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A violência no contexto da Economia das trocas simbólicas

Para justificar a razão pela qual alguns objetos adquiram mais valor que outros, e que um determinado grupo – geralmente aquele que tem maior poder simbólico – é quem determina o valor desses objetos, dando-lhes significados e símbolos, hierarquizando-os socialmente, e até mesmo definindo quais são dignos ou indignos de apreciação, Bourdieu (2005a) desenvolve o seu conceito de poder simbólico, fundamental para compreendermos a significação da ideia de violência simbólica. Recorrendo à história da arte, ele escreve que,

cada época organiza o conjunto das representações artísticas segundo um sistema de classificação dominante que lhe é peculiar, aproximando obras que outras épocas separavam e separando obras que outros períodos aproximavam, de modo que os indivíduos têm dificuldades em pensar outras diferenças além daquelas que o sistema de classificação disponível lhe permite pensar. (BOURDIEU, 2005a, p. 285).

Bourdieu tenta delinear historicamente como se deu a constituição social da vida intelectual e artística europeia. Durante toda Idade Média, e em todo o período clássico, a história da vida intelectual e artística europeia se manteve sob a tutela da aristocracia e da Igreja, bem como de suas demandas éticas e estéticas. A libertação dessa classe começou no Renascimento, e deu-se gradativamente, em meio a uma série de outras transformações, tais como o surgimento de um público consumidor mais extenso e socialmente mais diversificado; a formação de grupos de produtores e empresários de bens simbólicos cada vez mais diferenciado, e o aumento e a diversificação das instituições produtoras de conhecimento e bens simbólicos, que concorriam entre si pela legitimidade cultural, como por exemplo, a universidade e os museus, cujas operações de seleção eram investidas por uma legitimidade propriamente cultural.

Também contribuiu para o fortalecimento da autonomia da classe artística a progressiva racionalização do trabalho, que formaria um corpo de profissionais altamente especializados e “cada vez mais inclinados a levar em conta exclusivamente as regras firmadas pela tradição propriamente intelectual ou artística

herdada de seus predecessores [...], e cada vez mais propensos a liberar sua produção e seus produtos de toda e qualquer dependência social”. (BOURDIEU, 2005a, p. 100). Esse processo descrito anteriormente, através da consolidação dos bens simbólicos, resulta na constituição de um campo artístico relativamente autônomo, e também na elaboração simultânea de uma nova definição das funções do artista e da arte por ele criada.

Nesse mesmo período, ocorria o desenvolvimento de uma efetiva indústria cultural, e foi fundada a construção de uma relação entre a imprensa cotidiana e a literatura, que cada vez mais favorecia a produção em série de obras elaboradas segundo os métodos semi-industriais, cujo principal propósito era atender a crescente demanda do público, resultante da generalização do ensino elementar, assim como as mulheres que se mostravam grandes consumidoras de livros de romance, por exemplo, e do surgimento da classe média urbana assalariada, uma nova classe social que almejava o acesso ao consumo cultural.

Anteriormente havia uma dependência dos artistas em relação aos patrocinadores da sua arte, ou seja, a aristocracia e seus cânones estéticos, e os artistas só conseguiriam a aprovação desses senhores sujeitando suas criações ao seu gosto pelas formas difíceis e artificiais. Tanto o esoterismo, quanto o humanismo clássico, eram características próprias de um grupo empenhado em distinguir-se do vulgo em todas as suas práticas culturais.

Pensa-se então, que a partir de agora o artista terá autonomia para criar sua arte à sua maneira. No entanto, percebe-se que essa é uma concepção equivocada, pois, se por um lado existe uma ruptura dos vínculos de dependência em relação a um patrão ou um mecenas, por outro lado emerge a exigência de uma sujeição aos desejos de uma massa numerosa de compradores anônimos de ingressos de teatro ou de concerto, de livros ou quadros. Agora o artista da indústria cultural percebe-se submisso às leis do mercado de bens simbólicos, e pressionado pelos índices de venda e por pressões explícitas ou difusas, dos detentores dos instrumentos de difusão, editores, diretores de teatro, e etc.

A constituição do mercado da obra de arte é o cenário ideal para que os escritores e artistas consigam legitimar a diferenciação simbólica de seus bens. Segundo Bourdieu (2005a, p. 103),

a constituição da obra de arte como mercadoria e a aparição, devido aos progressos da divisão do trabalho, de uma categoria particular de produtores de bens simbólicos especificamente destinados ao mercado, propiciaram condições favoráveis a uma teoria pura da arte – da arte enquanto tal -, instaurando uma dissociação entre a arte como simples mercadoria e a arte como pura significação, cisão produzida por uma intenção meramente simbólica e destinada à apropriação simbólica, isto é, a fruição desinteressada e irredutível à mera posse material.

Dessa forma, ao contrário do sistema da indústria cultural que obedece à lei da concorrência para a conquista do maior mercado possível, o campo erudito elabora suas normas de produção e os critérios de avaliação de seus produtos, e obedece à lei fundamental da concorrência pelo reconhecimento propriamente cultural concedido por seu grupo de pares. Nesse sentido, não há produção em outros círculos senão naquele à que se pertence, e tudo o que for produzido é endereçado àqueles que fazem parte da mesma estrutura identitária que o artista.

Bourdieu (2005a) salienta também, que o campo de produção erudita somente se constitui como sistema de produção que sempre funciona de forma objetiva, apenas para os produtores, por meio da ruptura com o público dos não- produtores, assim a constituição do campo enquanto tal é correlata ao processo de fechamento em si mesmo. Desse modo, o grau de autonomia de um campo de produção erudita é feito com base no poder que esse dispõe para definir suas normas de produção, os critérios de avaliação de seus produtos e, portanto, para retraduzir e reinterpretar todas as determinações externas de acordo com seus princípios próprios de funcionamento. Ou seja, quanto mais o campo estiver em condições de funcionar como a arena fechada de uma concorrência pela legitimidade cultural, mais autônomo este será.

Na busca dessa autonomia e diferenciação da arte erudita, afirma-se o primado da maneira de dizer sobre a coisa dita, da maneira de abordar o assunto sobre o assunto em si mesmo, forçando a linguagem para impor a atenção à linguagem. “O verdadeiro tema da obra de arte é a maneira propriamente artística de apreender o mundo”. (BOURDIEU, 2005a, p. 111). A produção artística tem como produto final a obra de arte, que por sua vez, se constitui em um bem simbólico na

dinâmica de sua construção e sua manutenção na existência, forjando a partir de seus membros um novo conjunto de regras e normas.

Essas leis internas, que são universais no entendimento de um grupo particular, resultam na normatização e formalização de um determinado tipo de produção com o intuito de atribuir-lhe identidade. A arte assim, no exemplo anteriormente citado, estabelece os seus próprios critérios de validação, fechando- se para qualquer tipo de análise, crítica ou influência que seja externa de si. Quando o processo é finalmente alcançado, a legitimidade destas leis internas são capazes de se constituírem em valores morais, estéticos, éticos e políticos. E representam a maneira pela qual os indivíduos envolvidos nesse sistema, percebem o mundo.

O escritor, o artista e até mesmo o erudito, não produzem apenas para um público, mas para um público de pares que também são seus concorrentes. “Afora os artistas e os intelectuais, poucos agentes sociais dependem tanto, no que são e no que fazem, da imagem que têm de si próprios e da imagem que os outros e, em particular, os outros escritores e artistas, têm deles e do que eles fazem”. (BOURDIEU, 2005a, p. 108). Essa produção voltada para os pares não é exclusiva do campo artístico, uma vez que no campo acadêmico o trabalho dos pesquisadores também depende sistematicamente da avaliação de seus pares.

Além disso, o sistema de ensino também demonstra em seu campo de atuação o intuito de manter o controle exclusivo da

consagração das obras do passado, da produção e consagração (pelo diploma) dos consumidores culturais mais adequados, somente

post mortem e após uma longa série de provas e experiências pode

conceder o signo infalível de consagração que consiste na conversão das obras em „clássicos‟ pela inserção nos programas. (BOURDIEU, 2005a, p. 122).

Como as obras produzidas pelo campo de produção erudita são consideradas “obras „puras‟, „abstratas‟ e „esotéricas‟” (ibid., p. 116), elas acabam se tornando acessíveis apenas aos detentores do conhecimento do manejo prático ou teórico de um conjunto refinado de técnicas. Isso contribui para o exercício da

sua função de distinção social, da raridade dos instrumentos destinados a seu deciframento, vale dizer, da distribuição desigual das condições de aquisição da disposição propriamente estética que exigem e do código necessário à decodificação (por exemplo, através do acesso às instituições escolares especialmente organizadas com o fim de inculcá-la), e também das disposições para adquirir tal código (por exemplo, fazer parte de uma família cultivada). (BOURDIEU, 2005a, p. 116-117).

Esse comportamento aparentemente „natural‟ configura-se como uma das formas de violência simbólica, pois trata-se de um sistema de exclusão extremamente sofisticado que ocorre no seio da escola, mais precisamente, dentro da sala de aula, uma vez que os estudantes oriundos de famílias desprovidas do capital cultural eleito como adequado para um melhor desempenho social “apresentarão uma relação com as obras de cultura veiculadas pela escola que tende a ser interessada, laboriosa, tensa, esforçada”. (NOGUEIRA; CATANI, 2012, p. 9).

Por outro lado, seus colegas de classe, que advém dos meios culturalmente privilegiados, e que geralmente são os mesmos meios de que se originam seus professores, têm uma dupla vantagem: sua relação com as obras da cultura é marcada pelo diletantismo, pela desenvoltura, pela elegância, e pela facilidade verbal “natural”, já que há uma herança cultural distinta, originada na família e na sua condição social privilegiada. Ao ter sua origem social mais próxima com a do professor, a linguagem desses dois grupos também se estreita, estabelecendo-se uma troca simbólica mais volumosa e significativa. “Ocorre que, ao avaliar o desempenho dos alunos, a escola leva em conta sobretudo – consciente ou inconscientemente – esse modo de aquisição (e uso) do saber ou, em outras palavras, essa relação com o saber”. (NOGUEIRA; CATANI, 2012, p. 9).

O professor tem um importante papel dentro do sistema escolar. Sua prática, seja pelos discursos que utiliza em sala de aula, ou pelos conteúdos que considera mais adequado aos alunos, no fundo, promove uma distinção entre os mais diversos grupos em acordo com o seu capital cultural. Agindo como um transmissor ou reprodutor dos conteúdos atrelados à grade curricular, o docente torna-se um legítimo e eficaz representante do sistema de dominação, que por sua vez, embasa o sistema escolar. Seu papel consiste em adequar os mais diversos grupos às suas condições sociais de origem, naturalizando as relações sociais e adequando cada

indivíduo ao seu capital cultural. Ressaltamos que para Bourdieu, essas relações e as consequências psicológicas e políticas que derivam delas, constituem uma gama importante de ações e posturas que são reproduzidas de forma inconsciente e até mesmo irrefletida pelos docentes em atuação no sistema escolar. Desta maneira, podemos supor que,

o sistema de ensino contribui para manter a defasagem entre a cultura produzida pelo campo intelectual e a cultura escolar, „banalizada‟ e racionalizada pelas e para as necessidades da inculcação, isto é, entre os esquemas de percepção e de apreciação exigidos pelos novos produtos culturais e os esquemas efetivamente manejados a cada momento pelo „público cultivado‟. (BOURDIEU, 2005a, p. 123).

A escola cumpre com sucesso e efetividade o seu papel de adequar os indivíduos ao mundo. No entanto, este movimento que deveria ressaltar e apontar as diferenças enormes entre as condições sócio-políticas e culturais das mais variadas classes sociais, de certa forma, oculta esta distinção, e além disso, consegue promover uma aceitação generalizada e pacífica dos sujeitos em seu processo de formação educativo e cultural.

O público cultivado, como aponta Bourdieu, foi submetido inteiramente ao processo de educação e inculcação, internalizou as regras morais vigentes, submeteu-se aos limites éticos, e torna-se definitivamente apto a se converter em um representante do seu capital cultural. Sua forma de ação no tecido social e sua concepção de mundo, estão restritas agora ao universo das trocas simbólicas e determinadas pelo seu capital cultural.

Ainda segundo Bourdieu, a arte média não consegue impor sua autonomia porque está a todo tempo fazendo referência à arte erudita, por exemplo, obras clássicas que vão para o cinema, ou por meio de materiais comerciais como as revistas, que se dizem científicos. O público mediano adquire esses bens, afirmando que os mesmos são acessíveis, porém legítimos, culturalmente. Para o autor, essa é uma espécie de tentativa de adquirir um produto original, pagando o preço de um genérico. E os membros das classes em ascensão mostram interesse ávido em estar inseridos na cultura erudita, demonstrando isso através do gosto, pelos valores considerados “seguros que definem “a arte de marca”. Esses grupos, por não

conhecerem as leis de legitimação cultural, não podem ousar inovar, e encontram-se inclinados ao conformismo e ao conservadorismo estéticos.

Bourdieu escreve sobre os artistas que se opõem efetivamente à arte burguesa, produzindo um discurso socialmente utópico, no qual defendem o exercício de uma arte pela arte, apresentando um projeto de escrever que se recusa a qualquer função social, ou seja, qualquer conteúdo socialmente marcado. Para afirmar no âmbito simbólico seu domínio exclusivo sobre sua arte e para reivindicar o “monopólio absoluto da competência propriamente artística”, a intenção desses artistas não é criar uma arte assim tão desinteressada. O que eles almejam de fato é o reconhecimento da originalidade de suas criações, envolvendo-se assim em processos de concorrência pela raridade e valor estético do produto e do produtor.

Já que esses códigos são adquiridos pelo convívio com as obras produzidas anteriormente, os artistas da „arte pela arte‟ se submetem a uma remuneração adiada, diferentemente dos artistas considerados burgueses, cujo mercado está sempre assegurado. Sobre esses artistas membros da escola da arte pela arte, Bourdieu levanta uma pesquisa interessante que mostra que a maioria deles são originários de família de grandes médicos ou pequenos nobres da província, e quase todos realizaram estudos de Direito. Enquanto que os “artistas burgueses” pareciam originários, em sua maioria, da burguesia econômica e não da burguesia intelectual. Enfim, por causa de seu habitus de classe, esses produtores da arte pela arte podiam “se dar ao luxo” de criar desinteressadamente, e esperar que algum dia fossem remunerados material e simbolicamente.

A questão da obra de arte, e da produção artística em Bourdieu é um ensejo importante do autor para desenvolver seus conceitos de habitus, troca simbólica e capital cultural. Pois é exatamente na distinção entre duas ou mais culturas, e na busca de afirmação e superioridade de um sistema cultural sobre outro, que o capital cultural é forjado. A transmissão da cultura dominante através das inúmeras instituições legitimadas pela sociedade torna-se então, a violência simbólica.

ao designar e ao consagrar certos objetos como dignos de serem admirados e degustados, algumas instâncias como a família e a escola são investidas de poder delegado de impor um arbitrário cultural[...], estão em condições de impor uma aprendizagem ao fim

da qual tais obras poderão surgir como naturalmente dignas de serem admiradas ou degustadas. (BOURDIEU, 2005, p. 272).

Todos os sistemas de ensino têm a lógica característica de assegurar uma função de reprodução cultural, assumindo assim, uma função de reprodução social. Na teoria da história da arte universitária há a autonomia absoluta da obra de arte. A competência lingüística e cultural e a relação de intimidade com a cultura e a linguagem são instrumentos que somente a educação familiar pode produzir quando transmite a cultura dominante. Eis as leis do mercado escolar: Desde o ingresso no ensino secundário até as universidades, a hierarquia dos estabelecimentos escolares e entre os cursos corresponde à estrutura social de seu público e sancionam o valor escolar e o rendimento social dos títulos escolares. “O sistema escolar cumpre uma função de legitimação cada vez mais necessária à perpetuação da „ordem social‟, e „a transmissão do capital cultural‟ tende a substituir-se pura e simplesmente à transmissão do capital econômico e da propriedade”. (BOURDIEU, 2005a, p. 311).

Bourdieu (2005a) nomeia a escola como uma “força formadora de hábitos”, e consolidadora do habitus, equiparando o conceito de cultura ao de capital, pois considera que

em uma sociedade em que a transmissão da cultura é monopolizada por uma escola, as afinidades profundas que unem as obras humanas (e, evidentemente as condutas e os pensamentos) têm seu princípio na instituição escolar investida da função de transmitir conscientemente e em certa medida inconscientemente ou, de modo mais preciso, de produzir indivíduos dotados do sistema de esquemas inconscientes (ou profundamente internalizados), o qual constitui sua cultura, ou melhor, seu habitus, ou seja, em suma, de transformar a herança coletiva em inconsciente individual e comum: relacionar as obras de uma época com as práticas da escola, é um dos meios de explicar, não só o que elas proclamam, mas também o que elas traem, pelo fato de participarem da simbólica de uma época e de uma sociedade. (BOURDIEU, 2005a, p. 346).

Bourdieu (2005a) deixa clara a forma como os valores econômicos e de mercado se transformam sumariamente em valores morais, e têm na escola a sua propagação e sua legitimação. Esta passagem de um bem para outro – troca simbólica – e que vai constituir neste movimento que compreendemos como

violência simbólica propõe que cada indivíduo ocupe um lugar e uma função que lhe são destinados em acordo com o seu topus e pathos. O local de nascimento e as condições sociais buscam se legitimar através de uma educação promovida pela instituição escolar, que por sua vez tem a função de adaptação do homem às suas condições espirituais e materiais vigentes. No momento em que cada sujeito aceita de bom grado a condição de seu estabelecimento social, estão formadas e mantidas as condições pelas quais o poder de dominação continua a existir desta ou daquela maneira.

A compreensão das trocas simbólicas, dessas passagens de valores e de visões do mundo, de uma esfera social para outra, é fundamental para o entendimento dos mecanismos que operam como violência simbólica. E a escola, aceita no senso comum como uma instituição necessária para a formação humana, cumpre sua função fundamental de manter pacificada as relações de classe, e ainda, cada sujeito na forma como este pode agir no mundo. As mudanças e reviravoltas sociais, sofrem senão um sufocamento, pelo menos são apaziguadas e controladas dentro de um movimento capaz de garantir as relações sociais e de dominação vigentes. Porque a escola se transforma na transmissora da “melhor e verdadeira” cultura, a cultura imposta pela classe dominante, transformando-a como a única aceita socialmente.