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(1)1. UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO. WILLIAM BEZERRA FIGUEIREDO. TEIA METAFÓRICA: A POÉTICA DA NARRAÇÃO E O ETHOS XAMÂNICO NO MEIO URBANO. São Bernardo do Campo 2018.

(2) 2. WILLIAM BEZERRA FIGUEIREDO. TEIA METAFÓRICA: A POÉTICA DA NARRAÇÃO E O ETHOS XAMÂNICO NO MEIO URBANO. Tese apresentada em cumprimento às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, para obtenção do grau de Doutor. Orientador: Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg. São Bernardo do Campo 2018.

(3) 3. FICHA CATALOGRÁFICA. F469t. Figueiredo, William Bezerra Teia metafórica: a poética da narração e o ethos xamânico no meio urbano / William Bezerra Figueiredo. São Bernardo do Campo, 2018. 267 fl. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo - Escola de Comunicação, Educação e Humanidades Programa de PósGraduação em Ciências da Religião São Bernardo do Campo. Bibliografia Orientação de: Rui de Souza Josgrilberg 1.. Religião – Fenomenologia 2. Hermenêutica filosófica 3. Xamanismo 4. Ricouer, Paul – Critica e interpretação I. Título CDD 121.686.

(4) 4. A tese de doutorado intitulada: ―TEIA METAFÓRICA: A POÉTICA DA NARRAÇÃO E O ETHOS XAMÂNICO NO MEIO URBANO‖, elaborada por William Bezerra Figueiredo, foi apresentada e aprovada em 13 de Março de 2018, perante banca examinadora composta por Prof. Dr. José Ademar Kaefer (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Helmut Renders (UMESP), Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth (UMESP), prof. Dr. Etienne Alfred Higuet (UEPA) e Prof. Dr. Manoel Ribeiro Moraes (UEPA).. __________________________________________ Profº. Dr. José Ademar Kaefer Presidente da Banca Examinadora. ________________________________________ Profº. Dr. Helmut Renders Coordenador do Programa de Pós-Graduação. Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião Área de Concentração: Linguagens da Religião Linha de Pesquisa: Teologias das Religiões e Cultura.

(5) 5. Dedico este trabalho ao meu Pai (em memória).

(6) 6. AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, Rui de Souza Josgrilberg, por ter me iniciado à fenomenologia, por sua competência e confiança, as quais me possibilitaram a conclusão deste trabalho, Gratidão. Às minhas amigas e aos colegas de curso. Aos Professores da Pós-Graduação em Ciências da Religião. Aos mestres que me iniciaram no caminho do Xamanismo: Ramiro Ponce, Wyanã Uia Thé, Maestro Fermin, Junior Patta, Leo Artese, Sthan Xannia, Luiz Canê Mingue Guaiana, Aos Guarani, os Fulni-ô, Maestra Ivonne D'albora (Em memória) . Ao meu grande amigo Vitor Chaves, por sua contribuição nas leituras e traduções de Ricoeur. E à Rita de Cassia S. Luckner pela revisão exemplar. Ao querido Tommy Akira Goto por contribuir com a pesquisa, assim como ao Tarik Ganizev Jimenez e o Marcelo Marques. Ao amigo Gustavo Alvarenga Oliveira Santos pelo incentivo às leituras decoloniais. Por fim, ao meu irmão Vagner Bezerra Figueiredo e minha Mãe. E agradeço também a minha esposa Maria e nossos filhos Isis e Kauã..

(7) 7. Carta 6 de arcos: jornadas inesperadas. 1. “La temporalité ne se laisse pas dire dans le discours direct d'une phénoménologie, mais requiert la médiation du discurs indirect de la narration2” (Paul Ricoeur).. 1. Shaman Tarot da Editora Lo Scarabeo – carta 6 de arcos : jornadas inesperadas. Fonte: <http://shop.loscarabeo.com/index.php?id_product=108&controller=product&id_lang=3> 2. ―A temporalidade não se permite dizer em um discurso fenomenológico direto, requer a mediação do discurso indireto da narrativa‖..

(8) 8. Figueiredo, William Bezerra. Teia metafórica: a poética da narração e o ethos xamânico no meio urbano / William Bezerra Figueiredo. São Bernardo do Campo, 2018. 267 fl. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo - Escola de Comunicação, Educação e Humanidades Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião São Bernardo do Campo, 2018.. RESUMO. Os grupos de Neoxamanismo urbano se multiplicam a cada dia. Nossa tese é que esses grupos produzem sua própria narrativa, desde o universo do xamanismo indígena até religiões diversas, por meio de hibridismo discursivo produzido em visões místicas religiosas e arranjos sócio-culturais. A partir da experiência de constituição de modos narrativos, esses grupos criam um conjunto híbrido de manifestações, num ato poiético (produtivo e criativo), o que determina por sua vez o Neoxamanismo urbano como um novo movimento religioso. Essas narrativas visionárias de grande intensidade e mobilização do ser, estruturalmente, transfiguram a realidade imediata e possibilitam uma alternativa ao pensamento cotidiano por meio do processo de redescrição da vida, explicitanto as condições de possibilidade do fenômeno religioso em si. Esta pesquisa contribui para a compreesão de como a identidade narrativa garante a aquisição de espaços de constituição da vontade numa relação criativa com as narrativas mencionadas. A partir dos estudos de Paul Ricoeur, verifica-se que para a superação da finitude em busca do homem capaz, o ser humano recria os modos de ser. Em virtude de uma ―cura pessoal‖, se encontra o redimensionamento do mundo em outros mundos através de uma teia metafórica facilitada pelas narrativas curativas. Este estudo utiliza-se da fenomenologia hermenêutica, leituras antropológicas, psicologia etc., na medida em que tais narrativas determinam eixos essenciais para as percepções dos fenômenos que formam a nova realidade, e determinam a aquisição de práticas comunitárias. Existem possíveis que são alcançados por intermédio dessas transfigurações diversas, nesse contexto, provoca-se uma mudança de paradigma, tanto epistemológico como ético, a partir do contraste e vivência com o pensamento nativo. Palavras-chave: Fenomenologia Hermenêutica; Paul Ricoeur; Narratividade Visionária; Poética da Vontade; Neoxamanismo urbano..

(9) 9. Figueiredo, William Bezerra. Metaphorical web: the poetics of narration and the shamanic ethos in the urban environment/ William Bezerra Figueiredo. São Bernardo do Campo, 2018. 267 fl. Thesis (Doctorate in Religion Sciences) - Methodist University of São Paulo - School of Communication, Education and Humanities Postgraduate Program in Religion Sciences São Bernardo do Campo, 2018.. ABSTRACT The Neoshamanism groups are multiplying each day. Our thesis is that these groups produce their narratives, since the Shamanism universe until to the different religions, through the discursive hybridism produced in religious mystic visions and socio-cultural arrangements. From the experience of constitution of narrative modes, these groups criate a hybrid set of manifestations, in a poietic act (produtive and criative), what stablishes the Urban Neoshamanism as a new religious moviment. These visionary narratives of high intensity and mobilization of being, structurally, transfigure the immediate reality and alow an alternative to the daily thinking through the redescription process of life, explaining conditions of possibility of the religious phenomenon itself. This research contributes to the comprehetion of de way the narrative identity ensures acquisitions of the spaces of constitution of will in a criative relation with the mentioned narratives. From the Paul Ricouer‘s studies, it is verified to achieve the overcoming of the finitude in search of the capable man, the human being recreates the ways of being. As a result of a ―personal cure‖, it finds the resizing of world to others worlds through of a web metaphors facilitated by the healing narratives. This study uses the hermeneutic fenomenology, antropologic readings, psychology etc., in sofar as those narratives stablish essential points to the perceptions of the phenomena that form the new reality, and determine the acquisition of community practices. There are possibles tha are achieve from this diferent transfigurations, in this context it causes a change of paradigma, both epistemologic as such ethical, from the contrasct and experience with the native thinking. Key words: Hermeneutic Phenomenology; Paul Ricoeur; Visionary Narrative; Poetic of will; Urban Neoshamanism..

(10) 10. Figueiredo, William Bezerra. Réseau métaphorique: la poétique de la narration et l'ethos chamanique en milieu urbain / William Bezerra Figueiredo. São Bernardo do Campo, 2018. 267 fl. Thèse (Doctorat en sciences des religions) - Université méthodiste de São Paulo École de communication, d'éducation et de sciences humaines Programme de troisième cycle en sciences des religions São Bernardo do Campo, 2018.. RÉSUMÉ. Les groupes de Neochamanisme urbain se multiplient chaque jour. Notre thèse est que ces groupes produisent leur propre narrative, de l'univers du chamanisme indigène aux religions diverses, en passant par l'hybride discursif produit dans des visions mystiques religieuses et des arrangements socioculturels. De l'expérience de la constitution des modes narratifs, ces groupes créent un ensemble hybride de manifestations, dans un acte poétique (productif et créatif), qui à son tour, détermine le Neochamanisme urbain comme un nouveau mouvement religieux. Ces narratives visionnaires de grande intensité et de mobilisation de l'être, transfigurent structurellement la réalité immédiate et permettent une alternative à la pensée quotidienne à travers le processus de redescription de la vie, explicitant les conditions de possibilité du phénomène religieux en soi. Cette recherche contribue à la compréhension de la façon dont l'identité narrative garantit l'acquisition d'espaces de constitution de la volonté dans une relation créative avec les récits mentionnés. Des études de Paul Ricœur, on vérifie que pour le dépassement de la finitude à la recherche de l'homme capable, l'être humain recrée les manières d'être. En vertu d'un "remède personnel" se trouve le redimensionnement du monde dans d'autres mondes à travers un réseau métaphorique facilité par les narrative. Cette étude utilise la phénoménologie herméneutique, les lectures anthropologiques, la psychologie, etc., dans la mesure où ces narratives déterminent des axes essentiels pour la perception des phénomènes qui forment la nouvelle réalité et déterminent l'acquisition des pratiques communautaires. Il y a des possibles qui sont atteints à travers ces diverses transfigurations, dans ce contexte, un changement de paradigme, à la fois épistémologique et éthique, est provoqué par le contraste et l'expérience avec la pensée indigène.. Mots-clés: Phénoménologie Herméneutique; Paul Riceour; Narrativité et métaphore; Poétique de la volonté; Néochamanisme urbain..

(11) 11. LISTA DE FIGURAS FIGURA 1: Jehua Supai – Espiritus Sublimes .......................................................... 35 FIGURA 2: Em conexão com os curadores no tempo e espaço................................ 42 FIGURA 3: Feiticeiro Dançador ................................................................................. 69 FIGURA 4: Homem Leão ............................................................................................. 70 FIGURA 5: Neoxamanismo urbano: desaceleração do tempo ............................... 123 FIGURA 6: Avaliação Energética Xamânica .......................................................... 154 FIGURA 7: Jornada de Cura Nativa VIII ............................................................... 155 FIGURA 8: Cerimônia Indígena Guarani ............................................................... 175 FIGURA 9: Opydjere (casa de rezar redonda, ou circular) .................................... 177 FIGURA 10: Animal de poder .................................................................................. 181 FIGURA 11: Cartas Xamânicas ................................................................................ 181 FIGURA 12: América Invertida ............................................................................... 241.

(12) 12. Sumário INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 15 1 CAPÍTULO 1: APORIAS DA TEMPORALIDADE NAS NARRATIVAS VISIONÁRIAS ............................................................................................................. 35 1.1 Introdução ............................................................................................................... 35 1.2 Tempo do ponto de vista fenomenológico ............................................................ 39 1.3 A temporalidade xamânica e as narrativas visionárias ...................................... 41 1.3.1 Normal, patológico ou visionário? ..................................................................... 45 1.3.2 Categorias visionárias e cultura material .......................................................... 47 1.3.3 Narratividade das visões xamânicas .................................................................. 50 1.4 Visão narrativa e narrativa visionária como etapas narrativas da jornada xamânica ........................................................................................................................................ 53 1.5 Fenomenologia da origem da visão extática ......................................................... 61 2 CAPÍTULO 2: MYTHOS XAMÂNICOS, TIPOLOGIAS, TÉCNICAS E AS NARRATIVAS ORIGINÁRIAS NA HERMENEUTICA ELIADIANA ................ 64 2.1 O Xamanismo Stricto Sensu ................................................................................... 66 2.1.1 Religião e Xamanismo ......................................................................................... 69 2.1.2 Xamanismo e Psicopatologia .............................................................................. 72 2.1.3 Doente escolhido: do profano ao sagrado .......................................................... 74 2.2 Conceito xamânico de doença................................................................................ 76 2.2.1 O resgate da alma ................................................................................................ 78 2.2.2 Sonhos e Visões .................................................................................................... 81 2.2.3 Treinamento tradicional ..................................................................................... 84 2.3 Espíritos auxiliares – Animais de poder ............................................................... 89 2.4 Cerimônia iniciática ............................................................................................... 91 2.5 A subida pelo arco-íris – subida aos céus e descida aos infernos ....................... 92 2.6 Os usos das endumentárias xamânicas ................................................................. 95.

(13) 13. 2.6.1 A roupa como hierofania .................................................................................... 95 2.6.2 O esqueleto ........................................................................................................... 97 2.6.3 O uso das máscaras e pinturas ........................................................................... 99 2.6.4 O palhaço ............................................................................................................ 101 2.6.5 Tambores e maracás .......................................................................................... 103 3 CAPÍTULO 3: MIMESIS – CONFIGURAÇÕES URBANAS DO NEOXAMANISMO URBANO ..................................................................................................................... 107 3.1 As novas religiões na atualidade ......................................................................... 109 3.2 Xamanismo, Xamanismos e Neoxamanismo urbano ........................................ 112 3.2.1 Alguns antecedentes .......................................................................................... 115 3.2.2 A multiplicidade do discurso no meio urbano ................................................ 117 3.2.3 Tempos modernos & Neoxamanismo urbano ................................................. 123 3.3 O Neoxamanismo urbano como religiosidade autônoma ................................. 125 3.3.1 O Neoxamanismo: Um estudo no campo religioso ......................................... 127 3.3.2 Neoxamanismo e suas categorias ..................................................................... 130 3.3.3 Autorreferência e formação .............................................................................. 133 3.4 Discurso neoxamânico e literatura ...................................................................... 137 3.4.1 Recepção e discurso histórico ........................................................................... 141 4 CAPÍTULO 4: MYTHOS NEOXAMÂNICOS E MIMESIS: intersecções críticas do Xamanismo indígena no discurso do Neoxamanismo urbano ................................ 149 4.1 Discurso e campo semântico do Neoxamânico urbano ..................................... 149 4.1.1 Discurso alternativo........................................................................................... 151 4.2 Narratividade e memória ..................................................................................... 156 4.2.1 As políticas de memória .................................................................................... 162 4.3 Mundo urbano e mundo xamânico – Intersecções de sentido .......................... 169 4.3.1 Sentido e a tarefa da interpretação metafórica ............................................. 169 4.3.2 A Temazcal Guarani e a metáfora material e linguística: um caso de Neoxamanismo urbano e indígena ............................................................................ 172.

(14) 14. 4.4 Teia metafórica: traduções discursivas e leituras urbanas do mythos............. 178 4.4.1 Mente indígena e concurso xamânico ............................................................. 184 4.4.2 Pensamento índio e memória crítica ............................................................... 185 4.4.3 Horizontes de sentido indígena ........................................................................ 191 4.4.4 Concurso xamânico .......................................................................................... 196 5 CAPÍTULO 5: NARRATIVA COMO CATHARSIS, ETHOS E PHRONESIS NO NEOXAMANISMO URBANO ................................................................................. 200 5.1 A poética xamânica ............................................................................................... 203 5.2 Narrativas curativas existenciais......................................................................... 207 5.3 Ser-alguém e mero-estar: considerações acerca do ethos ................................. 210 5.3.1 A falha ontológica e memória crítica .............................................................. 214 5.3.2 Percurso da memória e do homem capaz ........................................................ 216 5.3.3 Reversão: o pensamento ameríndio ................................................................. 221 5.3.4 Mixotrofia e Fagocitação................................................................................... 227 5.4 A Phronesis e a fundamentação de um epistimologia decolonial .................... 230 5.4.1 O paradigma decolonial ................................................................................... 234 5.4.2 Bem viver, Teko Porã e Sumak Kawsay ........................................................... 237 5.4.3 Abya Yala e a hermenêutica pluritópica ......................................................... 240 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 247 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 255 ANEXO: Lista de nomes dos participantes do Xamasconet 2015-2017 e seus respectivos temas ............................................................................................................................ 265.

(15) 15. INTRODUÇÃO O Neoxamanismo urbano, apesar de representar um fenômeno bastante sedimentado no âmbito urbano, trata-se de um tema pouco investigado, principalmente acerca dos estudos dos fenômenos religiosos contemporâneos urbanos não cristãos e para a discussão da relação entre religiões indígenas originárias e religiões contemporâneas. A hipótese deste trabalho trata do como se constrói esse discurso neoxamânico pelo próprio sujeito através das narrativas visionárias. Para tanto buscamos uma metodologia de como se interpreta uma narrativa neoxamânica. Defende-se a ideia que a metáfora continuada pode ser aplicada para identificar nuanças de uma manifestação, descrever o processo da sua formação e identificar sua originalidade. Narrativa e sujeito se articulam neste estudo; a memória e a sedimentação da história pessoal estruturam tomadas de decisão. A temporalidade, como um dos campos de atuação dessas essências, não é um fluir sem contornos, a narrativa dá esse contorno, nesse contexto a narratividade é o centro do debate, em suas diversas modalidades, como Identidade Narrativa e Metáfora, são elementos constituintes de sentido no Neoxamanismo urbano, a Ipseidade, e a ulterior narrativa como Éthos. O papel criativo do participante como filtro, tradutor ou mediador entre as tradições herdadas, as visões recebidas e as realidades encontradas, retroalimentam a constituição da manifestação religiosa. A narrativa fundamenta o elo entre sujeito e fenômeno religioso, e, portanto, dedica-se o primeiro capítulo desta tese para discutir o entendimento da relação ontológica entre narrativa e temporalidade. O ponto forte desse processo é a busca e compreensividade dos modos narrativos que permeiam todo o texto como diversidade de olhares e epistemologias. Para tanto, emprega-se a tipologia dos modos narrativos, buscando ampliar, no último momento, o discurso através de metodologias decoloniais e pensamento indígena. Por uma questão de método, ao avançar nas pesquisas realizadas por Ricoeur, e seus continuadores, neste caso, Richard Kearney, foram adotadas tipologias próprias do léxico desses autores, mantendo-se um diálogo. Kearney faz um estudo sobre os modos narrativos aristotélicos (KEARNEY, 2012), e sua progressão é de fato muito conclusiva para aplicar ao que foi observado no fenômeno do Neoxamanismo urbano. Há obviamente leituras possíveis que, acredita-se, levariam a outras leituras hermeneuticas, porém pelo referencial teórico que embasa esta pesquisa, o modelo compreensivo se mostrou muito produtivo e possível de ser aplicado em outros fenômenos,.

(16) 16. abrindo campo para estudos futuros de análise narrativa de fenômenos religiosos, a partir da metodologia ricoeuriana. Observa-se que os mythos antigos se formavam a partir de situações similares ao que descrevemos nestes capítulos, todo processo de intersecção de discursos sempre ocorreu ao longo da história, assim como no Neoxamanismo urbano, os mitos antigos também bebiam em práticas anteriores, e assim por diante. Abordamos neste caso o Xamanismo clássico não como um fenômeno que existiu no passado e que hoje é inspiração aos novos movimentos, pelo contrário, o Xamanismo indígena é vivo, em centenas de comunidades e ainda é fruto de estudos, constantemente, e chegando a novas conclusões. O modelo de Xamanismo, que se adota aqui, é o do Xamanismo como discurso e não a prática étnica em si. O modelo apresentado por Mircea Eliade é estruturado a partir da metodologia fenomenológica e hermenêutica, o que favoreceu uma aproximação teórica e a empregabilidade conceitual. Nesse sentido, buscou-se tanto a leitura de mundo Eliadiana, e suas tipologias morfológicas, como também as leituras posteriores de autores como Michael Harner, que relê o autor e introduz novos discursos em uma literatura Neoxamânica. Outro ponto relevante de ser levantado é que Xamanismo urbano sempre houve, nas diversas cidades nas Américas, principalmente na América Latina (URQUIDI, 2008), nas comunidades de língua quéchua e aimará, no Peru, Bolívia, Equador etc. A função do xamã urbano é bem comum nessas comunidades, em que a população indígena é proporcionalmente grande, muito diferente de quando se identifica uma prática de Neoxamanismo urbano em países fora do continente, por exemplo, conduzido por um não índio. ―Em alguns países como a Guatemala, a Bolívia, o Peru e o Equador, a população indígena equivale, e pode até superar, à dos indivíduos não indígenas. Em outros, a superfície habitada por comunidades indígenas é considerada proporcionalmente superior à ocupada pelo resto da sociedade‖ (URQUIDI et al., 2008, p. 200). Poderia-se conjecturar como seria a prática no império Inca e suas relações com outras religiões no continente, e o contato com as diversas comunidades que compunham o império, ou os Astecas e Maias em suas cidades, mas seriam apenas conjecturas. A riqueza do método se encontra no aplicar o conceito de configuração da Mimesis narrativa em diversos casos e, por isso, ópta-se pelo modelo, utilizando termos no formato clássico, como Mythos, Mimesis, Catharsys, Phronesis e Éthos. O Neoxamanismo urbano, com sua riqueza de configurações urbanas, de saberes indígenas entre não índios, realiza rearranjos e redescrições com os métodos do xamanismo indígena empregado pelos não índios. Os resultados desta interação são revelados pela aplicação metodológica da análise da.

(17) 17. narratividade, do emprego da metáfora continuada, e os desdobramentos destas perspectivas teóricas. Algumas questões suscitam-se desta leitura: ―Qual Xamanismo urbano? De qual país? Localidade?‖ Procura-se ao longo do texto mostrar a teoria de uma definição do Neoxamanismo Urbano. Pode-se empregar uma primeira definição, encontrada na Encyclopedia of Latin American Religions3: O neoxamanismo é um conjunto de discursos e práticas que envolvem a integração de técnicas xamãs e psicoterapêuticas indígenas (especialmente americanas) por pessoas de contextos urbanos e ocidentais. Ele surgiu, como outros modos de espiritualidade da Nova Era, em oposição ao materialismo e ao positivismo da modernidade europeia e apresenta como central a ideia de reconectar o conhecimento ancestral pan-indígena que as pessoas do Ocidente haviam esquecido. Isso resulta em grande medida pela circulação da literatura sobre o Xamanismo, estados de consciência alterados (muitas vezes, mas nem sempre, envolvendo o uso de drogas psicoativas) e a possibilidade de gerar novas modalidades psicoterapêuticas (SCURO, 2014, p.1).. Esta e outras definições de Neoxamanismo ou Xamanismo Urbano é utilizado por alguns autores (HARNER 1980, JANE ATKINSON 1992, SERGE KING 2010, LANGDON 1996 e 2014, MAGNANI 1999 e 2005, JUAN SCURO 2014 e 2016), e ao longo da pesquisa indicam-se definições de Neoxamanismo indígena, entre o Guarani, por exemplo. Acredita-se que cada uma dessas definições pode ajudar a estudar o fenômeno por um determinado ponto de vista. E propõe uma definição em contrapartida, de acordo com as observações realizadas. O emprego do Neoxamanismo em estudos antropológicos para designar uma forma de sincretismo ou hibridismo na cultura indígena pode gerar confusão ao leitor, que buscar mais informações sobre a abordagem aqui apresentada, no que se refere à prática do não índio. Por outro lado o uso de Xamanismo Urbano também pode causar certa desorientação, visto que existem grupos indígenas tradicionais vivendo nas metrópoles pelo país, e todos praticam seu Xamanismo, no meio urbano. Então, como definir o objeto desta pesquisa? Para tanto, propõe-se a junção de ambos os termos, para designar o Neoxamanismo que ocorre no meio urbano. Podería-se dizer Neoxamanismo do ―homem ocidental‖, afinal o Neoxamanismo urbano, é em sua totalidade uma prática do não índio. Exatamente esta relação entre índio e não índio que determina a intriga da narrativa, a trama nas relações de visão de mundo, e. 3. SCURO, Juan; RODD, Robin. Neo-Shamanism. Encyclopedia of Latin American Religions, p. 1-6, 2014..

(18) 18. como são articuladas. Elegeu-se, portanto, pelo termo urbano, para designar não índio. O que não quer dizer uma antinomia com o meio rural, mas uma tentativa de manter um lastro teórico com os termos usados em diversas publicações desde a década de 1980. O termo urbano é aqui requerido como sinônimo de não índio, falante de língua europeia ou anglófono e que não foi criado dentro de comunidades ou reservas indígenas. Define-se, por conseguinte, quem é o sujeito da ação no nosso texto. Além disso, esse sujeito urbano não índio estrutura esta prática ao longo de três décadas aqui no Brasil. Formando uma religiosidade própria, autônoma, que tem expandindo muito nos últimos dez anos, se destacando de outros campos de referência, como a New Age, por exemplo, que lhe foi incubadora. Nesse sentido é um Neoxamanismo, utilizando o prefixo neo para designar um novo movimento religioso. Pelo acréscimo do prefixo ―neo‖, pretendeu-se expressar algumas ênfases que os grupos identificados como Neoxamanismo Urbano, em geral, fazem uso: abandono da relação com a hierarquia e iniciação tradicional indígena, valorização dos saberes da cultura ocidental, utilização de gestão liberal, terapêutica, e comercial; ênfase na saúde e bem-estar e também discurso de prosperidade material; utilização da rede social para o trabalho de divulgação, propaganda religiosa e tratamento virtual à distância (aos modos das cyber churches) e centralidade na promoção de narrativas visionárias em temáticas indígenas, sobretudo hibridismo com as religiões afro-brasileiras, hinduísta e o Espiritismo. Promovendo uma desterritorialização dos temas e técnicas do xamanismo indígena para o campo discursivo e na vida cotidiana das cidades. Diz-se, portanto, que o Neoxamanismo urbano é uma prática religiosa, híbrida, polimórfica, polissêmica, que se inspira e apropria dos modos de ser indígena, ou de religiosidades ancestrais, de suas técnicas de expansão de consciência para aquisição de narrativas visionárias que visam o empoderamento simbólico do sujeito não índio. Quando se trata da formação desse movimento, utiliza-se o termo hibridismo para designar a reciprocidade semântica e criativa de constituição de discursos geograficamente sedimentados nas metrópoles, e por se tratar de bricolagens transculturais. O modo de constituição do discurso neoxamânico obedece às normativas do que foi designado nos estudos culturais como discursos de fronteira e de identidade. O sujeito que busca estes nichos urbanos para praticar o Neoxamanismo urbano está constituindo uma identidade narrativa híbrida, e pluritópica, o que será abordado nos capítulos seguintes. Segundo Rogério Haesbaert:.

(19) 19. Quando falamos de um processo de ―hibridismo cultural‖ como marca maior da globalização contemporânea ou então, ao contrário, de essencialização identitária por parte de grupos fundamentalistas, temos que tomar muito cuidado. É preciso historicizar/geografizar melhor nossa concepção de hibridismo – ou de hibridização, para valorizá-lo mais enquanto processo – e reconhecer, sobretudo, os diferentes sujeitos que o produzem e os contextos geopolíticos em que ele se realiza e em que circula o seu debate, um pouco como nas ―geometrias de poder‖ propostas por Massey (1994) para complexificar as relações em que se produz a ―compressão espaço-tempo‖ e as acessibilidades/velocidades do nosso tempo (HASBAERT, 2012, p. 30).. Tratamos, aqui, por sua vez, do híbrido como discurso e campo semântico, e menos como utilizado nas teorias culturais como mestiçagem, migração, sincretismo etc. Pois identificamos o fenômeno religioso, neste caso, como uma construção de identidade narrativa, não coletiva no primeiro momento, em que tais hibridizações se formam nos sujeitos e depois encontram formas de prática comunitária. Hibridismos culturais tem relação forte com a territorialidade, e com os indivíduos que carregam a cultura para outra localidade e tendem a amalgamar-se com os símbolos e modos culturais locais, buscando introduzir suas práticas de origem com o mínimo de perdas possível, o território e a identidade tem uma relação intrínseca. Tem-se, consequentemente, uma sobreposição de entendimentos conceituais, e usos do termo, os hibridismos ocorrem aqui como uma intersecção de discursos, mas, não se abdica de identificar o Neoxamanismo urbano como um movimento maior e culturalmente provedor de sentido, inclusive, quando se trata do caso de intersecções de discurso com a comunidade Guarani, ou outras etnias, em que o contato com o Neoxamanismo urbano promove sincretismos inovadores e desterritorialidades desde o meio urbano às reservas indígenas. Quando citado, o Neoxamanismo urbano é intermezzo, e com isso oferece uma porta de entrada para o mundo indígena, os indígenas também vêm abrindo a entrada à aldeia, e o não índio está buscando cada vez mais o contato com estas comunidades, como comenta um pajé (COUTINHO, 2016) Huni Kuin durante uma cerimônia: Estamos reunidos aqui para pedir permissão para entrar no mundo da boa branca, sempre respeitando seus caminhos e escolhas, pedindo permissão do povo Huni Kuin para o "povo da cidade grande‖ para aprender um pouco dessa sabedoria, que é boa sabedoria. (Fabiano Kaxinawá) (COUTINHO, 2016, p. 165).. O mesmo se pode dizer do caminho inverso, os termos de uso indígena se tornam jargões no meio não índio, como é o caso do termo Haux, que é ao mesmo tempo um cumprimento, mas também uma palavra sagrada, utilizada pelos pajés para invocar as forças.

(20) 20. positivas dos Yuxibu, seres encantados da floresta4. Essa interação entre o índio e o não índio gera hibridismos discursivos, intersecções de sentido. Segundo Coutinho:. As palavras são faladas em português, misturadas com a língua Hatxã Kuin. Durante o período de trabalho de campo, o termo ―haux‖ foi frequentemente usado pelo xamã como uma saudação empregada no final das frases. Depois que alguém falou, seja o xamã, sua esposa ou qualquer outra pessoa durante os ritos, conversas e oficinas, todos os participantes são induzidos a repetir a palavra três vezes: ―Haux, haux, haux‖ (COUTINHO, 2016, p. 176)5.. Na atualidade, essa interação promove muitos processos de tradução e leituras hermenêuticas, desde o mundo indígena ao sujeito urbano não índio. Acredita-se que na relação intercultural busca-se favorecer o entendimento de pessoas com culturas diferentes, em que a escuta e o enriquecimento dos diversos espaços de relação são facilitados e promovidos visando ao fortalecimento da identidade própria, do autocuidado, da autoestima, da valoração da diversidade e das diferenças, além de proporcionar o desenvolvimento de uma consciência de interdependência para o benefício e desenvolvimento comum. O Neoxamanismo urbano é hoje um fato de grande impacto nas grandes metrópoles da América Latina, e também na América central e do Norte. É um movimento religioso e espiritualista. A cultura cresce e se pluraliza, se multiplica sempre de forma híbrida. Como podem ser observados nos casos de interação inter-religiosa, os grupos sempre encontram meios de apropriação dos bens culturais, a exemplo dos ―bolinhos de Jesus‖ na Bahia, em que evangélicos passam a produzir o acarajé dentro de um modo simbólico mediado pela comunidade cristã (SANTOS, 2013). A cultura molda os termos, e se apropria deles. O mesmo ocorre com o uso do termo Xamanismo, muito usado nos dias de hoje. Até bem pouco tempo atrás se usava o termo Xamanismo de forma pejorativa (como totemismo e cultura primitiva), porém, com o avanço do Movimento de Contra Cultura (décadas de 1960 e 1970) e o avanço do Movimento New Age, tem-se aberto o 4. Segundo Erika Mesquita,: ―Haux significa a força vital, força da vida que o pajé passa a outrem e ao espírito da natureza, ao vento, feita através da fala da palavra e de assopros ao vento, captando e enviando força do espírito ao ambiente. Força da palavra e do ar em forma de assopro, segundo o pajé, é a força captada do yuxin e que ele ajuda a propalar. Haux vem sendo comumente usado por outras etnias – cuja língua está ―quase morta‖ em sessões de ayahuasca para chamar a força da floresta. Muitos indígenas a utilizam sem saber ao certo seu significado, apenas por imitação proveniente da língua e cultura Huni Kuin.‖ (MESQUITA, 2012, p. 391, nota de rodapé). In: MESQUITA, Erika et al. Ver de perto pra contar de certo. As mudanças climáticas sob os olhares dos moradores da floresta do Alto do Juruá. Campinas, S.P., 2012. 5. O uso da palavra Haux vem sendo muito popularizada pela vinda dos Huni Kuin aos grupos de Neoxamanismo Urbano, e aos poucos se tornou um jargão muito difundido entre os não índios. É utilizada principalmente em grupos que fazem uso de medicinas da floresta, como rapé indígena e ayahuasca, a partir da visão Hui Kuin..

(21) 21. interesse por práticas autóctones e o termo ―caiu‖ em uso popular saindo do mundo acadêmico. Com o avanço da chamada ―antropologia interpretativa‖ muitos pesquisadores e estudiosos das práticas indígenas se colocaram a viver com estes os povos nativos, e alguns aprenderam suas práticas espirituais, tais como os conhecidos autores: CASTAÑEDA e HARNER. Criaram escolas de pensamento, cada uma a sua maneira, e popularizaram as práticas de transe induzido, como mecanismo de tratamento de saúde na cultura ocidental, principalmente através da produção de uma literatura neoxamânica. Tem-se, no entanto, que toda tentativa de tradução é lida com algum grau de perda de significado. Existem modos de ser próprios dos nativos, que não podem ser traduzidos mesmo que com a máxima similaridade. Tal perda torna-se considerável perto do que seja a espiritualidade nativa e seu modo de ser no mundo muitas vezes é irreversível. Outro dado é que certos movimentos religiosos sempre têm uma relação com os meios de produção vigente, nesse caso o capitalismo. Tudo depende de dinheiro para que possam realizar algo, esse é o sistema que temos hoje. Assim como o não índio, o indígena também precisa do comércio. Venda de artesanato e a prestação de serviços ritualísticos, que na maior parte das religiões são pagos, como por exemplo, as vendas de ex-votos nas igrejas católicas, ou os serviços de ordem espiritual nos terreiros de candomblé, salário de sacerdotes cristãos etc. É claro que isso não inviabiliza as trocas simbólicas, a reciprocidade e a mutualidade, em muitos casos o valor financeiro não supera as relações qualitativas dos encontros. Obviamente que todo tipo de relação comercial, simbólica ou não, que se estabelece, como o consumo em nossa sociedade, se estrutura como produto. Os bens de consumo sempre obedecem alguma norma de consumo, sempre há algum modo de consumo e produção de bens materiais simbólicos. O Neoxamanismo urbano não está isento de todo esse contexto. A partir desse processo, percebe-se a distância do Neoxamanismo urbano dos Xamanismos praticados nas comunidades originárias, sendo que entre eles, os modos de produção são bem diferentes. Isso é muito complexo, pois como foi dito, existe uma rede de trocas simbólicas em que os próprios nativos, bem ou mal, estão envolvidos, e que os incentivam. Os núcleos, rodas e grupos de Neoxamanismo urbano encontram-se permeados de hibridismos, construindo sua identidade como uma prática religiosa que está para os Xamanismos indígenas como a Igreja Universal do Reino de Deus está para o Protestantismo europeu de séculos atrás. São, portanto, novos movimentos religiosos, e não um braço dos Xamanismos indígenas, ainda que continue usando o vocativo ―xamanismo‖ em seu nome, e que mantenha certa rede de leitura simbólica com os povos autóctones..

(22) 22. Acredita-se, portanto, que possa haver uma autonomia, e que os velhos preconceitos sobre isso ser ―coisa de índio‖ sejam superados. Primeiramente pelo fato de que ―coisa de índio‖ já é uma preconcepção errada, há que se estudar cada cultura e etnia em seu modo de ser e não esperar que uma releitura urbana atual, com todas as intersecções de discurso, seja uma reprodução ipsis litteris do modo de ser indígena. Pois então, esbarra-se em uma questão ética. Em tal caminho, a resolução se dá pela ética, em saber que se está usando o nome de outrem em seu benefício (no sentido de auxílio e proveito). Pois ao fazer o vocativo ao termo xamanismo, esses grupos estão de alguma forma se filiando ao mundo indígena. E diante dessa filiação, mesmo que seja de um ―parente distante‖, o DNA continua por aí. E como seres éticos, dever conta à história desses povos que viveram antes de nós, sua ancestralidade, e que mantêm a ―cultura xamânica‖ viva até os dias atuais, é uma obrigação moral. Neste sentido, observa-se que se aproximar de forma ética dessa cultura é fundamental para que o Neoxamanismo urbano consiga estruturar raízes sólidas, e que os grupos possam trabalhar em equanimidade com a história, entendendo que o homem ocidental ainda costuma deturpar e usurpar as culturas alheias para seu proveito próprio. Os usos e abusos da memória tradicional dos povos originários devem ser bem percebidos e discutidos, assim como exigida a máxima ética junto às fontes de estudo. O que hoje se percebe como fundamento das novas espiritualidades é o modo ético e suas relações com suas origens, do mesmo modo que as matrizes africanas têm com a terra mater, o Neoxamanismo Urbano também, como espiritualidade de matrizes indígenas. Deve-se prestar conta aos povos originários, assim como se reconhecer ter uma dívida histórica com essas comunidades e com a manutenção do seu modo de vida.. **************************************. Foi possível verificar a complexidade do tema, sua multiplicidade e os principais temas abordados nos trabalhos de Neoxamanismo urbano, como uma prática religiosa, híbrida, polimórfica, polissêmica, que se inspira e apropria dos modos de ser indígena, ou de religiosidades ancestrais, de suas técnicas de expansão de consciência para aquisição de narrativas visionárias que visam o empoderamento simbólico do sujeito não índio. Um discurso mixotrófico que busca reviver a ritualidade e filosofia de povos ancestrais. A questão aqui levantada é identificar o processo de teia metafórica, baseada na linguagem do Xamanismo, sendo que tal leitura tem como base uma abordagem filosófica nos.

(23) 23. termos de Paul Ricoeur. A produção poética da vontade, em situações de plenitude da linguagem voluntária propiciada pelo domínio da percepção e seus diversos possíveis alcançados pelo trabalho espiritual, durante o estado xamânico de consciência, a pertinência da narrativa e dos jogos de sentido abertos pela experiência visionária. Assim, emerge-se um campo pouco explorado de pesquisa dentro das Ciências da Religião, e que possibilita a intersecção dos estudos filosóficos da linguagem em Paul Ricoeur, Richard Kearney e Mircea Eliade; na psicologia com Jürgen Kremer; a filosofia Decolonial como referência de Walter Mignolo e Rodolfo Kusch e estudos antropológicos sobre o Xamanismo Urbano e Neoxamanismo em especial: Esther Jean Langdon, Departamento de Antropologia, UFSC; José Guilherme Cantor Magnani, professor titular do Departamento de Antropologia da FFLCH-USP e Jane Monnig Atkinson, Department of Sociology/Anthropology, Lewis and Clark College, Portland, Oregon. A problemática desta pesquisa é justamente procurar um eixo organizacional, uma ratio, dentro de um universo ―não teórico‖ e ―não lógico‖. O desafio é romper o universo gramatical e propor um mundo metafórico como metodologia de pesquisa buscando dentro da escala do fenômeno suas normativas não racionais, e evidenciar os modos narrativos. Para Ricoeur o poeta (como artesão que melhor explora essa ferramenta) designaria as suas metáforas através da (re) construção das imagens. O Xamanismo tem na linguagem um espaço de compreensão, que é um discurso não controlado por conceitos, mas por um processo de ausculta simbólica, pré-reflexiva e endógena. Portanto um trabalho de linguagem sobre a escuta rompe com a rigidez da gramática, o que é possível pela reconstrução de imagens a partir da metáfora. Pode-se dizer, portanto, que o choque entre os campos semânticos, num processo de rearranjo da linguagem produz a teia de metáforas. A partir de então, será construida a proposição sobre a referência metafórica, na qual possuirá como exemplo o jogo de sentido que existe entre a frase e a palavra (RICOEUR, 2000). A hermenêutica, que se deslocará da retórica à semântica e dos problemas de significado para os de sentido do objeto ontológico da enunciação metafórica como algo a ―ser como‖. Em que a metáfora age sobre todo o discurso, e não mais apenas como ferramenta estilística em um dado texto, mas como elemento estrutural do discurso. A relação de (re) construção se estabelece nos jogos de identidade, nas composições narrativas, no processo de comunicação em estados xamânicos de consciência. Através de atos poéticos de tradução das metáforas o xamanista consegue reescrever a realidade discursiva, num horizonte onde o mundo é linguagem, e o campo de referência rompe paradigmas. Seguindo Ricoeur, (RICOEUR, 1989) em Do texto à ação, existe um processo,.

(24) 24. denominado pragma, que é a antecipação pela imaginação, não como uma invasão dos sentidos, mas como um projeto, um uso linguístico, fático da imaginação. Esse uso antecipatório da imaginação existe como uma marca da autonomia do sujeito capaz, que pode dizer, ―eu poderia ter feito isso‖, ―ou aquilo‖, e nesse sentido rompe o pragma como fato consumado, podendo abrir novos horizontes. O xamanista atua, dessa forma, em dois níveis distintos, primeiro como meio de recepção e, em segundo momento, como narrador. Segundo Teixeira: O «pragma» é o correlato intencional do agir, o «agido» do agir. O objecto da «realização» não é um gesto avulso, um movimento (aliás a acção não é um somatório de movimentos nem uma «forma motora»), mas sim o termo da acção, o factum do facere (paralelo do dictum da dictio), o «facto» ou «feito por mim», o pragma. Neste sentido, a acção é um aspecto do mundo (TEIXEIRA, 1994, p. 198).. A autonomia está no fato que a linguagem extática, o estado xamânico de consciência, não é um transe sem conduta, ou uma psicopatologia, mas sim uma navegação por mundos visionários, e os xamãs têm domínio semântico de forma a percorrer essa geografia cósmica sem que se perca no caminho, através da linguagem extática, pelo exercício da vontade. O Neoxamanismo urbano, por sua vez, atua no campo da intersubjetividade, e também na história, ou seja, o indivíduo está conectado com um fluxo histórico. A produção da imaginação social, de um determinado grupo, é a representação desse processo na história; é uma ―cisão‖ na realidade, desmascarando o poder constituído e invocando a sociedade ao sonho, rompendo com qualquer pretensão de legitimidade e expondo a mais valia da metáfora (o jogo de vela e desvela). Nesse sentido, o processo de autorreconhecimento leva a um dilema ético. O Xamanismo, visionado a partir de uma dívida histórica com os povos originários, permite construir espaços de experimentação individual e social. Pois na medida em que se caminha no mundo xamânico, constrói-se uma redescrição para a sociedade, não somente modelos narrativos não dogmáticos de construção de uma nova identidade narrativa, mas, coloca-se em posição de olhar para a história e, assim, pensar uma ética que dê conta desses possíveis. De acordo com Ricoeur, a metáfora é viva, na medida em que ela não pode ser contida, assim como a metafísica é metáfora morta, que se tornou legitimidade, que precisa ser transfigurada pela utopia, pela vivacidade da metáfora viva. Não existe lugar fora da metáfora para compreender suas limitações, toda tentativa de delimitar a metáfora é uma tarefa metafórica. O Xamanismo, por estar fora do modelo metafisico ocidental, metáfora morta, usa a metáfora viva, com modelos que confrontam o modo de ser não índio, criando o espaço dos.

(25) 25. possíveis, espaço de potência e criação ilimitada, Corpos sem Órgãos, espaço por excelência do homem capaz. Como afirma Ricoeur, é um ―pensar a mais‖, e o símbolo ―dá a que pensar‖ (RICOEUR, 2011, p. 482). Na medida em que é meio de orientação para tudo que é estranho, para as profundidades existenciais, dos símbolos insondáveis. A tradução entre campos semânticos é rica, visto que não trai esse elemento fundamental que distingue o pensamento ocidental do pensamento do indígena, a capacidade de não estacionar a metáfora, a vontade de se manter sempre criador, sempre extático, sem se agarrar a verdades metafísicas, possibilitando a produção de narrativas proféticas. O acento forte dessa teoria é a observação se a apropriação do universo do xamã é uma tentativa de instaurar a metáfora viva no seio da sociedade, ou se é uma tentativa de legitimar a ideologia vigente, neste caso, a metáfora cai num abismo dos usos e abusos, e ao invés de vermos a metáfora viva, vemos apenas uma máscara. Para não cair nesse entrelaçamento é necessário desnudar a metáfora, e empregar novos usos, tantos quantos forem necessários, para fugir dos maus usos. Deve-se buscar a melhor metáfora possível (RICOEUR, 2000, p. 385). Finaliza-se, por uma proposta ética apontada por Ricoeur, a pequena ética, ou sabedoria prática (phrónesis). Tal modelo de ética, contextualista-interacionista,―a saber, que o único meio de dar visibilidade e legitimidade ao fundo primordial da ética é projetá-lo no plano pós-moral das éticas aplicadas‖ (RICOEUR, 2008, p. 57); tem-se, então, um pequeno lema, partindo do horizonte aristotélico, ―viver bem, com e pelo outro, em instituições justas‖. (RICOEUR, 2008, p. 62). Ricoeur reverte o conceito de epistemologia, onde o objeto era o centro do conhecimento do sujeito, o autor pressupõe que o outro é a fonte do saber, ou melhor, a própria condição humana de existir como sujeito narrativo. O ponto de conexão entre os dois mundos se dá pela possibilidade de uma criatividade moral. Para o pensamento xamânico, o outro é mais amplo, não é somente parte da sociedade de humanos, falantes e de imputabilidade da ação, mas também tudo que existe, e nesse sentido a proposta aqui é alcançar uma revisão teórica, a partir da mente indígena; analisar a pertinência de uma ética em que a alteridade seja ampliada para abarcar o todo existente, uma hermenêutica pluritópica do éthos xamânico. A hipótese apresentada nesta tese, é que o emprego, da metodologia ricoeuriana de metáfora continuada, pode mostrar nuances da manifestação religiosa, e nesse desvelar das intersecções dos discursos torna-se possível observar a formação da manifestação em si, inclusive sua autonomia. A capacidade narrativa, por sua vez, aliada à possibilidade de criação de mundo do ser humano, é ampliada nesta análise aplicada, e levanta a necessidade.

(26) 26. de observar os impactos reais da prática e os possíveis que a criatividade humana, entendida aqui como figuração, pode propor para novos horizontes de sentido, num momento emergente da sociedade atual. A capacidade de decisão, dos usos da memória, cultural e pessoal, é mediada pela experiência na vivência e suas teias metafóricas, e a mediação desse processo pode almejar a introdução de uma discussão sobre a colonização do discurso e a possibilidade de um novo éthos. Sendo o Neoxamanismo urbano mixotrófo – produz suas próprias referências internas, e se alimenta de outras produções simbólicas – cabe a cada liderança introduzir, ou não, a memória de forma crítica na vivência, possibilitando a aquisição de metáforas vivas ou a reprodução do status quo, que têm como base os abusos da natureza, do outro, como horizonte epistêmico em que não se leva em consideração os processos de interação.. *************************************** Observaram-se ao longo do percurso, que fundamentam nossas leituras acerca do Neoxamanismo Urbano, fenômenos e perspectivas da visão extática designados na fenomenologia como fenômenos limite. Estão para além da redução eidética, ou de qualquer abordagem, como se escapassem pelos dedos como água. Esses fenômenos esquecidos, que neste trabalho se apresenta uma tentativa de dar um contorno, na visão extática são remetidos às archés, arquivos de humanidade, que estão sedimentados há milênios. São símbolos que compõem o bloco metafórico que constrói a casa da narrativa. Quando se é traçado um percurso autobiográfico, torna-se mais nítido esse processo. São vivências que só podem ser tratadas pela poética. Uma etnopoética é necessária quando falamos desses fenômenos, pois não estamos buscando os dados empíricos, mas o sentido de tais vivências. O vivido é poiésis, criativo e doador de sentido, o símbolo dá a pensar (Ricoeur) e, nesse contexto, é preciso elaborar uma metodologia que possa perpassar esses fenômenos limite. Por tanto, visa-se traçar um relato pessoal do autor desta tese, como metodologia de intersecção de sentidos e buscas nas metáforas limite, para se compreender o percurso que leva ao caminho do trabalho religioso, e como algumas narrativas de vida podem estar intrincadas, mesmo que em momentos diferentes, em um único círculo hermenêutico:. Sou William Bezerra Figueiredo, filho de Laurentino Alberto Figueiredo (Torneiro Mecânico, sem formação escolar, autodidata) e Luzia Maria Bezerra (Dona de casa,.

(27) 27. Analfabeta). Achava muito mágico e misterioso os livros de meu pai, tinham uma aura que me convocavam para a leitura, mas que nunca me atrevi a ler. Um deles “Luzes e Trevas da Alma” me chamou muito a atenção. Hoje, sei que se trata de um livro de psicologia convencional. Mas na época, significava a abertura para outro mundo. Outra questão que me trouxe muitas vivências foi a religiosidade de minha mãe, católica, ela me levou em muitos lugares. A formação que ela recebera na infância era um misto de espiritismo e Cristianismo popular. Eu tinha uma relação muito estranha com as imagens dos Santos, Cristo ou Maria, que tinha em casa, ou nas casas das outras pessoas, eram imagens que me causavam medo e admiração. Eu tinha uma forte bronquite. Essa enfermidade fez com que meus pais buscassem entre as “simpatias” uma melhora milagrosa. Não resolveu muito no âmbito físico, mas, para mim, trouxe um olhar plural sobre a vida e a prática religiosa inserida no cotidiano. Entre sessões espíritas, de candomblé ou nas batidas e benzimentos, conheci a polissemia dos símbolos religiosos. Lembro-me de uma experiência que tive aos seis anos, quando, em um dia, andando num terreno baldio atrás da escola sofri uma queda e ao me levantar, me deparei com uma aranha toda dourada. Essa imagem me petrificou. Em seguida saí correndo, mas em meio à confusão decidi voltar e contemplar mais um pouco. Bom, ela não estava mais lá! Hoje tenho muitas leituras dessas histórias. Todas têm uma forma simbólica muito forte na minha formação. Encontrava com meus espíritos guardiões, visão dos mortos, e sonhos que depois se mostravam na realidade. Sempre tinha muito medo desses fenômenos. Outra paixão da adolescência que persiste até hoje é o estudo pelas escolas místicas. Pesquisa sobre os místicos medievais e da antiguidade sempre estiveram entre as minhas leituras. Agora, como terapeuta e facilitador de cerimônias religiosas Neoxamânicas, eu vejo como tal formação híbrida me ajudou a construir minha história. Nos dias de hoje, atuo como sacerdote realizando cerimônias sazonalmente, assim como venho sistematicamente atendendo pessoas que vêm em busca de tratamento para diversas enfermidades. Nesse período, estudei com mestres do Neoxamanismo urbano, como Leo Artese, Sthan Xannia Tehuantepelt, em escolas de Neoxamanismo, e principalmente com mestres indígenas: Ramiro Ponce (herbalista peruano), Maestro Fermin (Xamã Peruano), Wyanã Uia Thé (Mestre de Cerimônia Fulkaxós), Luiz Canê Mingue Guaiana (Pajé Guaiana, Historiador), Os Huni Kuin (diversas lideranças, Tadeu, Bainawa, Tuwe), os índios Fulniôs etc. Também pude fazer uma imersão com os índios Guarani, e tive a oportunidade de receber financiamento para realizar um projeto de intercâmbio, onde trocamos práticas.

(28) 28. culturais entre as ações de leitura da Biblioteca Central de Diadema e o modo de ser Guarani de produção da oralidade. Em 2015, houve o primeiro congresso internacional de Xamanismo na web, o XamãsConet, tal iniciativa realizada pelo facilitador xamânico Samuel Souza de Paula reuniu mais de sessenta palestrantes do Neoxamanismo urbano, além de algumas lideranças indígenas. Foi um momento muito útil para avaliar em que ponto está meu trabalho e o diálogo com mestres, facilitados e xamãs que atuam no Neoxamanismo urbano. No ano de 2017, foi realizado o segundo encontro internacional do XamãsConet, e estou entre os mestres convidados das lideranças de Neoxamanismo urbano. Realizei como pesquisador diversas pesquisas sobre a cultura popular, religião e performance ritual. Acredito que, como acadêmico, essas leituras têm um propósito específico, pois para além de um praticante da cultura, ter um olhar científico sobre o fenômeno é o plano de fundo da abordagem. Os fatos da formação biográfica contribuem para uma leitura dos fenômenos, como dito anteriormente, depende de uma sedimentação da linguagem dentro de uma tradição e cultura. E o que se observa é que essa leitura, que hoje pode ser realizada, tem como plano de fundo a formação e a pesquisa acadêmica, de anos de estudos sobre a antropologia teatral, a linguagem da performance e da cultura popular. Por isso, ressalta-se a importância de trazer a leitura autobiográfica, e ao longo do texto introduzir pesquisadores que também são facilitadores ou participantes de grupos de Neoxamanismo Urbano e que em algum momento levaram suas experiências para a universidade e produziram pesquisas a respeito do tema. Portanto, nesta introdução, compartilha-se o relato da experiência do autor, a primeira experiência estritamente dentro dos Xamanismos, e que foi uma experiência limite de vida. Trata-se de uma experiência religiosa, em que foi possível sentir o fenômeno limite: Minha primeira jornada nos fenômenos extáticos limites foi dentro da religião do Daime, em uma cerimônia anual, em que é comemorado o hinário do Mestre Irineu, fundador da seita em meados da década de 40. A princípio fiquei procurando significado nos espaços, nas representações esotéricas do local, imagens, mesas, posição das cadeiras, disposição das pessoas, indumentária etc. Conversando com um senhor que acabara de chegar, descobri também ser sua primeira vez ali. Um dentista que pouco conhecia dos símbolos, muito humilde diante do espaço. Após o início da cerimônia, fomos “consagrar” a bebida sagrada (ayahuasca). Tudo começou sem muita novidade, começamos a dançar e seguimos o ritmo do grupo. Logo reparei que o senhor que estava ao meu lado, o dentista, estava tendo uma espécie de colapso corporal, mas logo ficou claro que ele havia se tornado um pássaro. Daí.

(29) 29. em diante tudo começou a se abrir, sentia o fluxo de energia que era gerado pela roda, a dança frenética circular criava vórtices de forças centrípetas e centrífugas. O texto que líamos no hinário parecia saltar do papel e dançar na minha frente, as palavras tinham um sentido totalmente fora do que podemos observar com a leitura convencional, o sentido era profundo e amplo, ancestral. Nesse fluxo, fomos por horas, numa energia que tomava meu corpo. Depois de algumas horas, paramos e tivemos um momento de descanso. Fui andar pelo sítio, onde percebi como os caminhos, estradas tinham personalidades diferentes, foi quando comecei a conversar com as árvores e a pedir instrução de como lidar com aquele conhecimento novo. Naquele momento, fomos chamados para reagrupar. Toda a leitura era baseada num contexto de Cristianismo popular, caboclo, cheio de referências da vida na mata, mas também de elementos da doutrina cristã. Não conseguia entrar na mesma sintonia e fui buscar elementos mais universalistas no conteúdo, como a grande mãe, para representar a Nossa Senhora da Conceição, etc. Porém, fui tomado por um sentimento numinoso profundo, de conexão com o Cristo. Sentia meu peito arder de emoção, entendia sua jornada pela terra e pensava em como era grande sua majestade, seu poder, e ao mesmo tempo, grande humildade e pobreza dos bens materiais. Continuamos por toda a noite, até às dez da manhã. Naquele momento, pude ver várias formações, que tinham características fractais, eram imagens soltas, mas que abriam para outra dimensão de sentido, nada do que podemos relatar ou transpor num texto. Ao amanhecer, ao lado da fogueira, conseguia acompanhar o movimento da fumaça, não sei se era eu que a movia ou se tinha me integrado a tal ponto ao mundo hilético que poderia controlá-lo. Uma jornada que me impressionou muito e, por anos, refleti sobre essa experiência, retornando anos depois para o Xamanismo. Meu retorno foi bem mais intenso, comecei a participar de cerimônias mais profundamente, e a estudar mais a fundo a tradição, porém, agora buscando refúgio no Neoxamanismo urbano. Ao total, foram 15 anos desde a primeira vivência, e estive na presença de lideranças indígenas que me deram a formação para conduzir as cerimônias. Isso foi algo que mudou muito o perfil dos trabalhos, desde visões proféticas, sobre conduta a ser proferida, à adivinhação, esta em especial tem ajudado muito nos trabalhos de cura. Visões são frequentes, com um campo semântico mais definido, e o contato com o mundo espiritual é muito mais eficaz, desde aprendizados até canções que são aprendidas durante a experiência extática, são canções sagradas de medicina, que são entregues aos líderes de cerimônia, homens de medicina..

(30) 30. O processo, descrito acima, se inter-relaciona com as narrativas anteriores, e outras narrativas que serão retomandas em capítulos posteriores. Demonstra a permeabilidade da narrativa em metáforas limite e fenômenos de difícil tradução para a linguagem corrente. São eventos que constituem uma trajetória biográfica, como o exemplo a seguir. De acordo com a tradição, todo xamã tem que morrer para se tornar um curador, em 2005 houve uma experiência marcante, que se liga num círculo compreensivo com o que foi relatado, e dentro do campo semântico do fenômeno:. Depois de vários dias sofrendo por uma grave crise respiratória, fui levado ao hospital. Logo que entrei na ambulância, desmaiei e só me lembro de estar em uma gruta, onde havia várias pessoas desorientadas. Ao perceber tal situação, me pus a procurar uma saída do local. Andei por dias, até ter sido levado para outro andar, acima de onde estávamos e lá andei por horas, até que localizei uma grande câmara, onde tinham centenas de pessoas sentadas. Estavam estudando. Sentei ali e comecei a prestar atenção numa imagem com dezenas de metros de altura, que movia centenas de braços. Quando suas mãos passavam na nossa frente projetava hologramas com uma codificação que lhes dava aparência de hieróglifos ou as mandalas orientais, que eram de fácil entendimento naquele momento. Quando terminei os estudos, fui orientado a voltar. Foi quando acordei no hospital, depois de ter passado por duas mortes, uma morte de cinco minutos e outra parada de três, e quatro dias de coma.. Acredita-se que o caminho ao mundo dos mortos seja necessário para que o homem de medicina possa ter intimidade com essa dimensão da existência. O sonho passa, portanto, a ter uma importância dentro dessa perspectiva onírica, mágico-religiosa, refere-se ao sonho como um modelo possível de compreender tal vivência que se conecta com experiências visionárias de gênero apocalíptico. O sonho pode ser um espaço para onde se pode direcionar para um autoentendimento e para acompanhar um momento da vida, isto é, um espaço para compreensão, e abarca tanto um escape do cotidiano quanto uma profecia. Em diversas culturas, ele representa um espaço iniciático, ou seja, espaço para acesso a regiões desconhecidas do ser. É também o acesso ao inconsciente feito por intermédio da psicanálise. Desde os tempos arcaicos até os dias atuais, o sonho é mistério. É símbolo em transformação, em movimento. O sonho é uma encenação de símbolos, é performático..

Referências

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