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A Temazcal Guarani e a metáfora material e linguística: um caso de

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4.3 Mundo urbano e mundo xamânico – Intersecções de sentido

4.3.2 A Temazcal Guarani e a metáfora material e linguística: um caso de

Com base nos contexto teórico apresentado até aqui, realiza-se uma leitura aprofundada da Temazcal Guarani, e sua denominação social dentro da perspectiva do fenômeno do Neoxamanismo urbano e do Neoxamanismo Indígena.

Trataremos da construção da Temazcal, a partir da cultura material dos povos aqui citados. A história cultural e material destes grupos é muito rica, e dá origem a uma linha de pesquisa chamada de antropologia material. O estudo introdutório da Suma Etnológica

Brasileira, editada por Darcy Ribeiro, é um compêndio de estudos de expoentes da

antropologia e etnologia nas Américas. Nesse estudo introdutório a profª. Dª Dolores Newton, emérita da University of New York at Stony Brook, relata alguns casos de formação das residências entre os Tupi, Xavante, Karajá, Yawalapití etc:

Os fenômenos culturais se apresentam segundo três modalidades distintas: a das ideias, a do comportamento e a dos objetos físicos. Esta última modalidade é a que nos interessa aqui, constituindo um campo de estudo adjetivado com um nome novo, antropologia material. [...] A cultura material foi caracterizada por Bohannan (1973:364) como único fenômeno cultural codificado duas vezes: uma vez na mente do artesão e a outra na forma física do objeto. Essa dupla codificação permite comparar os três fenômenos culturais, ou seja, o artefato, bem como seus aspectos cognitivos e comportamentais (RIBEIRO, 1986, p. 15).

Foi levantado um conjunto de características do Sentido, entre elas a materialidade. Aqui, pode-se notar como é viável o estudo desse campo, pois na construção visualiza-se mais propriamente a ideia que em certo momento chega aos sentidos pela observação do mundo da vida, em seguida é traduzida em seleção e manejo dos materiais na natureza do entorno, e novamente é devolvida para o espaço de forma manufaturada.

Essa manufatura dos materiais é uma relação de materialidade do sentido e é composta de forma estética e ao mesmo tempo repleta das metáforas encontradas no ambiente mítico e ritualístico de cada comunidade. No estudo citado, a Profa. Da. Dolores Newton dá continuidade ao conceito, pois ―como não podia deixar de ser, a casa e a aldeia procuram atender às necessidades básicas de vida comunitária e à observância de características locais: topografia, clima e materiais de construção disponíveis‖ (RIBEIRO, 1986, p. 91).

A Temazcal (na língua Lakota chama-se INIPI), conhecida aqui no Brasil como ―Tenda do Suor‖, tradicionalmente é praticada como ritual de purificação entre os povos da América Central (Maia e Tolteca) e do Norte (principalmente Lakota, Oglala), entre outros nomes: de sweat lodge, sauna sagrada etc. O ritual se estrutura da seguinte maneira: ao entrar na tenda, cada pessoa passa pelo mestre, que faz evocações e purificações com objetos de oração e poder. Entra-se ajoelhados e pronuncía-se a palavra: Mitakuye Oyasin (―Por Todas As Nossas Relações‖, ―Sou aparentado com tudo que existe‖ etc.), e ocupa um lugar dentro da tenda, dirigindo-se no sentido horário.

Quando todos estão dentro da tenda, o ―Guardião do Fogo‖ vai, a pedido do mestre, trazendo pedras quentes (abuelitas). Após as pedras serem colocadas no centro da tenda, a porta é fechada, e começam as invocações, jogando água e ervas nas pedras. São invocados os poderes das quatro direções, animais de poder, canções, preces, etc. Mitakuye Oyasin também é invocado por ocasião do ritual da pipa, cachimbo sagrado, sendo bem comum dentro das práticas autóctones, e que se tornou um jargão dentro do Neoxamanismo urbano.

Tanto a INIPI como o rito da pipa sagrada fazem parte de um conjunto de sete cerimônias trazidas pela Mulher Búfalo-Branco, uma mitologia muito difundida entre os Oglala, Lakota, Sioux etc. Divulgadas por Black Elk, liderança e pajé do povo Sioux, em seu livro The Sacre Pipe: Account of the Seven Rites of the Oglala Sioux (BRAGA, 2010).

A construção da Temazcal obedece a um conjunto de procedimentos cosmológicos, por exemplo, a sua entrada tem que estar virada para o leste onde fica a fogueira sagrada que aquece as pedras. Além das varas de bambu internas que correspondem a uma complexa disposição imitando as constelações estelares. O formato é de iglu, e sua cobertura é de couro de animais, atualmente os grupos de Neoxamanismo urbano usam cobertores e plásticos para isolar e manter a temperatura necessária para a ritualidade.

Nesse caso, tem-se uma cultura material muito rica, que como visto, traduz muito dos hábitos, ideias e manejo de uma produção social e estética, é um conjunto de elementos que compõe a memória coletiva do grupo. Também está repleto de Sentido, pois entrar na Temazcal é uma metáfora para o útero materno. Dentro das práticas do Neoxamanismo urbano é uma volta à primeira infância e contato com ―pachamama‖ (Mãe Terra).

O caso Guarani é muito rico, a partir da interferência dos modos de ser da aldeia com a doutrina do Santo Daime, e do Fogo da Verdade, ambas as religiões contemporâneas de revivalismo presentes no Neoxamanismo urbano. A introdução da Temazcal na aldeia Guarani de Águas Claras iniciou com a troca ritualista do uso da ayahuasca como contato intercultural, em seguida foi adotado a Temazcal e o Vision Quest, outra cerimônia indicada dentro dos sete ritos sagrados que pressupõe um retiro ritual com jejum durante um tempo determinado de dias para adquirir visões proféticas, como comenta Rose e Langdon:

A aldeia de Águas Claras faz parte do território Guarani tradicional, mas foi reocupada por uma família extensa indígena no início da década de 1980 e hoje constitui um ponto central na rede das aldeias Guarani do litoral sul- catarinense. Atualmente, os moradores desta comunidade encontram-se engajados em um amplo processo de ―revitalização da tradição‖. O Santo Daime é um movimento religioso que teve início nos anos 1930, no Acre. A partir do final da década de 1970 começou a expandir-se por todo o país e, posteriormente, nos anos 1990, para o exterior. Seu simbolismo combina elementos provenientes do Catolicismo popular, do Espiritismo kardecista, dos cultos afro-brasileiros, de grupos indígenas e do universo New Age, entre outros. O grupo espiritual que chamamos aqui de Fogo da Verdade foi oficializado no início dos anos 1980, nos Estados Unidos, e começou suas atividades no Brasil, no final da década de 1990, realizando rituais que combinam elementos que teriam origem em diferentes tradições do continente americano e sendo influenciados principalmente pelas práticas dos grupos indígenas das planícies norte-americanas (ROSE, LANGDON, 2010, p. 84).

Percebe-se a encruzilhada cultural que se instaura nessas relações, além de se encontrar a troca de sentido entre os três grupos diferentes; também a ritualidade e a cultura material estão em intercâmbio e promovem a interferência nos discursos, sendo assim, são encontrados diversos arranjos que permitem a configuração do mundo da vida, e promovem entre os interlocutores processos de aprendizagem e funda elementos instituidores de linguagens, neologismos como fenômeno de atribuição de novos sentidos a significados pré- existentes.

FIGURA 8: Cerimônia Indígena Guarani

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O movimento, autodenominado ―Aliança das Medicinas‖, iniciou a prática da Temazcal como uma das ritualidades dentro da aldeia. Iniciado com a presença do uso da ayahuasca na Opy (casa de reza), que é o centro da aldeia Guarani.

Atualmente, nem todas as aldeias mantêm a Opy, mas é bem difundida a presença das

Opys nas aldeias indígenas (BAPTISTA, 2007). As Opys fazem parte da cultura material dos

Mbya Guarani e a aldeia só é completa com a existência desse espaço de comunhão (OLIVEIRA SANTOS, 2012), onde ocorrem as reuniões coletivas, o convívio diário, que é conduzido por danças e cantos que iniciam ao cair do dia e seguem por toda a noite. Também, o lugar tradicional onde ocorrem as cerimônias de cura, que podem ocorrer a qualquer

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Fonte: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=895519987193985&set=pb.100002079758784.- 2207520000.1516415994.&type=3&theater

momento, estando dentro da Opy, é o lugar onde ocorrem os batismos das crianças e da sagrada ka‘á (erva mate).

Como um processo de apropriação a Temazcal sofre transformações de um novo campo de sentido. Para poder se referenciar à Temazcal os Guaranis tiveram de estabelecer uma releitura da tradição e introduzir novas nomenclaturas para a comunicação, entretecendo novos processos de tradução.

Sabe-se que, das muitas etnias presentes no Brasil, os Guarani são das poucas que matêm a língua de forma constante e cotidiana, assim adotando e criando neologismos para algumas das palavras da cultura ocidental. Além da língua, a espacialidade da aldeia é importante campo de trocas e traduções. Essa intencionalidade do espaço é importante, pois a pessoa está no espaço, assim como o espaço está na pessoa e não há uma divisão clara da percepção e da intelecção do espaço:

Pode, sem dúvida, ser objetivado que a ideia de intencionalidade é apenas válida na reconstrução da teoria do conhecimento. Opondo-se à ambiguidade do cogito do enfoque cartesiano, e também reclamando a supressão da dualidade entre cogito e percipio, Husserl enxerga nessas duas categorias operações integradas e inseparáveis, cuja unidade deveria servir para recusar, ao mesmo tempo, os simplismos do idealismo e do realismo. [...] Mas a noção de intencionalidade não é apenas válida para rever a produção do conhecimento. Essa noção é igualmente eficaz na contemplação do processo de produção e de produção das coisas, considerados como um resultado da relação entre o homem e o mundo, entre o homem e o seu entorno (SANTOS, 2008, p. 90).

Neste ponto, recorre-se a Milton Santos, pois concebe a inovação no estudo do homem e do espaço, e essa ―natureza‖ do espaço está repleta de Sentido e Metáforas. O contexto fenomenológico, e neste caso hermenêutico dos Guarani, está associado à ideia de apropriação de um novo espaço, ou seja, a Temazcal que passará a se chamar Opydjere. Ou seja, casa de reza circular. Como completam Rose e Langdon:

Paralelamente, junto com as cerimônias com ayahuasca, o temazcal ou sweat

lodge foi introduzido na aldeia Guarani, e uma construção de barro na forma

de um iglu foi construída ao lado da casa de reza, tendo sido batizada como

opydjere, literalmente ―casa de rezas redonda‖. Alguns moradores de Águas

Claras, incluindo as principais lideranças da comunidade, começaram a participar dos ritos de busca da visão e dança do sol, realizados anualmente na sede do Fogo da Verdade, localizada nas serras catarinenses, e também em atividades conduzidas na comunidade daimista de Florianópolis (ROSE e LANGDON, 2010, p. 97).

No processo de trocas e metáforas, observa-se que houve uma interferência de discurso entre as culturas nativas de diferentes regiões das Américas a partir da materialidade das práticas rituais. E, nesse caminho, encontra-se uma interferência nos discursos produzidos pelas ritualidades e suas interrelações míticas na cerimônia da Temazcal. Pode-se salientar que o fato da Opy ser um espaço de ritualidade, e a Temazcal também servir para tal finalidade, houve uma associação entre esses espaços, assim como apontado por Milton Santos, no processo de produção de Sentido. Assim, a intencionalidade se intercruza e promove novidades nos discursos.

Importante notar que a materialidade da construção dialoga com o padrão tradicional Guarani, pois enquanto que o espaço da Temazcal é, como se diz, coberto com peles de animais, no caso Guarani é feita de taipa, um tipo de construção vernacular produzida de barro batido sobre armação de bambu, idêntica à produção da Opy tradicional.

Constata-se que, a partir do conceito de Sentido, destaca-se a materialidade dos sentidos presentes na metáfora ritual e mítica das culturas dos povos tradicionais das Américas. No caso especial da apropriação do rito da Temazcal, possibilitou-se perceber como os Guarani formaram uma rede de discurso que abarca a ritualidade nortenha e para tanto adotaram uma nova designação para a Temazcal, que passou a se chamar Opydjere, que literalmente seria ―casa de reza redonda, ou circular.‖

FIGURA 9: Opydjere (―casa de reza redonda, ou circular‖) 73 73 Fonte: https://www.facebook.com/383593725098602/photos/a.383594345098540.1073741825.383593725098602/3835 94365098538/?type=3&theater

Muito poderia ser dito sobre a fenomenologia do circular, do redondo (Bachelard, 1993), mas aqui perceber-se, juntamente com Milton Santos, que a produção das coisas parte desta capacidade humana de intencionar o mundo circundante e imprimir Sentidos às suas experiências espaciais. Verifica-se que a Opydjere é uma associação da casa de reza tradicional, porém, por sua peculiaridade, passa a ser chamada de casa de reza redonda, ou seja, por causa de seu formato circular. Nesse ponto, infere-se como o Sentido de rezar num espaço específico é associado ao formato material do iglu, criando assim uma nova acepção linguística e social do sentido material de estar num espaço para rezar, cuja forma é redonda e circular.

Assim, o Sentido é revestido de sua materialidade, e como um no outro, não se pode diferenciar o que é sentido, o que é reflexão, intencionalidade, espaço e produção material, pois não há dualidade nesse processo de interferência dos discursos. Poderia ser ampliado este sentido, se além de ―casa de reza circular‖ fosse inserido o adjetivo quente: ―casa de reza circular quente‖, ―Opydjere Aku‖, seria uma acepção que traria bem a ideia da materialidade do sentido. Mas é nítido como a natureza do espaço produz novos aspectos, que só são possíveis observando a formação das metáforas, entendendo o processo da interpretação metafórica, que compreende o discurso interpretativo e hermenêutico.

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