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D IFICULDADE DE DESMEMBRAR A SÍLABA E ASSOCIAR FONEMAS A GRAFEMAS

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.2 ENTRE A ORALIDADE E A ESCRITA: ALGUNS PONTOS RELEVANTES

2.2.3 Principais dificuldades do alfabetizando

2.2.3.2 D IFICULDADE DE DESMEMBRAR A SÍLABA E ASSOCIAR FONEMAS A GRAFEMAS

Outra dificuldade apontada por Scliar-Cabral (2008) diz respeito ao desmembramento da sílaba em fonemas e a associação desses fonemas a grafemas. A percepção auditiva da fala é de um continuum, diferentemente da percepção visual do leitor, que se depara com espaços em branco delimitando as palavras. Essa diferença, por si só, já impõe uma dificuldade ao processo de alfabetização. No que se refere à percepção do fonema, entidade psíquica, abstrata e, na maioria dos casos, codependente de um outro fonema, ou seja, pronunciável apenas junto a outro, como é o caso das consoantes e semivogais, a dificuldade é ainda maior e há uma razão para que isso ocorra. Acusticamente, o que se percebe é a sílaba, ou seja, uma única emissão de voz. A pessoa que não detém conhecimentos relativos ao sistema escrito alfabético percebe apenas esse conjunto, não conseguindo desmembrá-lo, uma vez que não possui as ferramentas necessárias para abstrair o fonema, qual seja: o sistema alfabético.

Os sujeitos aprendizes passarão a ter fundamentação para elaborar esse construto a partir do conhecimento das letras do alfabeto (que constituem isoladamente ou em conjunto os grafemas) e da percepção de que esses grafemas representam unidades menores que a sílaba. Por esse motivo, inclusive, sujeitos

que têm em sua língua sistemas escritos não alfabéticos encontram limitações quanto à percepção do fonema, pois falta-lhes a ferramenta que viabiliza tal percepção. É a chamada consciência fonológica que possibilitará ao sujeito aprendiz debruçar-se sobre a língua falada a fim de manipular suas diferentes unidades. Pode-se definir a consciência fonológica em dois aspectos:

a) a tomada de consciência de segmentação da língua falada em unidades menores (palavras, sílabas, fonemas); e

b) a consciência da produtividade dessas unidades25.

Embora sejam comuns diferentes entendimentos relativamente ao que envolve a consciência fonológica, seu desenvolvimento e sua relação com o processo de alfabetização, ela não pode se confundir com as habilidades que, em conjunto, a caracterizam. De acordo com Nascimento (2004), são, do nível mais elementar ao mais complexo:

a) consciência de rimas e aliterações; b) consciência de palavras;

c) consciência silábica; d) consciência fonêmica.

Scliar-Cabral (2008) chama a atenção para a “distinção entre consciência fonológica e conhecimento linguístico para o uso, que todo falante nativo de uma língua possui, independente de ter ou não passado por um processo de alfabetização”. Ao nascer, uma pessoa não tem seu sistema nervoso central desenvolvido a ponto de estar apta a demonstrar algum tipo de consciência fonológica, até porque, a experiência com a língua materna é insuficiente para isso. Embora essa consciência fonológica venha com o passar do tempo e se desenvolva a partir de certas experiências (por exemplo, em níveis mais complexos, com a alfabetização), a partir da internalização de sua variante sociolinguística, o sujeito tem um conhecimento inconsciente do sistema fonológico para o uso da língua. Falantes nativos, mesmo sem consciência fonológica, utilizam com propriedade os diferentes fonemas, uma vez que reconhecem a distinção entre os inúmeros pares mínimos pertencentes ao seu léxico, tais como /‘mDk`/ e /‘lDk`/; /‘e`j`/ e /‘u`j`/; /‘oh}ft/ e /‘ah}ft/; etc. Tanto é verdade que, mesmo sem compreender a noção de

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fonema, sujeitos não alfabetizados conseguem entender piadas que utilizam estratégias fonêmicas como desencadeadoras do humor, tais como algumas piadas de fanhos, nas quais se cria um ruído proposital no fonema inicial de uma palavra que faz par mínimo com outra obscena. /‘rh}st/ e /‘oh}st/ ou /‘sdmhr/ e /‘odmhr/, por exemplo.

Quanto às diferentes habilidades fonológicas mencionadas por Nascimento (2004), também é possível evidenciar empiricamente que sujeitos não alfabetizados as possuem, ao menos em níveis mais elementares. É comum, por exemplo, observar

[...] crianças de 4 ou 5 anos brincando com nomes dos colegas em jogos de rimas como: "Gabriel cara de pastel, Fabiana cara de banana". Mesmo sem saber que isto é uma rima, a brincadeira espontânea das crianças atesta sua capacidade de consciência fonológica. (NASCIMENTO, 2004).

A consciência de palavras e de sílabas, quando desenvolvida, permitirá a segmentação do continuum da fala26, enquanto o nível mais complexo, relativo à consciência fonêmica, será desenvolvido simultaneamente ao processo de alfabetização.

Como já mencionado, há diferentes entendimentos a respeito de como se dá esse desenvolvimento e de qual seja a relação entre ele e a alfabetização. Há estudos que apontam que o desenvolvimento da consciência fonológica é a preditora do progresso na alfabetização e outros defendem a alfabetização como viabilizadora dessa consciência fonológica em níveis mais complexos. Um dos problemas dos inúmeros estudos desenvolvidos sobre consciência fonológica é que nem todos especificam sobre quais habilidades fonológicas estão tratando. Uns apontam que são as habilidades de consciência de rima e aliteração que predizem o progresso na alfabetização (GOSWAMI; BRYANT, 1997); outros mencionam essa relação com os níveis mais complexos de consciência de palavra, silábica e fonêmica (CHARD; DICKSON, 1999; ZORZI, 2003). Atualmente, entretanto, estudos levam a entender os dois desenvolvimentos em reciprocidade, ou seja, conforme um avança, interfere no desenvolvimento do outro e vice-versa. (HOLENDER, 1992; MORAIS; ALEGRIA; CONTENT, 1987; SCLIAR-CABRAL et al., 1997).

Alguns estudos examinaram a capacidade de análise da fala por crianças japonesas que conhecem bem os Kanã, mas que ainda não receberam

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instrução alfabética. Estes estudos mostraram que elas são incapazes de fazer a análise fonémica da fala, apesar de serem ligeiramente superiores às crianças americanas ou europeias no que se refere à análise em sílabas. (NIMURA-SENSEI, apud MORAIS, 1997, p. 60).

A carta do Prof. Nimura-Sensei, apresentada por José de Morais (1997), evidencia essa relação entre o sistema escrito e a consciência fonológica, uma vez que a capacidade para analisar a oralidade em sílabas é indispensável para a escrita kana, utilizada pelos japoneses, enquanto a análise fonêmica não.

2.2.3.3 DIFICULDADE EM RECORTAR O CONTINUUM DA FALA, ESPECIFICAMENTE EM