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Categorias visionárias e cultura material

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1.3 A temporalidade xamânica e as narrativas visionárias

1.3.2 Categorias visionárias e cultura material

A partir de uma análise mais detida sobre as condições de possibilidade do sentido é ensejado notar as relações distintas entre estas modalidades normais e patológicas, para compreender em que consistem as narrativas de experiências visionárias que se distanciam das duas anteriores. Parte-se de uma tipologia importada da pesquisa de Shanon, e em seguida aplicada à análise narratológica. Como aponta Shanon:

No entanto, os dados levantados aqui também são instrutivos por definirem, na sua totalidade, o espaço semântico das visões da ayahuasca. Esse espaço abrange quatro domínios principais. O primeiro é o domínio da natureza. Como foi repetidamente apontado na discussão precedente, animais são alguns dos elementos mais comuns nas visões. Paisagens naturais e cenas de florestas e jardins são também frequentes. O segundo domínio é o da

cultura. Suas principais manifestações são as cidades majestosas, a

magnificência da realeza, os vários produtos da criação artística, religião e magia. Usualmente, o que aparece nas visões não são conteúdos relativos ao meio sociocultural do próprio bebedor, mas sim aqueles associados a civilizações antigas. Além disso, a maioria dos objetos e artefatos, nas visões, são esplendidamente ornamentados ou preciosos (ou ambos). Similarmente, a maior parte dos edifícios que aparecem são palácios ou templos, e entre os seres humanos muitos são reis e rainhas, ou figuras religiosas e pessoas de ascendência espiritual. O terceiro é o mundo da

fantasia. Compreende terras mágicas e encantadas e é habitado por todo tipo

de criatura, que não são nem seres humanos nem animais (no sentido naturalístico). Como foi indicado, os objetos e cenas que de ordinário aparecem nas visões não são mundanos; estão com frequência associados à mitologia, aos contos de fadas e à magia. O quarto domínio é o do espiritual e do sobrenatural. As visões da ayahuasca muitas vezes revelam à pessoa reinos celestiais. Nestes, comumente, aparecem seres divinos e semidivinos. O domínio sobrenatural é via de regra associado a significados espirituais e metafísicos que não são normalmente vistos ou considerados (SHANON, 2003, p. 136-137).10

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Ou seja, as categorias, Natureza, Cultura, Fantasia, Espiritual e Sobrenatural são elementos que recorrentemente aparecem nas experiências visionárias com o uso da ayahuasca, por exemplo. Esses elementos podem ser vistos se intercalando no quadro de Pablo Amaringo. A presença predominante da natureza, a descrição de diversas culturas, elementos da fantasia popular, conectados numa temporalidade, simultaneidade e espacialidade espiritual e sobrenatural.

O mesmo acontece e é absorvido pela cultura material. Após as visões, é comum essas comunidades adotarem condutas, e os elementos visados ganham vida na cultura.

Em estudo11 produzido por Carlo Severi, é factível notar como o universo da cultura entra na produção imagética da ritualística xamânica, em que se permite ver a adoção do ―homem branco‖ como espírito sobrenatural para os trabalhos de cura:

O grande antropólogo sueco E. Nordenskiöld, durante sua expedição de 1927 entre os Kuna, coletou muitos objetos interessantes, agora incluídos nas preciosas coleções do Museu Etnológico de Gotemburgo. Entre esses objetos existe uma série de estatuetas, esculpidas em pau-de-balsa, que representam os "espíritos auxiliares". Essas imagens, usadas pelos especialistas Kuna na recitação de cantos dedicados à terapia de várias enfermidades, representam freqüentemente pássaros, tartarugas-marinhas e outros animais. Às vezes, elas possuem uma vaga forma antropomórfica, representando alguns dos seres sobrenaturais da mitologia Kuna (Figura 1). Assim como em outras tradições indígenas americanas, essas imagens são evocadas e solicitadas a ajudar durante rituais de cura. Entretanto, algumas dessas figuras Kuna são mais surpreendentes (Figuras 2 e 3), pois representam pessoas usando camisa, calça, chapéu e até gravata. Resta pouca dúvida de que, mesmo sendo utilizadas pelos xamãs como espíritos auxiliares nas suas viagens sobrenaturais, elas representam o Homem Branco (SEVERI, 2000, p 124).

Nesse exemplo, o ponto intrigante a ser observado é como a interação do indígena e do ―homem branco‖ produzem a cultura material, e as narrativas possíveis destas intersecções do discurso presente nesse fenômeno específico. Esta apropriação cultural é uma saída para assimilar a alteridade agressiva do colonizador e transmutar sua intervenção, como Severi comenta utilizando Taussig, esse movimento de aquisição de poder é fundamental para a estrutura social dos Kuna:

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O estudo de Carlo Severi referido é intitulado: Cosmologia, crise e paradoxo: da imagem de homens e mulheres brancos na tradição Xamânica Kuna, publicada em 2000 na revista digital Mana – Estudos de

Antropologia Social.

M. Taussig, por exemplo, identificou entusiasticamente nessas estatuetas uma espécie de vingança simbólica da sociedade Kuna contra os invasores Brancos. Essa interpretação, que pode parecer surpreendente à primeira vista, é na verdade muito comum, sendo frequentemente aplicada a outras situações de contato cultural. Manipulando a imagem do Branco, argumenta Taussig, o xamã Kuna torna-se simbolicamente capaz de capturar o poder dos seus antagonistas, exatamente como o sacerdote vodu, ou um possuído Songhay, que ―captura o poder‖ de um padre católico ou de um administrador francês tomando sua imagem e, assim, tornando-se ―similar a ele‖ (Métraux 1958; Stoller 1984; 1989). Usando a imagem de um Inimigo paradigmático em um contexto de ―magia simpática‖, Taussig argumenta que os Kuna encontraram um modo de assimilá-la (SEVERI, 2000, p. 125).

Compreende-se como a extensão da narrativa pode tomar um corpo na memória

coletiva do grupo, sendo fundamental para assimilação dos conteúdos cotidianos e espirituais.

O que possibilita afirmar é que aplicar estas categorias a uma territorialidade onde se vê esse universo holístico do mundo xamânico, em que não há uma separação radical como no mundo ocidental, as experiências visionárias ganham vicissitude nesse universo integrado. Observa- se como exemplo os Kuna:

No mundo Kuna cada ser tem seu território, e o padrão de organização desses territórios se assemelha antes a um arquipélago composto por ilhas separadas do que a uma estrutura única organizada em linhas hierárquicas. Por outro lado, lá onde o pensamento ocidental estabelece uma descontinuidade radical entre o homem e o mundo exterior, ou seja, no plano espiritual (ou, nas versões modernas da mesma ideia, nos planos linguístico e psicológico), os índios vêem apenas continuidade e troca contínua (realizada, por exemplo, pela realização de rituais). No pensamento indígena, essa continuidade sempre leva à representação do reino da natureza como uma cultura. De acordo com os Kuna, os animais casam entre si segundo seus próprios costumes; eles constroem suas aldeias na floresta; e falam sua própria língua. Nem a vida social organizada nem mesmo o fato de falar uma língua (e atribuir a isso o status de uma forma de conhecimento) pode dar ao índio um lugar privilegiado no mundo. O que dá a qualquer ser sua própria especificidade é, do ponto de vista Kuna, seu território: o espaço ao qual ele pertence no universo (SEVERI, 2000, p. 139).

O contexto é claro, existe um território próprio de apropriação de narrativas visionárias e onde é possível identificar elementos passíveis de uma análise hermenêutica que parte da observação da narrativa. O modo de ser do pensamento indígena é diverso do pensamento ocidental, e isso contribui para que as narrativas tenham uma territorialidade clara, unificadora e utilitária. Mas, como será visto nos capítulos seguintes, isso também ocorre de forma xamanóide nos grupos de Neoxamansimo urbano.

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