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Introdução

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Como nosso tema é a poiesis, falamos mais da estruturação que da estrutura, pois a temporalidade se faz em estruturações mediadas pela narrativa, pelo relato. Como afirma Ricoeur em seus estudos:

A escolha dessa categoria literária tem a vantagem evidente de sublinhar a função mediatriz da intriga. Uma intriga faz a mediação entre os eventos ou incidentes isolados e uma história tomada como um todo. Esse papel mediador pode ser lido em dois sentidos: uma história é feita de... (acontecimentos) na medida em que a intriga transforma esses acontecimentos em... (uma história). Um acontecimento, desde então, deve ser mais que uma ocorrência singular e única. Ele recebe sua definição a partir de sua contribuição para o desenvolvimento de uma intriga. Uma história, por outro lado, deve ser mais que uma enumeração de eventos em uma ordem sucessiva, ela deve aferir um todo inteligível dos incidentes, de tal sorte que seja sempre possível perguntar qual é o ―tema‖ ou o ―sujeito‖ da história (RICOEUR, 2012 p. 303).

A poiesis opera uma complexa relação de mediação com o tempo, e que propicia as sedimentações narrativas. A conexão entre as abas temporais, presente, passado e futuro, são possíveis pela possibilidade de narração. A história é um processo de sucessão:

A capacidade de a história ser seguida converte o paradoxo em dialética viva. De um lado, a dimensão episódica da narração faz pender o tempo narrativo para o lado da representação linear do tempo. E isso de diferentes maneiras. Em princípio, a resposta ―e então‖ que corresponde à questão ―e depois?‖, sugere uma relação de exterioridade entre as fases da ação. De outro, os episódios constituem uma série aberta de eventos que autorizam a acrescentar aos ―e então‖..., ―e então‖, um: ―e assim por diante...‖. Finalmente, os episódios se seguem segundo a ordem irreversível do tempo comum aos eventos humanos e físicos (RICOEUR, 2012, p. 304).

A relação entre concordância e discordância entre tempo e narrativa é sempre uma questão de circularidade hermenêutica, e por isso, tanto a violência quanto a redundância da interpretação do fenômeno da temporalidade são partes de uma análise do tempo, permintindo a existência desses paradoxos. ―Entretanto, a objeção não faz justiça a um fenômeno fortemente intrigante que, a meu ver, nos obriga a conceder à experiência como tal uma narratividade incoativa‖ (RICOEUR, 2012 p. 308).

Esse processo de início da ação, imputado ao ato da narratividade é fundamental para que seja possível entender o objeto desta pesquisa, que é a formação poiesis no discurso do Neoxamanismo urbano. Esse seguimento de intersecção da narrativa pessoal e histórica, como será visto adiante, é a apropriação ética dos processos visionários. Como comenta o autor, as histórias ainda não narradas também estão no rol de possíveis da experiência da temporalidade. A identidade narrativa tem, portanto, um peso importante para esta reflexão visto sua implicação na constituição da narratividade em geral e ―é a busca dessa identidade pessoal que assegura a continuidade entre a história potencial ou incoativa e a história expressa da qual nós assumimos a responsabilidade‖ (RICOEUR, 2012, p. 309).

Há, nesse sentido, um tempo que existe e que é compartilhado como pré-narrativa, como um acontecer por vir. O sujeito se depara com a narrativa e esta o doa temporalidade, dentro de um processo paradoxial do tempo enquanto entidade não ―domesticada‖. Empreende-se a tarefa de construir uma antropologia do Neoxamanismo urbano e, como resultado, um sujeito que se desdobra mediado pela experiência metafórica da narrativa visionária, pois a mediação simbólica é que determina este processo como uma linguagem antiestruturada, como o modo que se conhece.

A temática da linguagem extática será abordada posteriormente, em momento adequado. O que é factível acertar nesta reflexão é que todo ser humano quer contar sua história e merece ser narrado. E se tratando de narrativas visionárias, existem sob uma codificação que não são histórias para qualquer pessoa, entender, senão aquelas que dominam certa tradição e codificação. E neste campo torna-se necessário entender a formação híbrida do Neoxamanismo urbano, como uma imbricada teia metafórica em constantes transconfiguração. Esse círculo interpretativo passa por essa compreensão da narrativa e sua condição de intérprete do tempo. Em suma, há um conjunto de perguntas, e nesse aspecto é possível compartilhar com o pensamento de Ricoeur:

Mas não podemos dizer que o ―potencial hermenêutico‖ das narrativas desse tipo encontra senão uma consonância, pelo menos uma ressonância nas histórias não ditas de nossa vida? Não há uma cumplicidade escondida entre o ―segredo‖ engendrado pela própria narração – ou pelo menos pelas narrativas próximas das de Marcos e de Kafka – e as histórias ainda não ditas de nossas vidas que constituem a pré-história, o pano de fundo, a imbricação viva da qual a história narrada emerge? Em outros termos, não há uma afinidade escondida entre o segredo de onde a história emerge e o segredo ao qual a história retorna? (RICOEUR, 2012 p. 310).

Há de se observar a possibilidade do sujeito determinar a sua saída em direção compreensiva do fenômeno de aquisição poeiética das narrações, visando a estruturação da existência, com quanto não se perde também a estrutura em que estas manifestações se apresentam, tal é a tarefa deste capítulo primeiro, onde abre-se a discussão que será desdobrada ao longo do texto. A compreensão que estabelece a conexão em cada ponto deste estudo parte da premissa que a experiência de temporalidade e a narratividade estão imbricadas, e ocorrem pela operação de mediação simbólica a partir de redes metafóricas. Como acredita Ricoeur, não se pode cair no jogo de negação do paradoxo, mas antes trabalhar sobre aporia do tempo e da narrativa:

Qualquer que possa ser a força constrangedora dessa última sugestão, podemos aí encontrar um reforço para o nosso argumento principal, segundo o qual a circularidade manifesta de toda análise da narração, que não cessa de interpretar uma pela outra a forma inerente da experiência temporal e a estrutura narrativa, não é uma tautologia morta. É preciso antes ver aí um círculo bem sustentado no qual os argumentos apresentados pelas duas vertentes do problema se mantêm mutuamente socorridos (RICOEUR, 2012, p. 310).

É preciso, portanto, abordar mais de perto o tema do tempo e da narrativa sempre com horizonte no referencial ricoeuriano, sem perder de vista o intuito fenomenológico do estudo e retomando, sempre que possível, as coisas mesmas. O tempo é um dos temas principais do estudo da fenomenologia, e seu desdobramento consequente à intencionalidade. Neste campo aberto de estudo há diversos autores que navegaram em águas profundas. Aplica-se aqui a metodologia Husserliana e se alcança diversas teses. O intuito deste texto de abertura é apresentar a temática que nutre esta pesquisa e traçar uma rota de compreensão para entender o fenômeno do Neoxamanismo urbano e suas características principais, entre elas a

experiência extática visionária, além de mostrar como o quesito tempo e também a narrativa

aparecem dentro da perspectiva xamânica e do Neoxamanismo urbano. O desdobramento e a compreensão deste estudo irão possibilitar os estudos seguintes.

O tempo se apresenta como fenômeno do tempo vivido, que por sua vez é narrado. Ele – o tempo – não se doa à consciência de forma pura, ele é sempre mediação pela narrativa e é um fenômeno de constituição de possibilidades, de temporalização. No caso das narrativas visionárias, há ainda elementos endógenos, que ultrapassam a coleta de dados pelos sentidos. E nesse desenvolvimento apresenta-se o sentido maior do mesmo, como condições de possibilidade estruturantes da constituição de mundo do ser. O método de observação deste fenômeno apresentado por Husserl em Ideias (2006) é significativo, que em seguida foi aprimorado pelo autor e pelos seus sucessores a partir de novas abordagens.

Da mesma forma, o conceito de narrativa ricoeuriano é fundamental para podermos abarcar o tema das narrativas visionárias xamânicas, as narrativas de poder e os aspectos soteriológicos e éticos resultantes. Ademais, na continuidade deste primeiro capítulo, se verificará como o fenômeno da experiência extática visionária se apresenta na recepção da narrativa, na produção da cultura material, e em experiências autobiográficas, como uma tentativa de alcançar o fenômeno da origem da visão extática. O desdobramento desse estudo será aplicado nos capítulos subsequentes, seguindo a proposta de tipologias narrativas de Richard Kearney.

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