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O resgate da alma

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2.2 Conceito xamânico de doença

2.2.1 O resgate da alma

A cura xamânica é um método de cura espiritual que lida com o aspecto também espiritual da doença. Do ponto de vista xamânico, há três possíveis causas para uma doença. Uma pessoa pode ter perdido seu poder, o que causa depressão, doenças crônicas, ou uma série de desventuras. Nesse caso, o xamã realiza uma jornada para restaurar o poder da pessoa. Ou a pessoa pode perder parte de sua alma ou de sua essência, o que causa a perda da alma, e isso geralmente ocorre durante um trauma físico ou emocional, como um acidente, uma cirurgia, abuso, trauma da guerra, presenciar um desastre natural, a morte de um ente querido, ou outras circunstâncias traumáticas.

A perda de alma pode resultar em dissociação, síndrome pós-traumática de estresse, depressão, indisposição, problemas de deficiência imunológica, vícios, aflição interminável, ou coma. A perda da alma impede que se criem relacionamentos saudáveis, ou a vida que se deseja. É esta a função do xamã: rastrear as partes que partiram e se perderam devido ao trauma, através de uma cerimônia de recuperação da alma. Outra causa de doença, segundo a perspectiva xamânica, seria qualquer obstrução espiritual ou energias negativas que um cliente absorve, devido à perda de seu poder ou sua alma. Essas obstruções espirituais também causam doenças, geralmente em uma área localizada do corpo. Esta é a função do xamã: extrair e remover as energias prejudiciais do corpo.

―Doença = desintegração‖, essa fórmula ajuda a compreender esse processo, é um modo diferente do ocidental de pensar o tempo, a doença iniciática tem contextos diferentes. Vejamos um exemplo, em entrevista21 o Pajé Sapaim (Kamayurá) comenta como foi sua iniciação:

Sapaim: Olha eu... é... tem muito pajés na tribo...e...pajé não aprendeu com eles. Eu fui escolhido por Mamaé. Mamaé que significa o espírito.

Na época que eu nasci de minha mãe.... o espírito estava lá olhando quando eu nasci... quando eu nasci de minha mãe o espírito sentiu minha energia... quando eu nasci. Disse que para ela eu nasci forte e muito bom. Então o espírito me escolheu... para eu ser pajé. E, eu não sabia que ele tinha me escolhido para ser pajé.... e eu cresci ...andei...e eu acho... que eu tinha mais ou menos nove anos de idade. E chegou meu sonho... primeira coisa eu sonhei...eu fumava charuto...um charuto grande...eu fumava....e voava...e corria no sonho. Eu cai dentro da lagoa e vi todos os espíritos dos peixes, os espíritos que vivem na água. E com isso eu ficava sonhando... sonhando...sonhando.... até que me deu medo esse sonho. E... meu pai já foi pajé também. Meu pai ele entrou....

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Continua

Aí eu cresci... e fiquei rapaz... eu acho que mais ou menos 12 anos... que aconteceu. Eu acompanhei meu irmão mais velho... ele é pajé também...o nome dele é Tacumã. O meu pai já tinha falecido. Aí eu lembrei muito meu pai e fiquei muito triste... e lembrava o que ele dizia de eu ser pajé....e acompanhava meu irmão...no começo... e a gente fou plantar mandioca, milho, melancia, abacaxi, banana...e de manhã, por volta das 10h não tinha vento...e de repente veio a luz do Mamaé, bem grande, onde nasce o Sol... Aí veio bem branco e caiu em nosso lado... caiu e estourou.... bummm...aí subiu...e de repente eu recebi uma energia dele...Como se a gente está com febre né...aí eu falei: Meu irmão...eu não to bem...to com febre . Ele disse: Então...vamos para a nossa oca. Vamos voltar. Aí nós chegamos tarde... por volta das 4:30h...quando eu cheguei na minha oca, piorei muito...Piorei bastante. E, deitei na rede.... e quando o Sol acabou...ele veio....Mamaé veio. Entrou e foi direto onde eu estava... onde estava a minha rede...aquele charutão grande e comprido... (...) Aí Mamaé sentou...s ó que a família da oca não viu ele entrar...Ele sentou ao meu lado e ...minha irmão e meu irmão...fizeram fogueirinha para me esquentar... eu tava tremendo... e eu via ele....Ele disse: Você ficou com medo de mim quando eu cai de seu lado (tratava-se de uma queda)...eu que cai de seu lado...eu que escolhi você para ser pajé. Aí não tem como fugir né? Do que ele falou!

Após várias tentativas de cura Sapaim continuou caído da enfermidade até que o Mamaé decidiu passar a sua força pra ele: (...) E ele ficou passando a energia em meu corpo e eu fiquei um mês na rede sem comer, sem beber, sem falar, sem enxergar. Depois de um mês ele disse... Ele me chamava de neto... Ele disse: Neto! Você agora está bem preparado, você agora está muito forte, e você vai ser o maior curandeiro da tribo. Os pajés daqui diziam que era tudo mentira, Que ele não mostrava energia. Que ele tem que mostrar. Aí depois de um mês ele me fez mais uma vez desmaiar. Eu fiquei mais de uma hora desmaiado. Depois ele soprou e eu respirei. Aí ele disse: Agora você já está bom e pode levantar. Aí eu não sentia mais aquela energia toda na cabeça e fiquei livre. Fiquei bom.

Depois ele disse: Agora você já está bom e eu vou tirar aqui (olhos). Tirou pendurou soprou e sumia. Depois tirou daqui (boca) soprou e sumiu. Ele disse: É assim que você vai tirar a dor de seu povo e de toda a sua família. Você tem que mostrar para todos os pajés da aldeia. (...) E aí fiquei bom! Fiquei bom e nunca senti mais nada. Aí ele disse: Agora, você vai ficar na sua oca, não pensa em sai, não pensa em pescar, não pensa em caçar... (...) Sem comer, sem beber... Ele ficava jogando a fumaça... para eu não sentir fome. Daí... fiquei bom . Aí ele disse: Agora eu não vou dizer para você ficar um mês, dois meses na sua oca não! Agora você vai ficar dentro da sua oca um ano. E, fiquei um ano... (...) Aí eu não saia nem de dia e nem de noite. Ficava lá preso. Eu só ficava rodando dentro da casa.... da oca. Aí depois de um ano ele mandou sair: Pode sair!

(...) Não sei quantos anos eu tenho (gargalhadas...). E eu saí e depois ele mandou voltar para eu ficar mais dois anos dentro da minha oca.

O tempo aqui é fundamental, o tempo da espera, de ouvir, o tempo de rezar, de comer, o tempo de falar com o espírito. É um tempo lento, cíclico, demora três anos, em constantes provações, em estudo, isolamento. Ao conversar é constante com as lideranças, com os

espíritos, os pajés que visitam o menino não têm pressa. Todos estão num estado de espera interminável, não existe o caos, tudo é previsto e têm seu desenlace natural.

O tempo dentro do modo de ser indígena é muito mais cíclico, com isso se quer dizer que é um tempo que segue os ciclos naturais, as estações do ano, as marés etc. Não está fora do tempo da natureza, isso num sentido geral, afinal sabemos que o indígena pratica um tempo por ele estabelecido e não necessariamente o tempo da natureza, mas ele se esforça por observar os tempos, e por tentar reproduzir e se tornar parte desses ciclos naturais. O mesmo se dá para as iniciações para a vida adulta, eles vão acompanhar o amadurecimento biológico, como dado predominante para esse fim.

O mesmo pode ser observado nas religiões de herança africana:

Antes da imposição do calendário europeu, os iorubás, que são a fonte principal da matriz cultural do candomblé brasileiro (Prandi, 2000b), organizavam o presente numa semana de quatro dias. O ano era demarcado pela repetição das estações e eles não conheciam sua divisão em meses. A duração de cada período de tempo era marcada por eventos experimentados e reconhecidos por toda a comunidade. Assim, um dia começava com o nascer do sol, não importando se às cinco ou às sete horas, em nossa contagem ocidental, e terminava quando as pessoas se recolhiam para dormir (Mbiti, 1990, p. 19), o que podia ser às oito da noite ou à meia-noite em nosso horário. Essas variações, importantes para nós, com nosso relógio que controla o dia, não o eram para eles (PRANDI, 2001, p. 43-58).

E continua:

Nesta nossa sociedade do tempo irreversível, cada vez mais as imagens e referências do tempo circular vão se perdendo: o relógio analógico, com seus ponteiros sempre dando a volta para retornarem ao ponto zero, são substituídos pelo relógio digital; os supermercados 24 horas e outros negócios essenciais ao consumo na vida cotidiana não fecham para descanso; os canais de televisão ficam no ar noite e dia; trabalha-se em qualquer período; a internet mantém ininterrupto o acesso aos arquivos de informação dos computadores ligados na rede mundial; até o amor se faz a qualquer hora nos motéis full-time; a eletricidade há muito acabou com a escuridão e fez da noite, dia; a engenharia dos transgênicos nos faz sonhar com uma natureza transformada a cada colheita. Se até na natureza o tempo cíclico vai perdendo importância, que dirá na vida do terreiro (PRANDI, 2001, p. 43-58).

No Xamanismo não poderia ser diferente, a temporalidade é lenta com relação à sociedade ocidental contemporânea. As iniciações duram anos. A doença da qual o pajé Sapaim passou é de outra qualidade, têm haver com a aptidão para receber o espírito. No contexto xamânico a perda da alma têm relação com o trauma que o nativo sofre, ou então

pelo roubo feito por um espírito ou ainda um xamã de outra tribo, que prende a alma do indígena. E onde está a alma? Os três mundos conhecidos do xamã, citados anteriormente, ficam no eixo do mundo, na àrvore do mundo, onde o xamã irá realizar sua jornada, e resgatar, onde quer que estejam, as almas perdidas ou aprisionadas.

Quando a alma retorna ao corpo o xamã pode perceber, pelo relinchar de um cavalo, pelo vento nas árvores, pois há diversos sinais que contribuem para o xamã ter a assertiva que a alma está de volta ao doente. Nesses casos, o xamã então direciona a alma ao corpo com um sopro forte, às vezes no peito ou no topo da cabeça.

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