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A Tolerância no contexto da Razão versus Crítica

A consternação acerca da prática da guerra levava aqueles intelectuais, que não buscavam simplesmente entender a violência humana, a refletir profundamente sobre as coisas e razões pelas quais um homem era capaz de cometer ou de impingir tamanho suplício ao outro. Podemos elencar dois ápices da segunda guerra, que estão sem dúvida, diretamente ligadas à ideia de razão instrumental. O primeiro são os campos de concentração, concebidos como fazendas da morte bem organizadas, nos quais a taxa de sucesso naquilo que se propunha era resultado de uma lógica fabril e uma administração cuja meta era a máxima produção. A segunda experiência, deu-se no lançamento da bomba Little boy, de um boing B29, às 8:15 h

da manhã do dia 06 de agosto de 1945. O que se viu ali foi uma descoberta cientifica extraordinária, que se submeteu sem nenhuma reflexão a uma política de estado e interesses econômicos.

Ora, como podemos admitir tais ações de uma humanidade que se diz esclarecida? Como podemos explicar tamanha intolerância entre os povos? A dialética do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, enfrenta esta reflexão e mostra que nesse caso “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 5). Nesse sentido “a crítica aí feita ao esclarecimento deve preparar um conceito positivo de esclarecimento, que o solte do emaranhado que o prende a uma dominação cega”. (ibid., p. 5). A relação entre esclarecimento e mitologia dá-se no sentido de que Adorno e Horkheimer localizaram na construção do saber mitológico uma fonte fundamental de conhecimento, portanto, de visão de mundo e convencimento.

Esta relação pode ser entendida também na ideia e produção simbólica, que na linguagem de Cassirer (1975, p. 163), “há de se entender aqui toda energia do espírito em cuja virtude um conteúdo espiritual de significado é vinculado a um signo sensível concreto e lhe é atribuído interiormente”. O que está definido como “forma simbólica” são formas particulares de manifestação da linguagem, da arte e de um mundo mítico-religioso. A contribuição de Cassirer nos faz pensar que a grande característica do mito é que se perdeu sobre ele qualquer notícia que seja acerca de sua origem. Não há como fazermos nem remontarmos uma história do mito, porque esse conhecimento é por ele mesmo o seu fundamento.

Nesse sentido, formaram-se as experiências coletivas a que a humanidade se sujeitou, não reconhecendo mais uma subjetividade para esse tipo de formação de sentido do mundo. Os homens agem e vivem como se não fossem eles mesmos os criadores dessas histórias. Daí o mito atingir um status de verdade social, e penetrar de forma profunda nos valores de uma determinada cultura. Essa construção mitológica constitui-se como o habitus que conduz as ações humanas na sua vida cotidiana, podendo configurar-se em um perigo que represente uma forma de reflexão estática, geradora de uma moral naturalizada e que perde qualquer possibilidade da reflexão obter a sua origem. Neste ponto do esclarecimento, o próprio sujeito esclarecido percebe em si os valores mais altos da civilização, e toma para si que a cruzada da razão deve ser uma atitude missionária.

Adorno e Horkheimer (1985, p. 3) explicam que

a causa da recaída do esclarecimento na mitologia não deve ser buscada tanto nas mitologias nacionalistas, pagãs, e em outras mitologias modernas especificamente idealizadas, em vista desta recaída, mas no próprio esclarecimento paralisado pelo temor da verdade.

O que podemos deduzir deste ponto é que uma ação particular neste caso, uma intolerância expressa através de um preconceito, não tem sua explicação apenas naquele micro contexto no qual os atores estão inseridos, aquela determinada ação individual, seja um xingamento, ou uma pichação que liga alguém a termos injuriosos. Mas tem obviamente suas razões localizadas, ligadas a um contexto social particular e específico, e que em que nenhum momento podem ser descoladas da totalidade, e de uma maneira global pela qual compreendemos os valores que deflagram uma certa concepção de humanidade.

No caso do contexto da dialética do esclarecimento, não é possível, por exemplo, compreendermos o nazismo sem investigarmos as razões do capitalismo. O Partido Nacional Socialista foi evidentemente, um fenômeno exclusivamente alemão. No entanto, suas práticas propuseram ações principalmente àquelas ligadas a um conceito de raça que tem consequência em toda a humanidade. Da mesma forma, podemos pensar no sistema do capitalismo, como aquele que propõe uma sociedade na qual os indivíduos tenham sobretudo o lucro. No entanto, para que alguém lucre, outros tantos devem perder, e outros mais devem ser explorados, e até mesmo exterminados.

As razões que determinam um conceito ou uma ideia de humanidade por trás destas duas lógicas de sociabilidade, seja do nacional socialismo ou do sistema de capitalismo, e que em algum momento têm o seu cruzamento ideológico e histórico, não podem ser compreendidas separadamente. E na medida em que estas múltiplas razões e explicações se tornam cada vez naturalizadas, se diluem no emaranhado de fatos históricos e perdem o seu sentido ideologizante, tomam proporções míticas, e assumem o lugar da verdade de forma extremamente perigosa.

O ápice de uma razão que atinge o status de verdade absoluta (substituindo a religião), investida de uma verdade científica e alcança a força do mito, é um

paradoxo: porque torna-se uma razão que pensa sobre tudo, exceto, sobre si mesma. Um dos sintomas deste desvirtuamento do esclarecimento e do absolutismo da razão é a razão instrumental, dado que,

o esclarecimento consiste aí (indústria cultural), sobretudo, no cálculo da eficácia e na técnica de produção e difusão. Em conformidade com seu verdadeiro conteúdo, a ideologia se esgota na idolatria daquilo que existe e do poder pelo qual a técnica é controlada. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 4).

Esta razão instrumentalizada em nome do sucesso e da finalidade da lógica produtivista permite uma ruptura entre o sujeito ético e moral, entre o cidadão e o homem, entre a natureza e a cultura, e sobretudo, entre o indivíduo e a comunidade. Podemos sintetizar a questão da tolerância com o nosso problema em estar na presença do Outro. Nossas ações e pensamentos são levados ao limite na medida em que o outro aparece diante de nós. Mas o que esse Outro representa? Bauman (2011, p. 41) constata que “estar na presença do Outro também possui um lado obscuro. O Outro pode ser uma promessa, mas é também uma ameaça. Ele ou ela pode despertar tanto desprezo quanto respeito, temor ou reverência”. Orbitando em torno deste enigma que se apresenta como o Outro, se ele será de fato por nós acolhido ou expulso, Bauman termina por indagar “[...] a grande questão é: qual dos dois é mais passível de acontecer?”. (ibid, p. 41). Bauman aqui se utiliza do conceito do Outro de Lévinas ao escrever que “um indivíduo é outro para outro. A alteridade formal: um não é o outro, seja qual for o seu conteúdo. Cada um é outro para cada um”. (LÉVINAS, 1997, p. 242).

A filosofia de Marcuse (1967) trata do homem a partir de uma visão unidimensional. Essa perspectiva, que anuncia uma noção de unidade, de pensamento único, de controle, se dá no meio dos aparatos de funcionamento da sociedade industrial. Em relação à sociedade unidimensional, Marcuse já alerta para os perigos de pensar o homem em uma dimensão única, esta situação leva a uma total falta de oposição, o que acarreta no controle absoluto do Estado sobre os indivíduos. O que surge como uma libertação do trabalho (o progresso tecnológico), e uma racionalidade da satisfação (Eros libertado) também aparece segundo ele, como uma espécie de ilusão da liberdade, em que a aparente facilidade e vida sem

esforço, proporcionadas pela tecnologia e a lógica da produtividade crescente, ocasionam a perpetuação do trabalho.

Nesse sentido, Marcuse (1967, p. 18) afirma que “nessa sociedade, o aparato produtivo tende a tornar-se totalitário no quanto determina não apenas as oscilações, habilidades e atitudes socialmente necessárias, mas também as necessidades e aspirações individuais”. O que está demonstrado nesse sentido, em acordo com a noção de sociedade de Marcuse, é que tanto as aspirações sociais quanto as motivações individuais (ambas compreendidas na perspectiva do Eros), têm o seu movimento de nascimento, fluxo e refluxo sempre controlados. Portanto, este controle social representa no fundo, uma determinada manipulação da nossa visão de mundo, que é sempre enquadrada a partir de um sistema pré-estabelecido de valores.

Marcuse articula de forma bem ordenada e lógica os processos e feitos tecnológicos com o avanço da racionalidade, a forma da produção das ideias, e finalmente, as consequências e usos políticos dessas novas conquistas da tecnologia. Por essa razão, ele afirma que “[...] a tecnologia serve para instruir formas novas mais eficazes e mais agradáveis de controle social e coesão social”. (MARCUSE, 1967, p. 18).

O autor formulará o seu conceito de “tolerância repressiva”, na medida em que um determinado ideal de tolerância é aceito de forma geral, manifestando-se de maneira formal e aberta na cultura do capitalismo industrial. “A tolerância do pensamento positivo é a tolerância imposta – não por qualquer entidade terrorista, mas pelo poder esmagador e anônimo da sociedade tecnológica. Como tal, ela permeia a consciência geral – e a consciência da crítica”. (ibid., p. 210). A questão é que por aceitar o conceito de tolerância, e as suas práticas dentro de limites pré- estabelecidos do pensamento considerado positivo, não há espaço de fato para emancipar ou tornar autônomos, e até mesmo de libertar as classes ou agrupamentos considerados mais explorados dentro do sistema.

Segundo Ferrater Mora (2001, p. 2881), “a tolerância tem a função de reprimir semelhantes impulsos e é, portanto, repressiva em vez de libertadora”. Percebemos que até certo ponto, as noções de racionalidade em Adorno, Horkheimer e Marcuse tem seu ponto de encontro na maneira como a razão se articula socialmente para

referendar e legitimar determinados comportamentos. Marcuse demonstra que a aparência de abertura da razão representa no fundo, a essência do seu fechamento.

Para explicar isso, podemos refletir que a prática da tolerância em nossa sociedade tem um limite bem definido, que é aceito por todos que participam desse círculo social; no entanto, o que Marcuse acusa sobre a questão da tolerância, é que esta, neste caso, como um produto final da racionalidade e de repressão do instinto, torna-se no fundo mais um elemento de repressão do Estado e do capital. Portanto, nesse sentido, a tolerância jamais seria de fato um meio pelo qual é possível transformar uma determinada sociedade, que realmente aceita, compreende e respeita as formas de ser e pensar de seus membros, independentemente de credo, política ou orientação sexual. Marcuse alinha duas palavras que até então se contrapunham: tolerância e repressão; o problema é que a tolerância se torna uma repressão velada, colocando os limites e possibilidades desta forma de agir em nossa sociedade.