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2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.6 AS BASES NEUROFISIOLÓGICAS DA LEITURA

2.6.1 Os mecanismos da leitura

Estes (1975) já mencionava há mais de trinta anos que o problema de entender como se consegue processar a informação de material impresso já era tema de interesse da Psicologia Cognitiva e que muitas ainda eram as perguntas sem respostas.

Parece que somente agora a Psicologia Cognitiva apresenta uma série de descobertas sobre os mecanismos cerebrais subjacentes às etapas de transformação da informação, que começam a ganhar suficiente descrição. Tudo começa no olho. E, desde o início do processo, as estruturas biológicas do ser humano impõem limites à leitura. Somente a fóvea, no centro da retina, possui aproximadamente 130 milhões de células fotorreceptoras – dentre cones e bastonetes –, de acordo com Garman (1990, p. 67), e somente os cones, que representam ¾ desse montante, são suficientemente especializados para reconhecer os pequenos detalhes gráficos de uma letra. Essa região retiniana, única útil para a leitura, ocupa aproximadamente 15° do ângulo de visão, o que obriga o leitor a realizar inúmeros movimentos em sacada com os olhos, a fim de percorrer a linha escrita e identificar os diferentes grafemas que se organizam em sequência em seu campo visual. “[...] há uma perda progressiva da precisão da codificação visual. A precisão é máxima no centro e diminui em direção à periferia.” (DEHAENE, 2007, p. 37).56

Durante uma única fixação, de acordo com Larson (2004), há um limite na quantidade de informação a ser reconhecida e é possível visualizar cerca de três a quatro letras para a direita e para a esquerda, sendo que a acuidade visual decresce

56

Tradução de Scliar-Cabral (2008) para “[...] il y a une perte progressive de la précision du codage visuel. La

consideravelmente na parafóvea, em que é possível ver de 15 a 20 letras. Dada essa estrutura, o olho, ao preparar as sacadas, adapta-se ao tamanho dos caracteres, avançando a cada sacada. Os dados correspondem à leitura da esquerda para a direita em sistemas alfabéticos, em que a fóvea capta cerca de três a quatro letras à esquerda do centro do olhar e cerca de sete a oito à direita. Os números variam em sistemas não-alfabéticos ou com leitura vertical ou da direita para a esquerda. O que se tem, então, no momento da leitura, é algo que se assemelha à figura a seguir:

Figura 5 – Organização da retina durante a leitura

Fonte: Texto de Raul Pompéia (1976), O Ateneu, tratado com base na figura 1.1 de Dehaene (2007).

Fora do campo de 15° da fóvea retiniana, o leitor é insensível à identificação das letras, percebendo apenas os espaços em branco que delimitam a palavra a seguir.57 Fixado o olhar sobre a palavra a ser lida, “[...] o objeto visual explode em miríades de pequenos fragmentos que nosso cérebro se esforça em recompor, traço por traço, letra após letra.”58 É como se cada letra se fragmentasse em seus milhares de pixels e o sistema neuronal recompusesse todos esses minúsculos elementos para formar novamente a unidade gráfica a fim de reconhecê-la. Ao recompor esses traços e letras com o propósito de ler a palavra, o cérebro reconhece invariâncias, uma vez que as letras e palavras não se manifestam fisicamente sempre da mesma forma, como já foi discutido em seção anterior59.

O fluxo das atividades neuronais é descrito por Dehaene da seguinte maneira:

Formas visuais inicialmente muito próximas como “pela” e “bela”, analisadas por uma hierarquia de detectores cada vez mais refinados, são progressivamente triados, separados e religados a significações diferentes. De modo inverso, formas como “bela” e “BELA”, compostas por traços visuais inteiramente diferentes são de início representadas por neurônios

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Em relação a essa insensibilidade visual às letras em zona visual periférica, ver estudos de McConkie e Rayner (1975).

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Tradução de Scliar-Cabral para “[...] l’objet visuel est explosé en myriades de petits fragments que notre

cerveau s’efforce de recomposer, trait par trait, lettre après lettre.” (DEHAENE, 2007, p. 29). 59

distintos da área visual primária, mas são em seguida progressivamente recodificados nos níveis seguintes. Os detectores de formas reconhecerão a similaridade do “x” e do “X”. Outros detectores de letras mais abstratos serão capazes de classificar as formas “e” e “E” como duas instâncias da mesma letra. (DEHAENE, 2007, p. 47-48).60

Ainda não há respostas suficientes sobre como se dá a análise de cada unidade, nos diferentes níveis de processamento, mas o autor postula a coexistência de níveis múltiplos de análise, desde os traços distintivos das letras, passando pelos grafemas, pelas sílabas e pelos morfemas, para, enfim, se chegar à leitura da palavra, a qual estaria representada por uma estrutura arbórea, em que as ramificações e folhas se constituiriam em suas unidades mais elementares.

Assim, pode-se seguir, indiretamente, o avanço progressivo da informação no cérebro desde os traços sobre a retina até sua transformação em letras e imagens acústicas. O acesso à sonoridade das palavras se produz muito rapidamente, inconscientemente, por uma via de conversão rápida dos grafemas em fonemas. (DEHAENE, 2007, p. 56).61

Tal conversão, entretanto, está longe de ser uma operação simples. Ambiguidades decorrentes de falta de biunivocidade nas relações fonografêmicas geram dificuldades para a leitura, havendo a necessidade de o leitor recorrer a estratégias metacognitivas que permitam resolver tais impasses.62

A arquitetura do córtex cerebral está organizada de modo a favorecer o entendimento de que a leitura se dá por vias múltiplas e paralelas. Ainda que os modelos de via dupla subestimem a complexidade da estrutura neuronal e de reconhecer a necessidade de interpretar o processo da leitura ocorrendo em vias múltiplas e paralelas, Dehaene (2007) assume a necessidade de se distinguir as vias fonológica e lexical neste momento de descobertas sobre o assunto.

Tão logo o sistema nervoso encontra ambiguidade,

[...] a regra fundamental é deixar todas as possibilidades abertas – o que não é possível senão em um sistema maciçamente paralelo, onde muitas interpretações possam ser consideradas simultaneamente. Assim os níveis

60

Tradução de Scliar-Cabral (2008) para “Des formes visuelles initialement três proches comme ‘deux’ et ‘doux’,

analysées par une hiérarchie de détecteurs de plus en plus raffinés, sont progressivement triées, séparées et ratachées à des significations différentes. Inversement, des formes comme ‘deux’ et ‘DEUX’, composées de traits visuels entièrement différents, sont initialement représentées par des neurones distincts de l’aire visuelle primaire, mais sont ensuite progressivement recodées aux niveaux suivants. Des détecteurs de formes reconnaîtront la similarité du ‘x’ et du ‘X’. D’autres détecteurs de lettres, plus abstraits, seront capables de claser les formes ‘e’ et ‘E’ comme deux instances de la même lettre.”

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Tradução de Scliar-Cabral (2008) para “Ainsi peut-on suivre, indirectement, l’avancée progressive de

l’information dans le cerveau depuis les traits sur la rétine jusqu’à leus transformation en lettres et en sons. L’accès à la sonorité des mots se produit très rapidement, à notre insu, par une voie de conversion rapide des graphèmes en phonèmes.

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de tratamento seguintes podem trazer seus próprios elementos de interpretação, até que uma solução globalmente satisfatória seja encontrada. (DEHAENE, 2007, p. 83).63

O aparato neuronal de que o leitor fluente dispõe permite acessar em segundos, simplesmente a partir do escaneamento de “manchas” pela retina, um item lexical, dentre mais de cinquenta mil possibilidades no léxico mental. O tempo de leitura das diferentes palavras desse léxico não é, entretanto, proporcional ao número de letras que essas palavras contêm, o que corrobora os postulados de Selfridge (1959)64, de que, diferentemente de um processamento serial da sequência de caracteres de uma palavra, o cérebro dispõe de “[...] milhares de processadores ultra-especializados [que] trabalham em paralelo em todos os níveis – traços, letras e palavras”.65 Em pessoas que sofreram acidente vascular cerebral e manifestam algum tipo de alexia que ainda permite a leitura em algum nível, entretanto, o tempo de leitura será tanto maior quanto for a quantidade de letras de uma palavra.

Mas, como todo esse engendrado sistema de reconhecimento da escrita está organizado no cérebro? É o que se apresenta resumidamente na seção seguinte, com base nas recentes descobertas de Dehaene (2007).