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Violência e sensibilidade: O problema da banalidade do mal

4.1 Os limites entre a política e a violência

4.1.2 Violência e sensibilidade: O problema da banalidade do mal

O conceito de banalidade do mal surge durante o julgamento de Eichmann, como forma de explicar o estarrecimento diante da postura do soldado que por alguma razão, não consegue perceber o vinculo ético-político e suas implicações da função ou do posto de trabalho que ocupa. Essa incapacidade de reflexão atribuída a Eichmann, que o faz pensar somente na superfície dos fatos, e que em nenhum momento se mostra apto para reflexão das consequências de suas ações, revela um tipo de sensibilidade8 forjada no século XX, e que torna a imagem do mal muito fraca e até mesmo invisível.

Arendt explica que não tinha intenção em nenhum momento de levantar uma tese ou mesmo desenvolver uma doutrina sobre a banalidade do mal, no entanto, a presença diante de um homem tão comum e que ao mesmo tempo foi o protagonista de tamanha atrocidade a fez concluir que

Ele não era burro. Foi pura irreflexão – algo de maneira alguma idêntico à burrice – que o predispôs a se tornar um dos grandes criminosos desta época. E se isso é “banal” e até engraçado, se nem com a maior boa vontade do mundo se pode extrair qualquer profundidade diabólica ou demoníaca de Eichmann, isto está longe de se chamar lugar comum. (ARENDT, 1999, p. 311).

Eis o retrato da banalidade do mal encarnada, da qual Arendt exprime que, quando usa esse termo, faz referência a um “[...] nível estritamente factual, apontando o fenômeno que nos encarou de frente no julgamento” (1999, p. 172), pois existe algo terrível que esse julgamento havia demonstrado para a humanidade,

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Achamos conveniente trazer uma definição de sensibilidade. Para tanto, usamos o dicionário de filosofia de Abbagnano como uma notação que demonstra a complexidade do conceito. (1) “Esfera das operações sensíveis do homem, considerada em seu conjunto, o que inclui tanto o conhecimento sensível quanto os apetites, os instintos e as emoções. (2) Capacidade de receber sensações e de reagir aos estímulos. Por exemplo, a sensação dos vegetais. (3) capacidade de julgamento ou avaliação em determinado campo. Por exemplo, sensibilidade moral, sensibilidade artística, etc. (4) capacidade de compartilhar as emoções alheias ou de simpatizar. Nessa acepção, diz-se que é sensível quem se comove com os outros, e insensível quem se mantém indiferente às emoções alheias”. (p.872). Cabe ressaltar também uma das indicações do conceito de simpatia, no qual Abbagnano explica que “com o declínio da magia no mundo moderno, o significado de sensibilidade limitou-se a indicar a comunhão de emoções entre os indivíduos humanos.” (p. 901).

uma “lição da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos”. (ibid., p. 158). Tendo como um dos seus centros de investigação a questão da ação, e em especial, a ação politica9, e na sua diferença fundamental das ideias de labor e trabalho, Arendt procura na humanidade de Eichmann as razões que o levaram a desempenhar a sua tarefa.

A questão mais importante ao distinguir esta noção de ação enquanto ação política é demonstrar que toda atividade neste âmbito está marcada pelo seu aspecto de durabilidade no tempo. Para uma ação humana atingir esse status de permanecer no tempo, ela deve em sua natureza artificial se contrapor de forma direta à natureza e suas concepções biológicas. O exemplo dessa questão é a linguagem, que não sendo nem natural, nem biológica, é uma construção humana cuja finalidade, se bem usada, é a de administrar a igualdade e a diferença.

A redução da linguagem implica necessariamente na redução do pensamento. Esse é um dos diagnósticos apontados pelos autores do nosso século em especial, os pós-modernos. Em uma sociedade capitalista cujas relações são cada vez mais quantificadas, a linguagem do mercado, reduzida ao desejo do lucro, é cada vez mais comum. A fragmentação da vida levou-nos à fragmentação da política. Estas separações, que geram limites nos quais é possível separar, por exemplo, comportamentos éticos de comportamentos morais e religiosos, teve como consequência o nosso olhar fragmentado da própria realidade. A consequência mais nefasta desse processo é sem dúvida, a perda ou uma modificação da nossa sensibilidade.

A experiência com o mundo cuja relação é aquela que forma a nossa visão de mundo está dramaticamente reduzida, “a unidade visível de macrocosmo e microcosmo mostra aos homens o modelo de sua cultura: a falsa identidade do universal e do particular”. (ADORNO, 2002, p. 6). A consequência mais visível desta nova sensibilidade do sujeito pós-moderno é que “a diferenciação técnica e social e a extrema especialização deram lugar a um caos cultural (que) é cotidianamente desmentida pelos fatos. A cultura contemporânea à tudo confere um ar de semelhança. Filmes, rádios e semanários constituem um sistema”. (ibid, p. 5). Em conjunto com os dispositivos midiáticos ainda resiste uma falsa noção de globalidade e de integração entre todos.

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O limite desta capacidade de perceber a alteridade está seriamente comprometido pelo nosso modo de vida e pensamento atuais. Em grande medida, podemos afirmar que os nossos princípios éticos e morais determinantes da nossa sensibilidade, que é capaz ou não de perceber o sofrimento do outro, estão cada vez mais semelhantes ao modelo eichmanniano de ver o mundo.

Um dos argumentos mais sólidos que podemos utilizar para explicar de que forma anda a nossa percepção, se dá quando Benjamin (1980, p. 8) escreve que “a forma orgânica que é adotada pela sensibilidade humana – o meio na qual ela se realiza – não depende apenas da natureza, mas também da história”. Significa dizer a forma como são interpretadas ações e transformadas em verdade - uma verdade que quase sempre implica na aceitação dos fatos e manutenção do conservadorismo que se esconde atrás de uma dinâmica do mundo.

Podemos afirmar que Debarbieux (1990) considera o mundo sensível como a fonte única e mais segura para buscar uma explicação sobre a questão da violência. Por isso, ao assumir o fenômeno da violência como a manifestação da própria violência, ele mesmo revela que não podemos classificá-la como um amontoado de fatos, que podem ser ordenados de forma objetiva, e aos moldes de uma ciência clássica, serem observados por alguém de seu exterior. Desta forma, ele esclarece que “a violência de que nós falaremos é em primeiro lugar, violência sentida: ela não é necessariamente uma agressão dirigida voluntária ou inconsciente. A violência não é necessariamente o objeto, ela não pode ser sentida como tal senão por aquele que a sofre”10

. (DEBARBIEUX, 1990, p. 18, tradução nossa). Um ruído ou um volume muito altos são exemplos dessa violência sentida. Embora o responsável por tal excesso de barulho não tenha o objetivo de causar qualquer incômodo ao outro, ao ser insuportável para quem está ouvindo, torna-se uma violência sentida.

10 No original: “La violence dont nous parlerons est d‟abord violence resentie : ele n‟est pas

nécessairement agression dirigée, volontaire ou inconsciente. La violence n‟a pas forcément d‟objet : ele peut n‟être ressentie comme telle que par celui qui en souffre”.