrutura dissílaba e paroxítona foi respeitada, o que era necessário para que os grafemas pudessem ser apresentados em pares, sem alterar o nível de complexidade fonológica do sistema. Não foi possível, contudo, selecionar exclusivamente itens substantivos, mas as formas adjetivas e verbais selecionadas

* Registre-se o fato de as duas pseudopalavras apresentarem desrespeito aos padrões fonotáticos do PB, uma vez que na primeira é preciso considerar a ausência do alçamento típico do PB em sílaba átona final e em ambas ser preciso considerar a nasalização da sílaba tônica. A quebra do padrão fonotático não impede, entretanto, que se alcancem os objetivos da pesquisa nas atividades em que elas são utilizadas. ** Essas palavras foram utilizadas apenas nas sessões de aprendizagem, não se fazendo presentes nas avaliações, a fim de permitir o equilíbrio de quatro ocorrências de cada sílaba no teste avaliativo.

são de alta frequência, o que se entende como não prejudicial à pesquisa, por serem de fácil compreensão.

Por fim, mas não menos importante, o rigor no controle de frequência das sílabas nas palavras formadas foi o critério que direcionou todas as demais adaptações do sistema. A frequência equilibrada das sílabas no conjunto de palavras e pseudopalavras fazia-se relevante. Era importante que, tanto ao longo do período de aprendizagem, quanto nos testes avaliativos, todos os grafemas fossem expostos em um mesmo número de vezes aos sujeitos, a fim de que houvesse as mesmas condições de aprendizagem e avaliação para todos os pares gráficos do sistema e para todos os sujeitos.

Das 28 palavras formadas, assim, 24 foram selecionadas para os testes (a fim de garantir as quatro ocorrências de cada grafema), sendo quatro delas destinadas apenas ao período de aprendizagem, juntamente a outras oito presentes nas avaliações, o que perfez um total de doze palavras utilizadas no período de aprendizagem do silabário.

Quanto ao uso de pseudopalavras na presente pesquisa, cabe destacar sua relevância. Obviamente que se intenta que a leitura seja uma prática relacionada ao estabelecimento de significados, em diferentes âmbitos. O caráter da investigação proposta, entretanto, especificamente centrado no processamento da leitura em sua fase mais elementar, requer o cuidado de garantir que os resultados da pesquisa sejam fiéis aos seus propósitos. Nesse sentido, a leitura de pseudopalavras garante que o sujeito de fato consiga associar o símbolo gráfico aprendido à sua respectiva contrapartida sonora e não se trate de nenhuma capacidade de memorização visual de uma palavra conhecida, como é frequente com pessoas em fase inicial de alfabetização. Essa memorização visual ficou evidente no teste de leitura, nos itens vaca e bola, em que alguns sujeitos, mesmo sem reconhecer todas as letras do alfabeto e não obter sucesso na leitura de nenhum outro item lexical presente no teste, reconheciam com certa facilidade os dois itens citados, por memorizar sua forma visual, uma vez que ambos são correntes no processo inicial de alfabetização.

Por fim, não relacionado ao aspecto fonológico, mas merecedor de registro, cabe citar, como é possível observar no destaque do quadro a seguir, três pseudopalavras, no grupo 1, constituídas por pares espelhados.

Quadro 8: Pseudopalavras em pares grafêmicos

Pseudopalavras Grafemas do Grupo 1 Grafemas do Grupo 2 Grafemas do Grupo 3

/‘≤tKt/ /‘Rtf`/ /‘≤`ft/

Fonte: Elaborado para fins de pesquisa.

Embora inicialmente indesejada, tal combinação permitiria investigar outra questão secundária dentro dos grupos: apresentariam tais pseudopalavras um grau ainda maior de dificuldade de leitura que as demais, por apresentarem dois símbolos que se diferem entre si apenas pelo espelhamento?