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1. Cidade e literatura

1.4. Cidade e modernidade

1.4.5. A Torre de Babel: caleidoscópio urbano

A tradição iconográfica referente à Torre de Babel mostra uma torre nivelada, muito parecida com as estruturas dantescas do Inferno e do Paraíso. O próprio Inferno foi considerado, em Tratado sobre Dante (1933) de Osip Mandelstam, um cume dos ideais urbanos dum homem medieval. Neste sentido, a torre babélica pode promover a ideia de se tratar tanto de um projeto paradisíaco, como infernal, ou seja, a sua construção orientada para as alturas espelha-se na sua profundidade abismal, ganhando o projeto utópico um caráter do seu reverso, de distopia. É precisamente esta reversibilidade que imprime ao mito babélico uma certa ambiguidade e fraca legibilidade. Um exemplo literário que exemplarmente ilustra esta impossibilidade de discernir o paraíso do inferno pode ser encontrado no romance Korrektur (1975) de Thomas Bernhard, em que o protagonista constrói uma casa original para a sua irmã amada, a casa em forma de um cone que claramente lembra o desenho do Inferno dantesco. Talvez por esta mesma semelhança, a irmã, após a entrada na “casa”, morre. Estas coordenadas de intróito apontam definitivamente para a multiplicidade de sentidos com os quais o mito da Torre de Babel pode revestir-se, uma vez que o próprio caráter arquitetónico do projeto babélico – a torre – se assume como um elemento iniciático, esotérico, de significado oculto. Com efeito, não é por acaso que a torre figura, nas cartas de tarot, como um dos arcanos, o de XVI, pois trata-se de uma

77 construção que, imitando a árvore no mundo da natureza, se alça da terra às alturas, numa tentativa imaginária de ligar os dois planos, o terreste e o celeste numa simbiose e plenitude cosmológica, universal. E, no que diz respeito ao “código” terrestre e biológico, a torre alçada é, por sua verticalidade, uma evidente metáfora fálica, à luz da qual o mito babélico, com o seu processo de crescimento e queda, simula o próprio ato biológico, dir-se-ia genesíaco, da criação de vida. Para além disso, uma das leituras fundamentais deste mito cinge-se precisamente ao simbolismo da cidade e, em especial, da cidade moderna. Uma breve abordagem do mito de Babel como uma forma simbólica da cidade torna-se assim incontornável para qualquer reflexão sobre o imaginário urbano.

Em geral, a Babel (tal como Babilónia, Sodoma e Gomorra) estimula a leitura da cidade (e, por extensão, da modernidade e da civilização) como um lugar maldito, condenado e, juntamente com a simbologia das cidades bíblicas malditas, corresponde talvez a uma linha de imaginação urbana mais antiga e, simultaneamente, mais recente, projetando-se ainda para o futuro, o que as atuais imagens apocalípticas testemunham.49 Trata-se, simplesmente, de uma luta eterna entre a Utopia e Distopia, entre as cidades de Thomas More (Utopia), Fourier (Le Phalanstère) ou Campanella (Cidade de Sol) e as de Verhaeren (Les villes tentaculaires), Maupassant (Paris de “La nuit. Cauchemar”), Kafka (Praga de O processo), Raul Brandão (a Vila de Húmus), Saramago (a cidade de cegos em Ensaio sobre a cegueira), Fritz Leiber (Chicago de “Smoke Ghost”), Dick/ Ridley Scott (Los Angeles de Blade Runner), Teresa Veiga (Sáfara de “Cuidado com as algas verdes”) etc.. Os exemplos, em que as cidades imaginárias utópicas e distópicas, coexistem com as cidades reais de mesma maneira “imaginárias”, seriam inúmeros. E sem contar certas épocas de exaltação positiva/vitalista do urbano, como aconteceu sobretudo no modernismo futurista, a imaginação distópica parece, em concordância com a profecia bíblica, prevalecer. É o que se verifica no famoso filme Metropolis (1927) de Fritz Lang, em que a distopia é suportada visualmente pelo mito de Babel, o qual ainda entra em diálogo com outros mitos de “criação”, o de Pigmalião e o de Frankenstein, Prometeu moderno. Com efeito, a afinidade entre a criação da torre de Babel e da Criatura de Frankenstein é bem evidente: a confiança num projeto utópico reveste-se cedo do seu negativo, acabando com a destruição da obra como a única possibilidade atribuída ao ser humano. Curiosamente, também

49 Também Fernando Aínsa refere-se, no seu trabalho geopoético, a várias obras da literatura latinoamericana, nas quais é possível detetar a ameaça “babilónica” ou “apocalíptica”: Facundo (1845) de Sarmiento (com “Buenos Aires, la Babilonia americana”), Las puertas de Babel (1920) de Héctor Pedro Blomberg, La casa por dentro (1921) de Juan Palazzo, Historia de una pasión argentina (1937) e La bahía del silencio (1940) de Eduardo Mallea,

Los siete locos (1929) ou Los lanzallamas (1931) de Roberto Arlt, Sobre héroes y tumbas (1961) de Ernesto Sábato

78 as cidades que se pretendem mostrar como ideiais, utópicas podem na verdade representar o contrário, tal como acontece no romance Nós (escrito 1920-21, publicado 1924) de Zamiatin, em que a cidade, inspirada nos projetos iluministas, com as suas ruas em forma de linhas regulares, o largo de Cubo e o metro composto de 66 círculos concêntricos, assume o caráter de um espaço demoníaco, infernal. Neste caso, trata-se evidentemente de uma imagem da sociedade controlada, totalitária, manipulada. Os anos 30 desenvolvem este espírito anti-utópico. É nesses anos, também, que saem outros títulos com esta problemática, em especial Brave New World (1931) de Aldous Huxley e Anthem (1938) de Ayn Rand. Concluindo, as cidades-projeto, cidades demasiado “civilizadas”, como diz Hodrová, são também essencialmente desumanas, porque todas as irregularidades naturais são eliminadas, “corrigidas” (Hodrová, 2006, p. 73). Por isso, as cidades consideradas “racionais” são, de facto, “loucas”, como todas as cidades criadas no traçado geométrico e, dir-se-ia, contra a vontade da natureza (Hodrová, 2006, p. 73).

Em termos do imaginário urbano moderno, trata-se então, como sustenta Renato Cordeiro Gomes, de uma “crítica da urbanidade mecânica, da rapidez, do gigantismo crescente” (Gomes, 2008, p. 88), cuja monstruosidade afeta o bem-estar e estilo de vida da população, cada vez mais limitada na sua privacidade, anónima e auto-aniquilada. Os seus habitantes acabam por se assemelhar a “dispersos átomos isolados na multidão e na massa indistinta” (Gomes, 2008, p. 88). Por outras palavras, o projeto civilizacional utópico, assente na ideia de progresso, acaba por falir e, em vez de união, conduz a uma cada vez maior dispersão e atomização. Assim se põe em causa, portanto, é o próprio conceito de progresso. Várias vezes, esta ideia de “progresso” surge incumbida de uma dimensão espiritual. Este facto evidencia-se, como já foi observado por La Salette Loureiro, no pensamento de Baudelaire. Primeiro, Baudelaire tende a avaliar o projeto de civilização à base da eficiência do pecado original: “Théorie de la vraie civilisation. Elle nʼest pas dans le gaz, ni dans le vapeur, ni dans les tables tournantes, elle est dans la diminution des traces du péché originel.” (Baudelaire apud Loureiro, p. 45). Apesar disso, Baudelaire não eliminou o simbolismo do pecado original porque percebeu, em sintonia com os ideários de então e os do porvir, que o progresso tinha a face de Janus e que as suas glórias encerram em si o gérmen de (auto-)destruição. O apogeu extático é, nesta ordem de ideias, sempre seguido pela queda, tal como o orgasmo sexual se converte em imobilidade (“le petit mort”) e tal como a Torre de Babel acaba por ser destruída. Para explicar melhor esta ideia de progresso, Baudelaire invoca a imagem do escorpião, recordada também por La Salette Loureiro: “Je laisse de côté la question (...) si, enfermé dans le cercle de feu de la logique divine, il ne ressemblerait pas au scorpion qui se perce lui-même avec sa terrible

79 queue, cet éternel desideratum qui fait son éternel desespoir” (Baudelaire apud Loureiro, p. 45).50 A fé no progresso tipicamente modernista, testemunhada por vários projetos futuristas, revela-se, portanto, muito problemática, sobretudo a partir da perspetiva atual, ou pelo menos, desde a experiência do nazismo e totalitarismo. A este respeito, Bernard Westphal diz o seguinte:

If the gradual and progressive river of time led to Auschwitz, Mauthausen, Stutthof, or Jasenovac, sites of the abomination that drained the color off the map of Europe, or if that same river of time led to Hiroshima and Nagasaki and also to Dresden, where fire-bombing transformed a city into a lunar landscape, then it is better to dam the river entirely. The stream of time had allowed an unwelcome guest: perverse progress. (Westphal, 2015, p. 12)

É este “progresso perverso”, causa de um colapso da missão civilizacional,51 que se desenha no simbolismo babélico e que está intimamente vinculado a um poder que tal progresso pretende dirigir ou impor. Nem sequer é necessário recordar aqui os abusos a que tal ideia da missão de progresso levou na história, inclusive na história portuguesa. Visto de perto no caso da problemática urbana, Lewis Mumford já apontou, em The city in history (1961), para o conceito de cidade invisível que é em tudo diferente da concepção de Calvino. Aqui, a cidade moderna adquire o atributo de invisível devido à “desmaterialização das instituições existentes” e devido à abertura do mundo urbano tanto à superfície (esfera do visível), como no interior, por ser “penetrado pelos raios e emanações invisíveis, respondendo aos estímulos e forças abaixo do limiar da observação habitual” (Mumford apud Gomes, 2008, p. 86). Essas forças são invisíveis, é um poder controlador e autoritário, de cuja presença poucos se apercebem. Nalguns casos, tal civilização como a suposta plasmação do progresso, pode ser simbolizada por um motivo concreto, como é um edifício, construção humana por excelência e sinédoque da cidade. Por exemplo no romance O barroco tropical (2009), do escritor angolano José Eduardo Agualusa, apresenta-se o tópico do prédio futurista e hipermoderno, de muitos andares, imagem de progresso que claramente reenvia para o símbolo da Torre de Babel. A sua

50 Renato Cordeiro Gomes recorda, a este respeito, a parábola de Kafka “O emblema da cidade” (1920), em que “a Torre dramatiza a promessa de um futuro glorioso” (...) e cujo “crescimento desmesurado pode liberar as forças destrutoras” (Gomes, 2008, pp. 95-96). Tratando-se de uma referência inovadora, feita por Kafka, ao emblema da cidade de Praga, Gomes opina que “Kafka quis simbolizar com este brasão a ameaça que pairava sobre a cidade (...) e que é produto da racionalidade geradora do progresso” (Gomes, 2008, p. 95).

51 Westphal inspira-se, entre outras teorias, nas ideias de Walter Benjamin: “History continues its march, as with Walter Benjamin´s Angelus Novus. The wind rushes under the wings of the angel of history and carries him onward, inevitably, despite the overwhelming sadness caused by the spectacle unfolding before his eyes. But this movement no longer signifies an unswerving and progressive straight line; blown by such unpredictable winds, history can go forward, turn in circles, or cross and recross its own paths.” (Westphal, 2015, p. 14).

80 verticalidade, tal como nos cones simbólicos de Dante, eleva-se às alturas, mas também mergulha nas profundidades: a imagem inversa do edifício reflete-se no seu subterrâneo, comparável ao reino de Hades ou inferno dantesco, em que domina a escuridão tanto física, como mental.

Há ainda outros traços do simbolismo babélico que podem ser evocados em relação ao tópico da urbe. A propósito da fotomontagem “Metrópole” (1922) de Paul Citroen (aluno de Bauhaus), Renato Cordeiro Gomes sustenta tratar-se de uma “imagem do labirinto de Babel moderna feita de pedaços, que se projeta na imagem da cidade moderna como um quebra-cabeça, um puzzle.” (Gomes, 2008, p. 26). A Torre de Babel, como é sabido, corresponde ao símbolo da confusão, significando a sua construção um desafio aos limites da condição humana. A sua destruição, por conseguinte, aponta para o “desvio, a dificuldade de comunicar” (Gomes, 2008, p. 87), tendo por castigo o isolamento de vários povos. Com efeito, um dos primeiros significados da torre de Babel, desenvolvido pelo motivo da confusão de línguas, relaciona-se com o estatuto da cidade (em princípio, da capital) como um centro de cultura. No século XIX, bem como no ínício do século XX, o centro de cultura europeia correspondia a Paris. A capital francesa tornou-se a tela pintada e repintada por novos e novos retratos que repetiam a mesma imagem codificada (cf. Casanova, 2012, pp. 43-44). Estes retratos, por sinal, não provinham só de nacionais, mas também dos estrangeiros que lá procuravam a liberdade. Assim, como é lembrado por Pascale Casanova, Paris abrigou os polacos depois da “grande emigração” em 1830, os checos exilados a partir de 1915 e muitos outros que vinham para a cidade sonhada, a qual assumiu também a posição de “Babel Noir” para os primeiros inteletuais africanos e antilianos, vindos nos anos 20 do século XX (cf. Casanova, 2012, pp. 49-50). O mesmo é válido para os portugueses. Pense-se em António Nobre, Mário de Sá-Carneiro, Amadeu Souza-Cardoso ou mesmo em Aquilino Ribeiro. Se, porém, Paris constituiu a ícone de uma vida frenética, de luxo, mulheres e espetáculos para Sá-Carneiro, Aquilino Ribeiro manteve uma postura muito mais sóbria na sua valorização. Pascale Casanova desenvolve a reflexão sobre o encanto com que Paris atuava sobre muitos escritores e artistas nos séculos XIX e XX chegando à conclusão de que a metrópole francesa impunha um tom de gosto artístico/literário, com o qual os outros se mediam e ao nível do qual se desejavam elevar. A cidade funcionava como um imã, cuja força de atração atravessava fronteiras culturais, mesmo indiretamente. Recorde-se que Bertrand Westphal invoca, no Recorde-seu estudo geocrítico, o caso de Italo Calvino que Recorde-se Recorde-sentia influenciado pelo mito de Paris muito antes de a conhecer pessoalmente (Bertrand, 2011, pp. 149-150). Semelhantemente, Aquilino afirma ter-se sentido atraído pela cidade na imaginação, aliciado pela literatura que ele chamava “à Luís XIV”, ou seja, “pomposa, megalómana,

81 naturalmente balofa e transpositora, e por conseguinte susceptível de todas as mistificações” (Ribeiro, s/d, p. 21). No entanto, a sua experiência pessoal veio a corrigir substancialmente a imagem pré-concebida: “Também o Paris que encontrei não era o Paris que tinha na imaginação, sobretudo não era o Paris que me pintavam. (...) Tudo era regrado, comum, conservadorão, tamisado pelo filtro utilitário do bom senso e do ne te fais pas mauvais sang.” (Ribeiro, s/d, p. 21). A única maneira de Aquilino Ribeiro ter podido penetrar empaticamente nas graças com a capital francesa foi pela senda do coração, o que de facto aconteceu, como o escritor recorda em 1955:

Mas isto, este quid oculto que nos faz adorar a grande urbe e que no fundo não é mais que uma forma da nossa liberdade, se carece de expressão mental, instintivamente todos o sentem e eu acabei por senti-lo. Por estes vínculos ocultos, pela quietude que ali se respira, Paris prende e fascina e, em despeito de qualquer desagrado dos olhos, entra definitivamente no coração. (Ribeiro, s/d, p. 23).

Seja como for, urbe amada ou maldita, Paris realmente dominava na Europa oitocentista e na primeira metade do século XX como um espaço de grandes possibilidades e como um símbolo de luxo, volúpia e liberdade. Qualquer cidade que adquire esta aura, porém, deve assumir o risco de se tornar símile de Babel e outras cidades míticas de maldição, votadas à destruição. Ou seja, como Giovanni Macchia aduz, ao tornar-se Paris cidade de mito comparável a Roma, Atenas ou Babilónia, parecia que precisava de provar a sua grandeza pelo espetáculo da sua própria destruição (Macchia 1988 apud Casanova, 2012, p. 45). É o que se observa no conto “A revolução” (Jardim das tormentas, 1913) de Aquilino Ribeiro, em que Paris é, de facto, submergida nas águas devido a um cataclismo destruidor.

As visões apocalíticas, por conseguinte, apontam para mais uma dimensão do simbolismo babélico, esse que pode ser a priori ilustrado pelas pinturas maneiristas de François de Nomé e Didier Barra, do século XVII, que assinavam as obras com o pseudónimo “Desiderio Monsù” e cujas pinturas causam estranheza pelo seu onirismo, expresso em toda a sua alogicidade, por meio de elementos alucinatórios e quase “paranóides” (cf. Hocke, 2001, pp. 218-219). O fantasmagórico, presente na arte de Monsú, revela-se essencialmente como um caos, composição de elementos díspares, de vários estilos arquitetónicos, de diferentes épocas artísticas, de motivos incongruentes. Não surpreende que as telas de Monsú exibem frequentemente um motivo apocalítico. Deste modo surge, a meu ver, uma nova ideia de Babel, ou melhor, do universo depois de Babel, esse que não se revela somente pela dispersão de línguas, mas pela dispersão de todas as peças das quais a torre era construída. Esta imagem, de certa forma, contradiz o conceito de palimpsesto, em que permanece a ideia da ordem e

82 temporalidade e em que o estrato anterior é vislumbrado em fragmentos no estrato presente, da superfície. A ideia, a que me refiro, não segue nenhuma ordem, caraterizando-se pela justaposição e sincronicidade caótica, afastando-se assim dos semióticos e da sua ideia do Texto e aproximando-se da concepção de Westphal.

Para Walter Benjamin, a modernidade e o seu universo de mercadorias – o sempre novo – assemelha-se ao caleidoscópio, baseado na descontinuidade e efeito de intermitências: “A intermitência faz que cada olhar se lance no espaço e descubra uma nova constelação” (cf. Gomes, 2008, p. 84). Simmel, por sua vez, insiste na preponderância da atividade visual na cidade (cf. Gomes, 2008, p. 84). Tais estímulos visuais, sobretudo em forma de luzes artificiais, relacionam-se também com um aspeto caraterístico da modernidade, que é music-hall, símbolo da Cidade-Espetáculo futurista, cidade de montras, publicidade luminosa, ruídos, multidões, violência, prazer intenso e erotismo. Devido à sua vasta influência em vários setores da vida social e cultural da época de modernidade, music-hall (ou cabaret/variété) tornou-se, de facto, um dos mitos urbanos.52 Encontramos muitos exemplos desta face do urbano na poesia de futuristas italianos, mas também na obra dos modernistas portugueses, sobretudo de Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros, numa festa de explosão sinestética. Mas eram também as imagens do prazer libidinoso, interpretado como depravação ou perversão, que levaram à constituição do mito da cidade moderna como lugar de vício, em repercussão bíblica de Babilónia, Sodoma e Gomorra.

Esta dispersão que veicula o imaginário de caos adere, novamente, ao aspeto labiríntico e, por conseguinte, à sua difícil legibilidade. Esta ideia de caos, no entanto, não precisa de ser, a meu ver, considerada exclusivamente em termos disfóricos. Falando de caos em relação à abordagem do espaço, Bertrand Westphal evoca o mito grego de Chaos, deidade sem género, que auto-gerou mais duas deidades, Erebus (a escuridão absoluta) e Nox (a noite). Estas, por sua vez, deram luz a Aether (“ether” ou luminosidade) e Hemera (dia). Com isto Westphal conclui que “[i]t is creative chaos that gives birth to the light and to the day” (Westphal, 2015, p. 6), seguindo de perto o conceito grego de “caos criativo” como um pressuposto necessário a qualquer tipo de criação artística. Literalmente, podemos rastrear esta ideia no projeto do artista eslovaco Matej Krén, que utiliza livros desusados para criar novos objetos artísticos em forma

52 Na sua inventiva recolha da mitologia moderna, Roland Barthes classifica este espaço como essencialmente urbano. “La ville rejette lʼidée dune nature informe, elle réduit lʼespace à un continu dʼobjets solides, brillants,

produits, auxquels précisément lʼacte de lʼartiste donne le statut prestigieux dʼune pensée tout humaine: le travail,

surtout mythifié, fait la matière heureuse, parce que, spectaculairement, il semble la penser, métallifiés, lancés, rattrapés, maniés, tout lumineux de mouvements en dialogue perpétuel avec le geste, les objets perdent ici le sinistre entêtement de leur absurdité : artificiels et ustensiles, ils cessent un instant d´ennuyer.” (Barthes, 1957, p. 179).

83 de torres. No sentido mais amplo, qualquer destruição pode ser gérmen de algo novo, como se vê na natureza e no ciclo vital. Aplicando esta ideia ao conceito da metrópole caótica, podemos presumir que o caos decorrido da destruição da torre babélica, demasiado organizada e uniformizada, só pode dar um impulso à germinação de novas ideias e de um novo estado de existência, assente não na unidade, uniformização e centralização, mas na diferença, multiplicidade e descentramento vital.

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2. Lisboa nos anos 30 do século XX

A década de 30 do século XX carateriza-se, a nível mundial, por um eclodir de problemas que levaram aos horrores mais atrozes na história da humanidade. A rápida crise das democracias liberais, bem como a ascensão de extremismos tanto de direita (fascismo em Itália a partir de 1922 e nazismo na Alemanha a partir de 1932-1933), como de esquerda (comunismo), tiveram como consequência a eclosão da 2ª Guerra Mundial (1939-1945). Ao mesmo tempo, Espanha é abalada por uma guerra fratricida (Guerra Civil de Espanha, 1936-1939) e em Portugal são consolidadas as estruturas repressivas do Estado Novo. Em 1930 são aprovados os estatutos da União Nacional, em 1932 Salazar é nomeado Presidente do Conselho. Em 1933 é aprovada a Constituição, estabelecendo definitivamente o regime ditatorial. No mesmo ano são também proibidos os sindicatos, é criada a PVDE. Em 1936 são fundadas as organizações Mocidade Portuguesa e Legião Portuguesa e é aberto o campo de concentração do Tarrafal. A censura, a funcionar em pleno desde o golpe militar de 1926, torna-se mais dura a partir dos anos 30, o que se refletiria na literatura. O problema era muito complexo, uma vez