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a-Voz do supereu como condição de uma lógica deôntica sem-origem e sem-

CLÍNICA, ÉTICA E JURÍDICA NO LAÇO SOCIAL

2.2 SUPEREU FREUDIANO, MAL-ESTAR E A RESPONSABILIDADE DO SUJEITO COMO QUESTIONAMENTO DA RAZÃO JURÍDICA NO LAÇO SOCIAL

2.2.3 a-Voz do supereu como condição de uma lógica deôntica sem-origem e sem-

fundamento no laço social

O supereu é, segundo Freud, “[...] herdeiro do complexo de Édipo [...]”114,

representando a internalização da autoridade115, e, enquanto tal, relaciona-se à origem do sentimento de culpa: “[...] o sentimento de culpa do homem se origina do complexo edipiano e foi adquirido quando da morte do pai pelos irmãos reunidos em bando.”116.

Freud, ao se reportar ao mal-estar constitutivo do sujeito, vincula o supereu aos temas do complexo de Édipo e da morte do pai da horda primeva. Este último, retomado de Totem e Tabu, refere-se ao mito freudiano de um sujeito — o pai tirano — detentor de um gozo mítico, originário, sem barreiras, sobre todas as mulheres. Ora, o trágico não está no assassinato desse sujeito fora do tempo, que encarna miticamente a Coisa, e sim no corte não propriamente histórico, mas ético, que o ato do assassinato importa: o gozo originário se perdeu para sempre e a insistência do sujeito em apreendê-lo, em apreender a Coisa117, não faz senão colocá-lo, como vimos, na posição de assujeitado ao gozo do Outro, assujeitado a um direito e a um saber de que não se sabe.

A importância desse mito freudiano está, pois, na verdade e ética analíticas que suscita e é por isso que ele é irredutível à oposição entre conhecimento verdadeiro e ilusório ou errôneo118. Freud, ao pretender uma explicação — inclusive com o recurso a hipóteses genéticas — para os problemas da lei e da moral, inscreve um efeito de ilusão... e de verdade119 — já que a verdade se estrutura como ilusão —, situando o supereu na relação impossível com o sujeito:

114

Cf. FREUD, O ego e o id, 1976g, p. 64. 115

Cf. FREUD, O mal-estar na civilização, 1974h, p. 148 et seq. 116

Ibid., p. 155. 117

VALLAS, As dimensões do gozo, 2001, p. 38. 118

FREUD (O futuro de uma ilusão, 1974g, p. 44): “As ilusões não precisam ser necessariamente falsas, ou seja, irrealizáveis ou em contradição com a realidade [...] Do valor de realidade da maioria delas não podemos ajuizar; assim como não podem ser provadas, também não podem ser refutadas.” A questão de Freud, mesmo quando se reporta a sociedades primitivas, se coloca, como veremos, em relação à modernidade e ao sujeito moderno — e nisso há a real-ização, em ato, da ilusão. Aliás, no capítulo em que trata sobre “A verdade de Freud”, Julien (Psicose, perversão, neurose..., 2002, p.141) afirma o seguinte: “O mito não é nem o ilusório, nem o irreal. É, segundo o que Lacan colheu de Lévy-Strauss, um relato que articula por seus significantes privilegiados, o que funda toda sociedade humana, enquanto não natura, ou seja, a lei das trocas.” Isto implica um efeito de linguagem e de ilusão que se pode ler da análise que Bentham faz das instituições jurídicas e políticas na sociedade moderna (Cf. LACAN, O seminário - livro 7, 1988, p. 22 e O seminário - livro 20, 1985, p. 11-12. Ver também BENTHAM, De L`Ontologie..., 1997; GARCIA, B. (J. Bentham: política y..., 1988); LAVAL (Jeremy Bentham: le pouvoir..., 1994); LAVAL; CLÉRO (La théorie des fictions..., 1997).

119

[...] a originalidade da posição freudiana resulta destas duas teses: por um lado o supereu é constituído ‘como uma relação estrutural (Strukturverhältnis) que não personifica simplesmente uma abstração, como a consciência moral’ (‘Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise’); de outro, essa relação não é dada de saída, estando seu estabelecimento na dependência ‘das vicissitudes da relação de alteridade’. Em outras palavras, ‘não é a consciência moral que produz a renúncia às pulsões, mas antes a renúncia às pulsões (induzidas por essas vicissitudes) que engendra a consciência moral e a reforça’.120

A referência ao supereu como instância de internalização da autoridade paterna não o reduz — senão para gozo do neurótico, como vimos —, à consciência moral, entendida como norma universal que orienta a nossa ação: “É possível que o supereu sirva de apoio à consciência moral, mas [...] ele nada tem a ver com ela no que se refere às suas exigências mais obrigatórias [...] é o bê-a-bá da verdade analítica.”121. Nem importa a instituição de uma interioridade psíquica, já que o que existe ou ex-siste é o mal-estar na relação com o Outro, que implica o sujeito — é efeito de uma identificação do sujeito.

Essa identificação, que Freud compara à incorporação oral, canibalística122, é o resultado do amor ao pai, depois do assassinato odioso, o que à primeira vista faz da instituição do supereu, então investido do poder do pai, um ato de punição. O que há de radical no mal-estar do sujeito e da cultura está, entretanto, como vimos, para além da punição. Na experiência analítica, o mandamento supereuóico não incide simplesmente como um mandamento punitivo — que ao violentar importa ainda o reconhecimento do sujeito

como um in-divíduo —, mas um mandamento compulsivo123, mandamento de gozo, cuja

violência simbólica, real124, importa a instituição da divisão subjetiva... como desconhecida do sujeito. Ou como diz Freud:

O ego pode tomar-se a si próprio como objeto, pode tratar-se como trata outro objeto, pode observar-se, criticar-se, sabe-se lá o que pode fazer consigo mesmo. Nisto, uma parte do ego se coloca contra a parte restante. Assim, o ego pode ser dividido; divide-se durante numerosas funções suas — pelo menos temporariamente.125

O supereu — enquanto “[...] instância especial no ego e [que] dele se mantém à parte [...]”126 — é esse elemento de fora do sujeito, que, em ato — quer dizer, temporariamente,

120

LEMAIGRE, Supereu, 1996, p. 510. 121

LACAN, O seminário - livro 7, 1988, p. 371-372. 122

Cf. FREUD, Totem e tabu, 1974a, p. 170. 123

Cf. FREUD, O ego e o id, 1976g, p. 49. 124

Essa questão a que já nos reportamos será retomada. 125

Cf. FREUD, A dissecção da personalidade psíquica..., 1976j, p. 76-77. 126

num tempo radicalmente atual — lhe constitui o dentro127: a instância supereuóica faz o eu ex-sistir e funcionar como sujeito dividido, que goza com seus sintomas128.

É nesse contexto que se pode afirmar que a preocupação freudiana em Totem e Tabu não é simplesmente teórica ou antropológica, mas clínica, ou seja, a vinculação dos temas do totem e do tabu ao funcionamento subjetivo, neurótico, como Freud explicita já no início do seu texto129.

Freud — assim como Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo —, não pretende fundar uma teoria absoluta ou uma teoria da cultura. O ponto de vista que apresenta não significa a instauração de uma causa única para o problema da moral, da religião ou da neurose. Se nas Novas Conferências, Freud reporta-se à “[...] visão materialista da história [...]”130, não para simplesmente negá-la, mas para enfatizar seu ponto de vista parcial, em Totem e Tabu, ele se vale do conceito de sobredeterminação para, conforme já indicamos, situar o problema — presente também nas sociologias durkheimiana e weberiana131 — da complexidade causal:

Não tem fundamento o receio de que a psicanálise, primeira a descobrir que os atos e estruturas psíquicas são invariavelmente supradeterminados, fique tentada a atribuir a uma fonte única a origem de algo tão complicado como a religião. Se a psicanálise é compelida — e é, na realidade, obrigada — a colocar toda a ênfase numa determinada fonte, isto não significa que esteja alegando ser essa a fonte única ou que ela ocupe o primeiro lugar entre os numerosos fatores contribuintes.132

A razão da obrigação psicanalítica, a que se reporta Freud, de enfatizar uma determinada causa ou fonte, não pode estar dissociada, como já mencionamos, de sua subjetividade, ou seja, da sua crença na ciência e na pesquisa genética. Freud, entretanto, adverte para os impasses do discurso científico, apontando para três questões cruciais entre si relacionadas: a) o objeto é mutável, ou seja, é, na sua estrutura, sempre outro; b) não existe a Verdade (e com ela a observação e a informação supostamente neutras e sem ruído), mas algo

127

FRANÇA NETO (Identificação e culpa..., 2005) chama atenção para “[...] a situação paradoxal [...]” de que “[...] o supereu é, ao mesmo tempo, ‘dentro’ (uma diferenciação do eu) e ‘fora’ (trata o eu como objeto)”. E acrescenta que essa “[...] situação paradoxal [...], na verdade, é tríplice (dentro = fora, ser = ter, causa = efeito)”. Deve-se observar, entretanto, que a questão desta tese não está no exame de paradoxos, relativos, por exemplo, ao conceito freudiano de identificação, mas na constituição de uma outra-razão e um outro-tempo — um tempo radicalmente atual, como frisamos.

128

A propósito, Freud (O ego e o id, 1976g, p. 65) se reporta a “[...] certos fatos clínicos [...] que ainda aguardam um exame teórico”, dentre eles o “[...] conhecido como ‘reação terapêutica negativa’”.

129

Cf. FREUD, Totem e tabu, 1974a, p. 20. Aliás, o que interessa a Freud, como vimos, não é a moral mesma, mas esta enquanto sintoma neurótico.

130

Cf. FREUD, A dissecção da personalidade psíquica..., 1976j, p. 87. 131

Consultar Lopes (Direito e transformação social..., 1997, p. 55 et seq.), segundo o qual essa problemática pode ser reportada à sociologia de Luhmann.Remetemos ainda ao Capítulo 1.

132

da ordem da linguagem e do engano; c) o sujeito está implicado em seu saber: “[...] a determinação do estado original de coisas permanece sendo invariavelmente uma questão de interpretação.”133.

Se tais impasses são condição de um discurso a-científico, é porque já o discurso científico importa um corte com toda pretensão de se estabelecer uma relação imediata com a realidade. Como diz Freud: “[...] nada temos senão hipóteses [...]”134. A sua teoria sobre o primitivo — e suas conexões com o neurótico — é ela mesma uma teoria hipotética. A verdade do primitivo, da criança, do neurótico, não é senão produto de um engano constitutivo do sujeito.

A teoria freudiana não importa, portanto, um saber sobre o primitivo ou o neurótico, nem sobre a religião ou a moral, mas um não-saber acerca do funcionamento subjetivo, da relação do sujeito com o real, com repercussão nos campos da ética e da epistemologia. Freud instaura assim um outro-discurso — um discurso que, se não é A-científico, é porque não (de)nega simplesmente a ciência, mas a atravessa e desloca. O corte freudiano, um corte na ciência, é pois um corte a-científico. É ele que interessa acompanhar em seus efeitos éticos e epistemológicos e, em particular, na sua relação com o discurso jurídico — um discurso irredutível à oposição neokantiana entre ciência da natureza e ciência do espírito ou da cultura, porque ele se constitui como um outro-discurso: um discurso que atravessa o positivismo (inclusive o kelseniano) e faz diferença.

É nessa perspectiva (e não na perspectiva substancializada do culturalismo) que se deve entender a primazia da cultura e da linguagem sobre a natureza, que Freud estabelece desde o início do seu texto135. O totemismo não adquire importância, pois, por sua suposta verdade histórica, nem por se constituir objeto de uma teoria supostamente científica — uma

teoria sujeita a discussões e exceções136. A importância do totemismo, a verdade do

totemismo freudiano, está em sua função de corte, uma função moderna, que Lacan reporta a Lévi-Strauss137.

O totemismo faz corte com a natureza, como Freud o mostra em vários momentos. Se o totem fundamenta as relações sociais, é porque ele institui a lei, uma lei que é irredutível ao empírico — a “[...] filiação tribal [...]” — e ao biológico — as “[...] relações

133

FREUD, Totem e tabu, 1974a, p.128, n.1. 134

Ibid., p. 134. Para Lacan, como vimos, a hipótese é constitutiva da ciência moderna. 135

Cf. FREUD, Totem e tabu, 1974a, p. 22. 136

Ibid., p. 22, n. 2, grifo do autor. 137

consangüíneas”138. O “[...] parentesco consangüíneo real [...]” é, numa palavra, substituído pelo “[...] parentesco totêmico”139.

Ora, é essa estruturação do sistema totêmico que interessa à psicanálise. Interessa o totem na sua função de lei: “[...] uma lei contra as relações sexuais entre pessoas do mesmo totem e, conseqüentemente, contra o seu casamento. Trata-se então da ‘exogamia’, uma instituição relacionada com o totemismo.”140.

Freud destaca assim dois aspectos ligados ao totemismo: a lei de proibição do

incesto141 e a exogamia, e, como se vê da citação acima, tende a enfatizar o estatuto

repressivo da lei. A lei, antes de cumprir com a função de fazer corte, marcar lugares, estabelecer limites topológicos (interno e externo, endogâmico e exogâmico), é marcada por um conteúdo da ordem da proibição.

Essa ênfase na proibição — uma ênfase pré-moderna, segundo a perspectiva durkheimiana, e também, como veremos, kelseniana — não corresponde aos impasses e rastros que se encontram no discurso de Freud, um discurso fundamentado no real da clínica, mas certamente está presente em elaborações do complexo de Édipo e do superego e na construção da antropologia e dos mitos freudianos.

O uso que Freud faz da “[...] hipótese de Charles Darwin sobre o estado social dos homens primitivos”142 é um exemplo da preocupação com o tema do incesto e sua proibição. Interessa-lhe pesquisar a “[...] origem do horror ao incesto [...]”143, e é essa pesquisa que vai desembocar no mito do assassinato do pai da horda primeva e na instituição da lei de proibição do incesto independente de sua presença física: “[...] o que até então fora interdito por sua existência real foi então proibido pelos próprios filhos [...]”144.

Essa apresentação mitológica do problema da lei ainda enfatiza um tempo linear e de continuidade do estatuto da proibição, perdendo de perspectiva o ato de instituição da lei, que, enquanto tal, marca uma outra temporalidade — a temporalidade da lei como puro ato. Afinal, como diz Freud, citando Goethe, “[...] ‘no princípio foi o Ato’”145.

138

Cf. FREUD, Totem e tabu, 1974a, p. 22. 139

Ibid., p. 25. 140

Ibid., p. 23, grifo do autor. 141

Uma lei não natural (Cf. FREUD, Totem e tabu, 1974a, p. 150). 142

FREUD, Totem e tabu, 1974a, p. 152. 143

Ibid., p. 152. 144

Ibid., p. 171-172. 145

FREUD, Totem e tabu, 1974a, p. 191. Ou como diz Lacan (O triunfo da religião, 2005c, p. 74-75): “Sou por São João e o seu ‘No começo era o Verbo’, mas esse é um começo enigmático.” Afinal, trata-se do “[...] Verbo, que, convém dizê-lo, os faz gozar [...] Para a análise, pelo menos, isso é verdade, no começo é o Verbo”.

É esse deslocamento, esse corte, que vai nos permitir sair do registro cronológico, para remeter o problema da lei a um ato sintomático inaugural que implica o sujeito; um puro ato discursivo que institui a relação do sujeito com o Outro e faz gozar146. Uma relação supereuóica, cujo impasse ético, para além do princípio do prazer, é condição da instituição da Lei — lei não redutível à sua internalização, como afirma Lacan147 — e de sua articulação com o desejo e a ex-sistência do gozo. Uma lei, portanto, que, se tem relação com o pai, quer

dizer, com o nome-do-pai148 — o “[...] pai como Nome, como pivô do discurso”149 —, é

porque importa uma função paterna, função mítica, no sentido de ficcional — constitutivamente ficcional150.

Não se trata, entretanto, de promover um deslocamento contra Freud, mas através de Freud e do estatuto peculiar da proibição em seu discurso — dos efeitos éticos e epistemológicos que essa sua noção de proibição suscita.

As seguintes citações freudianas nos servem de corte:

Por que, pode-se perguntar a essa altura, devemo-nos preocupar a tal ponto com esse enigma do tabu? Penso que não somente porque vale a pena tentar solucionar qualquer problema psicológico por ele mesmo, mas por outras razões também. Uma delas é ver que os tabus dos selvagens polinésios, afinal de contas, não se acham tão longe de nós como estivemos inclinados a pensar, a princípio; outra é que as proibições morais e as convenções pelas quais nos regemos podem ter uma relação fundamental com esses tabus primitivos e, finalmente, porque uma explicação do tabu pode lançar luz sobre a origem obscura de nosso próprio ‘imperativo categórico’.151

O ponto de concordância mais evidente e marcante entre as proibições obsessivas dos neuróticos e os tabus é que essas proibições são igualmente destituídas de motivo, sendo do mesmo modo misteriosas em suas origens [...] Não se faz necessária nenhuma ameaça externa de punição, pois há uma certeza interna, uma convicção moral, de que qualquer violação conduzirá à desgraça insuportável. O máximo que um paciente obsessivo pode dizer sobre esse ponto é que tem uma sensação indefinida de que determinada pessoa do seu ambiente será atingida como resultado da violação. Nada se sabe sobre a natureza do mal [...]152

As proibições obsessivas estão extremamente sujeitas ao deslocamento. Estendem-se de um objeto a outro por quaisquer caminhos que o contexto possa proporcionar e esse novo objeto então se torna, para empregar a expressão apropriada de uma de minhas pacientes: ‘impossível’ — até que finalmente o mundo inteiro jaz sob um embargo de ‘impossibilidade’.153

146

Ver referência a Lacan na nota supra. 147

LACAN, O seminário - livro 7, 1988, p. 371. 148

Ibid., p. 370. 149

LACAN, O seminário - livro 16, 2004, p. 142. 150

Remetemos ao que Lacan diz a respeito da teoria das ficções de Bentham (supra). 151

Cf. FREUD, Totem e tabu, 1974a, p. 42. 152

Ibid, p. 46-47. 153

A questão freudiana não está em estabelecer uma ética primitiva, originária, mas questionar a modernidade, o sujeito moderno, pelos efeitos primitivos, sintomáticos,

ilusórios154 que o constituem na sua relação com a lei. A interdição do incesto não

corresponde simplesmente a uma lei repressiva, com sentido na proibição, porque ela é correlata da criação de uma lei compulsiva155, insana, sem-sentido, ela mesma transgressora: “[...] o que encontramos na lei do incesto situa-se como tal no nível da relação inconsciente com das Ding, a Coisa.”156. Se Freud se reporta ao tabu, não é para retomar a ética de um tempo passado, de outra época, outro homem, outra sociedade. Não se trata de naturalizar as relações humanas e sociais, nem de moralizar o homem e a sociedade moderna, a partir de preceitos supostamente objetivos ou intemporais. Freud não pretende, com efeito, construir ou

aplicar uma doutrina universal157, senão fazer uso de uma metáfora, que aponte não

propriamente para o conteúdo ético, mas para os impasses decorrentes da posição do sujeito — posição discursiva do sujeito moderno.

A alusão ao imperativo categórico kantiano — que Freud associa ao supereu158 —

coloca, com efeito, o discurso ético freudiano no contexto da problemática moderna. Kant promove a ruptura com a antigüidade. Sua preocupação não é o que é bom para o indivíduo, para sua felicidade ou virtude. Existe uma cisão entre o bem-estar e o Bem. Este último não se reporta ao empírico, nem se dirige ao indivíduo mesmo, a seus hábitos ou à sua felicidade; ele não visa ao registro pessoal, mas ao que há de impessoal. A sua função é normativa: ele regula a ação do homem, colocando o problema da liberdade.

É o problema da liberdade — liberdade de um sujeito moderno, irredutível à suposição de uma natureza humana, ao estilo por exemplo aristotélico — que questiona Kant. Essa questão não é suscetível de ser respondida com a tradição metafísica, cuja perspectiva substancial, preocupada com “[...] as ações e condições do querer humano em geral [...]”, não se afasta da psicologia159.

Ora, a questão de Kant não é preconizar uma moralidade geral, que ele sabe impossível diante do mal-estar no laço social moderno — mal-estar das sociedades

154

Cf. FREUD, Psicologia de grupo e..., 1976f, p. 158, grifo do original. Isso pode ser reportado à problemática weberiana da impureza dos três tipos de dominação legítima, em sua incidência histórica, efetiva, atual (Cf. WEBER, Economía y sociedad I, 1974, p. 173 e ainda p. 43; 171). Consultar também o que Weber (A ética protestante..., 1983, p. 47 e 51) diz sobre a vocação irracional, enquanto constitutiva do capitalismo, da razão capitalista; o que aponta, aliás, para uma posição de gozo do sujeito — sujeito moderno —, uma posição de objeto.

155

Cf. FREUD, O mal-estar na civilização, 1974h, p. 113; O ego e o id, 1976g, p. 49. 156

LACAN, O seminário - livro 7, 1988, p. 87. 157

Afinal, como vimos, ele não aceita o lugar deprofeta (Cf. FREUD, O mal-estar na civilização, 1974h, p. 170). 158

Cf. FREUD, O ego e o id, 1976g, p. 49; 64. 159

industrializadas160. O projeto de Kant não é o de moralizar, nem de estabelecer regras gerais, por meio de um direito empírico — o direito positivo, a legalidade positiva, na terminologia de Lacan —, mas, ao contrário, fundar o registro da regra universal, ao fundamentar a moral em bases racionais — uma pura razão prática161.

A Razão, enquanto razão a priori, é a condição da moral. Se em Freud, como vimos, a diferença entre o bem e o mal depende de um ajuizamento, em Kant a situação é correlata, ou seja, “[...] o conceito do bem (Guten) e do mal (Bösen) não deve ser determinado antes da lei moral (à qual, segundo a aparência, ele deveria servir de fundamento), mas somente como ocorre aqui, após essa lei e através dela”162.

Se, como diz Lacan, o princípio do prazer funciona como a lei do bem, quer dizer, do wohl, do bem-estar; é em outro registro, mais além do princípio do prazer, que deve ser situado o bem (das Gute), enquanto objeto da lei moral. Um bem que é suposto como o Bem, na medida em que independe do interesse do sujeito pelos bens incertos; independe de qualquer objeto ligado ao patológico, no sentido kantiano. É dessa maneira que ele é fundante do imperativo, como imperativo categórico, incondicional, que nos faz ouvir ordens, tão familiares quanto estranhas, dentro de nós163.

O imperativo kantiano não se sustenta, aliás, no valor de seu enunciado moral, mas na sua enunciação, ou seja, no puro f-ato de se instituir como lei, que vale não pelo seu conteúdo, mas simplesmente porque diz e vincula o agir do sujeito a um puro dever — um sujeito que se faz normal (como o mostram os funcionários que repetem... o comportamento de Eichmann164). É por isso que a voz imperativa — a voz da consciência moral, a voz do supereu — é uma voz sem reciprocidade ou sentido. Uma voz incondicional e categórica, que não se fundamenta senão nela mesma.

A pergunta freudiana pela origem da lei leva por isso mesmo à perplexidade165. Ela é a própria origem, sem motivação e fundamento — ela é sem-fundamento. Ela faz do sujeito moral um sujeito onipotente: ele é o legislador. Mas essa onipotência, já pelo seu estatuto