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O QUE NOS REFERENCIA TEORICAMENTE?

4.3 As gerações da Teoria da Atividade

4.3.2 A segunda geração: a estrutura da atividade e Leontie

A segunda geração da TA é caracterizada pelos trabalhos de Leontiev. Numa leitura cuidadosa dos trabalhos de Marx, a partir da emergência da divisão de trabalho, Leontiev fez a distinção entre a ação individual e a atividade coletiva. Com uma passagem que ficou conhecida como o exemplo da caçada primitiva coletiva196, Leontiev (p.210-213 apud ENGESTRÖM, 1999a), descreve tal atividade, em que os indivíduos tomam parte, movidos por suas necessidades por alimentos e/ou por vestimentas. Em sua organização, nem todos os participantes nela engajados agem da mesma forma; dividem-se em grupos em que alguns indivíduos são encarregados de espantar e direcionar a caça a um local onde outros se escondem e planejam uma emboscada para, enfim, abatê-la. Neste exemplo, o indivíduo que espanta a caça, quando visto isoladamente, parece não estar agindo

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diretamente no sentido de atingir o objeto para o qual a atividade (caçada) estaria direcionada; parece até mesmo estar agindo no sentido contrário. Mas é preciso observar que a atividade só se completa com a execução de cada uma das atividades de cada grupo de indivíduos. Esta atividade cuja meta não coincide diretamente com o objeto da atividade, segundo Leontiev, seria uma ação individual constituinte da atividade coletiva (caçada). Tal distinção muda a unidade de análise do desenvolvimento humano: da ação individual mediada e orientada a objeto, como proposto por Vigotski, para atividade coletiva mediada orientada a objeto. Pois, ainda referindo-se ao exemplo da caçada primitiva, a ação de espantar a caça parece “sem sentido e injustificável” (LEONTYEV, 1981, p. 212 apud, ENGESTRÖM, 1987) se não levarmos em conta a atividade coletiva em sua totalidade.

A partir dessa explicação, Leontiev sistematizou, organizou e modelou a atividade em três níveis distintos, mas interdependentes: a atividade, a ação e a operação.

Toda atividade é coletiva e definida/determinada pela necessidade, chamada na TA de motivo da atividade. Este é identificado pelo objeto, para o qual é orientada a atividade. Não existe uma atividade sem motivo (LEONT’EV, 1981, p.59), ou sem objeto. Assim, é o objeto que distingue uma atividade da outra; ou seja, objetos distintos determinam atividades distintas.

A atividade é constituída por ações: processos subordinados a metas individuais – objetivos parciais (ASHBAR, 2005, p.110) que em sua totalidade compõem, de forma não aditiva197, o objeto da atividade – conscientemente estabelecida para suprir a necessidade (motivo) inicial da atividade –. As ações são realizadas por diferentes indivíduos do grupo que conduz a atividade. Por exemplo, a atividade da caçada primitiva, como descrita por Leontiev, é composta por, no mínimo, duas ações: uma delas seria espantar a caça em direção à armadilha, e a outra abater a caça. Observe que cada uma delas é conduzida por um grupo diferente de indivíduos e que a atividade depende do sucesso dessas ações; assim, a atividade não se concretiza se uma das ações deixa de acontecer. Ao exercitar a nossa imaginação sobre esse episódio, podemos ainda acrescentar outras ações constitutivas dessa mesma atividade: a fabricação de ferramentas para auxiliar a caçada; ou

197 “(…) atividade não é um processo aditivo. Da mesma forma, ações não são partes especiais que

constituem a atividade.”. Tradução de “(…) activity is not an additive process. Likewise, actions are not the

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ainda, a fabricação de ferramentas para o abate, o preparo e o corte da caça a ser distribuída; distribuição das partes, etc… A coletividade organiza-se em torno das ações que compõem a atividade caçada. Diferentemente da atividade que é coletiva, a ação é individual, pois esta é associada a objetivos individuais (ou de um grupo) conscientemente estabelecidos. A ação pode ser executada por um único indivíduo, ou por um grupo; nesse caso, entretanto, todos os indivíduos desse grupo estarão realizando a mesma ação, ou seja, compartilham do mesmo objetivo.

Por sua vez, ações dependem também de aspectos operacionais, como, por exemplo, condições materiais e métodos para realizá-las. As operações referem-se aos procedimentos que o indivíduo implementa para alcançar o objetivo da ação, como Leont’ev (1981) nos coloca “… uma ação tem qualidades especiais, seus componentes próprios, especialmente os meios pelos quais a ação é executada. Denominarei tais meios, pelos quais uma ação é executada, por suas operações.198” (p.63). Esta distinção entre ação e operação é importante, uma vez que uma única ação pode ser realizada em condições materiais e métodos diferentes, ou seja, por meio de operações distintas. Tal distinção emerge de forma mais clara no caso das ações que envolvem ferramentas, pois, como observa Leont’ev (ibidem), “… uma ferramenta é um objeto material em que métodos e operações são cristalizados, mais do que ações e objetivos.199” (p. 63). Alguns trabalhos referem-se a operações como procedimentos automatizados (GOULART, 2005, p. 117; KUUTTI, 2001, p.31). No exemplo da caçada primitiva, a possível utilização de ferramentas no abate da caça pode ser considerada uma operação que permitiu a execução da ação, abate, constituinte da atividade caçada.

As definições de atividade, ação e operação dizem mais respeito ao caráter relacional entre os níveis, do que ao caráter determinístico de cada definição, uma vez que os níveis de comportamento humano não são estanques. Eu diria “uma vez ação, nem sempre ação”. Um exemplo clássico da TA, com origem em um quadro descrito por Leont’ev (1978, p. 64), é o ato da mudança de marchas na direção de um carro. Se a pessoa que dirige é, vamos dizer, um ‘ás’ no volante, mudar a marcha não passa de um aspecto operacional de sua ação (conduzir um veículo), pois este é um comportamento já automatizado e

198 Tradução de “… the action has special qualities, its own special “components,” especially the means by which it is carried out. I shall label the means by which an action is carried out its operations.”

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incorporado pelo motorista. Por outro lado, se quem dirige é ainda um aprendiz, mudar a marcha pode se tornar algo deveras complicado (e todos nós, motoristas, já vivemos essa experiência). Nesse caso, a mudança de marcha não é um comportamento automatizado, e nem incorporado pelo aprendiz, portanto, nesse caso, não se trata de uma operação, mas pode ser vista como uma ação, parte de uma atividade de aprendizagem.

Podemos observar, no Quadro 3, a representação do comportamento humano produtivo nos três níveis – atividade, ação e operação – como delineados por Leontiev – as três primeiras colunas – e como entendida por Roth et al. (2005). Os diferentes níveis são inderdependentes, como nos explicam os autores, e relacionam-se através da ação, que de forma dialética faz as conexões (operações ← ação → atividade) em duplo sentido: por um lado, a ação referencia (referência) a seqüência de operações a serem realizadas, que em sua totalidade dão a síntese da ação; por outro lado, a ação é parte constituinte200 da atividade, e o que os relaciona é o sentido conferido a tal ação pelo indivíduo que a executou e pela coletividade (envolvida em mesma atividade) que “percebe o sentido atribuído, interpreta-o em termos das intenções…” (Roth et al., ibidem, p.10). O significado da atividade coletiva é, por sua vez, coletivo e é o que relaciona os sentidos de cada uma das ações – referenciam as operações – às referências.

O desenvolvimento dessa noção de atividade estruturada em três níveis caracterizou, para Engeström (1999a), o que ele chamou de segunda geração da TA. Este autor propõe a partir de tal estruturação uma nova representação (Figura 4) para o que ele denominou o

199 Tradução de “… a tool is a material object in which methods or operations, rather than actions or goals, are crystallized.”

Relação entre os níveis

Tipo de Atividade Ação Operação Orientação Motivo Objetivo Condições Plano Coletivo, consciente Individual, consciente Individual, inconsciente, incorporado sentido referência significado

Quadro 3: A noção de atividade está subordinada à noção de motivo/necessidade coletiva; a ação, subordinada à noção de objetivos/metas, conscientemente estabelecidas e organizadas para a realização da atividade; já a noção de operação está subordinada às condições e ferramentasdisponíveis para a realização/execução da ação.

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sistema-atividade201, dessa vez, incluindo o caráter coletivo da atividade humana, a

comunidade.

Outros conceitos foram discutidos nas duas primeiras gerações por teóricos aqui citados e por muitos outros não citados. Em meu entendimento, é impossível aqui discutir todos eles e citar todos os teóricos que contribuíram no desenvolvimento desta teoria. Contudo, alguns conceitos relevantes para a TA, e não discutidos até então, são retomados e re- contextualizados pela terceira e atual geração.