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breve nota sobre a olisipografia dos anos 30 do século XX

5. A cidade maldita

5.3. Viver na Babilónia: Mónica e Maria Benigna, de Aquilino Ribeiro Embora a obra de Aquilino Ribeiro não mantenha uns laços muito íntimos com o espaço

5.3.1. O imaginário cataclísmico

183 Os sintomas do romantismo de Ricardo encontram-se dispersos por todo o romance: p.ex. “Seria aquele homem que por duas ou três vezes surpreendera a olhar para ela com olhos fixos, olhos como nunca vira, de fogo e veludo ao mesmo tempo?” (1985a, p. 35), “Era distinto e circunspecto sem perder o vício congénito, romantismo.” (1985a, p. 37), “Íntimo na casa, certo dia declarou Ricardo a Mónica num olhar tímido, quase esquivo, que a amava. (...) Sobretudo era melancólico, compreendendo Mónica que ele a amava com o que de mais caro e religioso havia em sua alma, mas sem coragem.” (1985a, p. 41). É evidente que esta paixão não se baseia nos postulados psicanalíticos ou afins mas, unicamente, numa longa tradição da mística amorosa, conhecida já do trovadorismo medieval e assente, principalmente, nos olhares lânguidos e tímidos. Para além disso, ao longo de toda a intriga, Ricardo oscila entre uma timidez extrema, se bem que terna e amorosa, e uma impetuosidade impositiva, marca da sua vontade, afinal, forte e decisiva. Não me parece, contudo, que esta, por vezes brusca, mudança de gestos e atitudes transmita a sensação de inverosimilhança. Antes pelo contrário, assiste-se a uma personagem, cujas contradições podem traduzir uma certa complexidade humana, e masculina por excelência.

185 O arquétipo da Babilónia, conectado com o imaginário urbano, é na obra aquiliniana evocado com alguma insistência. Repare-se, logo, no título da coletânea de novelas urbanas de 1920 (Filhas da Babilónia), nas quais a invocação à Babilónia constitui-se como um cenário de relações amorosas não resolvidas, quiçá configuradas precisamente pelo espírito da modernidade e o seu impulso para um constante processo de (des)construção. Já no seu volume de contos de estreia (Jardim das tormentas, 1913), Aquilino Ribeiro inseriu o conto “A inversão sentimental” que se passa em Paris, nos cenários típicos, desde Le Quai até Le Jardin du Luxembourg, a que se junta uma quantidade de templos, cuja escolha, apesar de tudo, foge ao estereótipo parisinese (no conto são referidas igrejas menos conhecidas como Saint-Etienne-du-Mont, Saint-Julien-le-Pauvre ou Saint-Séverin etc.). A cidade no seu aspeto “babilónico” é observada pelo narrador a partir da sua janela na Place Sainte-Geneviève, perspetiva que lhe proporciona uma visão panorâmica sobre o Panthéon de “cunhais babilónicos e tiara de colunas” (Ribeiro, 1977, p. 53), a igreja de Saint-Etienne-du-Mont e vários prédios. Esta visão abrangente e sobranceira da cidade, percorrida exaustivamente num impulso involuntário de conquista amorosa, corresponde também à perspetiva masculina que conduz a narrativa do conto. O feminino vinculado à cidade e às suas representantes, Hélia e Ninette, duas raparigas que exercem atração sobre o narrador, é portanto dominado pela força do olhar masculino, admirador e galante.184

Mas a Paris do início do século XX, descrita nas cartas que Aquilino Ribeiro enviava da capital francesa em 1909, aparece também como uma cidade de contrastes que evoca tanto as imagens baudelairianas, como o imaginário lisboeta de Fialho, Brandão e Cesário Verde. Recorde-se, a propósito, que foi sobretudo nos fins de oitocentos, e mais especificamente na obra de Fialho de Almeida (Cidade de vício, 1880), que Lisboa era comparada a uma Babilónia, necrópole, cidade do vício e de uma atração ambígua.185 E apesar de a obra de Aquilino, como

184 Aquilino Ribeiro, como ele próprio elucida, morou na R. Descartes, no mesmo lugar indicado pelo narrador no conto. Também outros sítios aqui referidos eram pessoalmente conhecidos do escritor, como sabemos das suas memórias (veja-se em Abóboras no telhado). Relacionada com este assunto, surge a pergunta em que medida pode ser considerada a própria capital portuguesa como “babilónica”, uma vez que a libertinagem, de corte parisiense, não parece ser um traço que se ajuste à vida lisboeta. Atente-se nas seguintes observações da personagem de António César de Melo de Maria Benigna no que diz respeito às diferenças entre a vida parisiense e lisboeta: “Agora portuguesinha que rompe com a etiqueta do sexo e com a crosta rija dos preconceitos, se não se trata de impostura ou doida varrida, é deusa” (1985b, p. 6) “Em Paris, nos tempos do nosso tempo, sim, eram frequentes os sucessos deste género. (...) Chalrava-se; a parisiense da época era ingénua e curiosa; nós éramos galos doidos e românticos; acabava e recém-vinda por passar ali a noite. Na linguagem dos cacassenos, que viram Paris por um óculo, chamava-se, com intonação babilónica, a episódios destes, irem as raparigas ter com os rapazes à cama.” (1985b, pp. 6-7).

185 Não é sem interesse que Babilónia, tal como Lisboa e Roma, era uma cidade construída em sete colinas. Este atributo, com efeito, ajuda a criar paralelismos entre as três cidades.

186 se sabe, ser aversa a qualquer tipo de crítica moral, distinguindo-se neste aspeto dos autores oitocentistas, a metáfora da cidade babilónica está nela presente, atestando vários significados que lhe possam ser atribuídos.186 Repare-se como o autor beirão descreve a atmosfera parisiense, de telhados e chaminés: “Todas elas, a esta hora com 7 graus abaixo de zero, vomitam cobras negras, cordas de cinza, que se agarram às cornijas, rastejam pelos telhados e tecem sobre Paris uma floresta onde à noite o reverbero do gás se vem projectar como numa abóbada” (Ribeiro, 2004, p. 78)187. Esta paisagem, com efeito, faz lembrar o espaço urbano, fechado e bloqueado por muros e chaminés, tal como aparece em Os pobres de Raul Brandão. Aqui, mesmo que a atmosfera descrita possa sugerir, inicialmente, a ideia de um calor acolhedor que se imagina dentro das casas aquecidas no inverno, a carta prossegue num tom que não deixa dúvidas acerca da imagem afinal irónica que se pretende comunicar porque assenta na ideia de um “comércio” de misericórdia, assegurada por vários “asilos, casas de correcção, hospícios, o Dépôt preventivo, Saint-Lazare preventivo, a Santé bem mobilada e o Aljube misericordioso” (Ribeiro, 2004, p. 78). Por isso, o autor assume ironicamente: “Em suma, para as misérias de Paris há uma providência pluriforme na ronda heterogénea do Sr. Arcebispo, de Mr. Briand, da baronesa de Rothschild, de Léon Bourgeois, o simpático senador.” (Ribeiro, 2004, p. 78). Portanto, tal como Fialho de Almeida e Raul Brandão apontavam para o monstro urbano, de enfermarias cheias de pobres que poucas vezes acabam por ver o nascer do sol, de passeios cheios de prostitutas forçadas ao ofício por escassez de meios financeiros, de mendigos que rondam a noite lisboeta, Aquilino Ribeiro resume, categoricamente: “Paris suicida-se, morre à fome, prostitui-se, assassina por pão, enquanto as asas do anjo da caridade passam, as damas tocam o cravo em récitas para os pobres, o arcebispo agita a sua campainha pastoral, lá do alto, de onde se vêem na planície infinita das casas as chaminés que estão acesas e as chaminés que estão apagadas.” (Ribeiro, 2004, p. 79).

Esta imagem do espaço urbano, assente na hipocrisia, corrupção e ambições desenfreadas, transfere-se também parcialmente para o cenário lisboeta dos anos 20, em que se insere a trama de Mónica. Neste romance, de facto, a referência explícita à Babilónia surge várias vezes, correspondendo o seu significado, em geral, ao tipo de vida urbana levado pela burguesia abastada.188 Em princípio, este estilo de vida “babilónica” prende-se com uma espécie de

186 Embora aqui seja analisado somente o espaço urbano lisboeta, é preciso não esquecer que Aquilino, noutras obras, aborda de preferência o espaço referente à cidade de Viseu. Inclusive, chama este espaço a “Babilónia viseense” (Sousa, 2012, p. 42). Sobre esta questão veja-se o ensaio de Martim de Gouveia e Sousa (2012) que traça um roteiro pelos lugares aquilinianos.

187 A carta de Paris, publicada originalmente em “A Beira”, Viseu, nº 259, 21 de dezembro de 1909.

188 Repare-se, por exemplo, na seguinte ideia no que diz respeito à relação do capitão Basílio, conservador e hipócrita, para com o burguês recém-enriquecido, mestre de obras, Afonso Ruas: “Mediante as suas relações

187 dissimulação, encenada ao modo de um palco teatral, que pode ser desvelada só em raros momentos em que os seus atores saem do palco para os bastidores, tirando as suas máscaras e desnudando-se na sua verdade íntima. É o que pode ser observado num espaço resguardado como é um saguão lisboeta:

Ainda havia sol, e sacudindo a sonolência, sentou-se à janela, não tão ostensivamente que desse nas vistas, a estudar o saguão, certo de que algum tempo o teria para pano de fundo no teatro da sua vida. Aquele, entalado na ala oriental do prédio por uma singularidade arquitectónica, pois que o restante das traseiras olhava a céu aberto, era, igual a todos os saguões de Lisboa, um imundo e estreito pulmão de tísico. Mas estava longe, como palco, de poder comparar-se aos outros da Baixa, em cujos balcões ou terraços, empoleirados uns por cima dos outros, se pode abiscoitar a Lisboa sintética das sete colinas, dos sete pecados capitais e das sete virtudes contrárias. (1985a, p. 152)

As metáforas relacionadas ao universo teatral (palco, teatro da sua vida, pano de fundo), com efeito, acentuam precisamente essa propensão à representação, agora virada do avesso, já que Ricardo Tavarede, ao observar o saguão como se fosse uma peça da vida lisboeta, penetra com o seu olhar intimidante nos segredos, que se desejam ocultos, não revelados publicamente. Por isso, o saguão é uma parte do espaço urbano que oferece uma outra perspetiva do meio social:

O saguão era Lisboa em fralda, sincero como uma floresta à meia-noite. Todos os bichos vinham a campo, autênticos sem natureza própria, como se assim o determinasse um contra-regra, ou então porque tão elementar habitat não suportava o artifício. O careca surgia sem capachinho, a madama sem se pintar, o poeta em meias rotas, o eclesiástico sem cabeção. E todos usavam de linguagem proporcional, sem velaturas a criada do Primeiro que insultava a patroa do Segundo, a patroa do Segundo que falava como qualquer guarda municipal das senhoras do Quarto. Depois nem a miséria, nem o vício se disfarçavam ali. O saguão era mais que um teatro, as entranhas do teatro,

babilónia de avesso. (1985a, p. 160, sublinhado meu)

Esta “peça” imaginária, representada perante o espetador insuspeitado, Ricardo Tavarede, evoca irresistivelmente Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, em que os recém-falecidos desvelam a sua própria natureza reles, quando já perderam todas as esperanças de subir a bordo da Barca do Paraíso. Precisamente por isso a revista, na qual Ricardo publica os seus artigos empenhados de crítica político-social, tem o título vicentino Barca do Inferno. Reconhece-se,

oficiais pôde resolver um ou outro problema comezinho do Ruas em matéria de inquilinato e ajudá-los na jubilação de ricaços a alterar os hábitos mazombos que haviam trazido de Carvalhal do Pombo e resistiam cascudamente a meio século de Babilónia.” (1985a, p.18, sublinhado meu)

188 portanto, que a verdadeira Lisboa babilónica é essa que se mostra, exibe e ostenta, que vive da pose, aplauso e admiração. Por isso, também, a parte lisboeta mais babilónica corresponde, no imaginário aquiliniano, ao Chiado, sinédoque de uma Lisboa chique e elegante.189 Mas apesar de a metáfora da Babilónia se referir, maliciosamente, ao universo feminino, este não é de todo criticado em Aquilino. Ao contrário, o que parece fustigado nos romances aquilinianos, é aquele universo social que se alimenta da mentira, hipocrisia e/ou corrupção e cujos representantes exemplares são os figurões repelentes como o capitão Basílio, manipulador sem escrúpulos, e o seu filho Vítor, do romance Mónica.

Mais um aspeto vinculado ao arquétipo da Babilónia pode ser descoberto no romance Mónica, aquele que se prende à personagem de Afonso Ruas, mestre de obras recém-enriquecido, obsessionado pelo espetro do terramoto (“Porque um dos temas constantes da sua emoção consistia no hipotético tremor de terra que havia de subverter a capital, derrubando como castelos de cartas a babilónia dos gaioleiros.”, 1985ª, p. 7, sublinhado meu).190 A alusão ao terramoto evoca, evidentemente, o famoso Terramoto de Lisboa de 1755, mas veicula também, simultaneamente, todo o imaginário cataclísmico da tradição ocidental. Recorde-se que já no século XVIII, a seguir ao terramoto, foi publicado um rico material textual, documentário e reflexivo, que pretendeu esclarecer as causas desse desastre sem precedentes na Europa de então. Teolinda Gersão, ensaísta e escritora fortemente interessada na questão olisipógrafa,191 já em 1989 reuniu vários textos portugueses e alemães da época que glosam os acontecimentos na Lisboa setecentista. Concentrando-se primordialmente nos textos sobre a

189 Também no romance Maria Benigna, António César de Melo refere-se ao Chiado, pensando precisamente nessa Lisboa galante, frequentada pelas mulheres e homens requintados: “estava longe do Chiado como da China (...) uma rapariga loira e alta, segundo é de estilo, espiritual, como convém a escritor, do mais esbelto que pisa

no Chiado” (1985b, p. 5), “Esqueceu-se que o Chiado está a muita soma de léguas da sua serra” (1985b, p. 17).

Adriano Valadares também afirma: “Gostei de Maria Benigna tanto quanto se pode gostar duma sadia, fresca e esbelta rapariga, das tais que passam e inflamam o Chiado.” (1985b, p. 54). Até Maria Benigna usa a mesma sinédoque: “Começo até a agradar-me de mim e a saborear com prazer a admiração que a minha pessoa desperta nos basbaques do Chiado.” (1985b, p. 127) Ao mesmo tempo, António César de Melo descobre, um tanto misoginamente, que esse espaço exibe caraterísticas teatrais, por ser “feminil” (1985b, p. 127), uma vez que “em geral, às mulheres desagrada verem-se tais quais são em realidade” (1985b, p. 14).

190 Repare-se no termo “gaioleiro” que conforme Infopédia significa, na gíria de arquitetura, um edifício (ou construtor de edifícios) de “fraca qualidade e elevada vulnerabilidade sísmica, caraterística das construções do fim do século XIX e início do século XX, resultante da deturpação do modelo da gaiola pombalina por supressão de certos elementos, utilização de materiais de fraca qualidade etc.” (Infopédia, https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/gaioleiro). Há também referências às gaiolas nos poemas de Cesário Verde, por exemplo, em “O sentimento dum ocidental“: “Semelham-se a gaiolas, com viveiros, / As edificações somente emadeiradas” (Verde, 1999, p. 98) ou no poema “Noite fechada”: “Recolheste-te, pálida e sozinha, / À gaiola do teu terceiro andar” (Verde, 1999, p. 85). É óbvio que a imagem da gaiola, em sentido geral, funciona neste contexto de modo metafórico, muito eficaz sobretudo na relação com a figura feminina.

191 Mencione-se sobretudo o seu romance A cidade de Ulisses (2011), exclusivamente centrado no imaginário urbano lisboeta. Referindo-se a vários mitos e fenómenos típicos da cultura lisboeta antiga e contemporânea, o romance, todavia, e quase “hereticamente”, evita explanações sobre o Terramoto.

189 “cidade imaginada”, caraterizada como “produto de um olhar menos objetivo, que se deixa tocar, ou até dominar, pela emoção – mesmo quando procura canalizá-la para um fim religioso ou moralista”, Gersão enumera, sintetizando, os vários aspetos referidos por autores da época, que confluem nas duas imagens de força, antitéticas: a magnificência e destruição (1989, p. 185).192 Importa referir, neste momento, que quase todos os textos da época, estudados pela ensaísta, coincidem na interpretação da catástrofe em conformidade com “esquema de culpa e castigo” (1989, p. 193), uma vez que “a culpa” da cidade de Lisboa era ter sido demasiado atraente, sensual, voluptuosa e, assim, “pecaminosa” (cf. 1989, p. 193).193 Sendo “comparada às cidades culpadas da Bíblia, Babilónia, Ninive, Sodoma, Gomorra, Jerusalém” (1989, p. 193), opera-se aqui a mesma lógica axiológica, segundo a qual o desastre correspondeu ao castigo divino.

Uma outra linha de interpretação, proveniente em grande medida de certos meios filosóficos de origem francesa, afasta-se, contudo, desta imagística apocalíptica moral e religiosa, acentuando os aspetos racionalistas. A este respeito, Zygmunt Bauman refere as sugestões de Susan Neiman e Jean-Pierre Dupuy:

Susan Neiman e Jean-Pierre Dupuy recentemente sugeriram que a rápida sucessão de terremoto, incêndio e maremoto que destruiu Lisboa em 1755 assinalou o início da moderna filosofia do mal. Os filósofos modernos separaram os desastres naturais dos males morais – e a diferença tornou-se precisamente a aleatoriedade daqueles (agora reclassificada como cegueira) e a intencionalidade ou premeditação destes. Neiman aponta que “desde Lisboa, os males naturais não têm nenhuma relação aparente com os males morais, já que não possuem mais significado algum” (Bauman, s/d, p. 58)

A ideia a reter consiste na conceção da catástrofe como um desastre natural e aleatório, em contradição à opinião anteriormente mencionada, definida como uma punição de Deus. Mas não se fica por aqui, porque esta ideia é ainda desenvolvida noutra direção :

Segundo Dupuy, foi paradoxalmente Jean-Jacques Rousseau quem fez soar o acorde mais moderno – ele que, devido a sua celebração da prístina sabedoria de tudo

192 Entre os aspetos da “magnificência” são referidas as seguintes imagens de Lisboa: cidade de origens e atributos míticos (Ulisses, o Tejo com a areia de ouro etc.), Cidade Eleita (a nova Jerusalém), cidade de uma beleza ímpar, com a conotação paradisíaca, cidade-coração-do-mundo (como centro de circulação), Cidade Rainha (com brilho, opulência e esplendor) e cidade como símbolo de totalidade (que reúne o que se encontra em quatro continentes) (Gersão, 1989, pp. 184-191).

193 Teolinda Gersão enumera o conjunto destes “pecados” como “excesso, luxo, impiedade, vaidade, orgulho, lascívia, doença, preguiça, peste, veneno” (1989, p. 193). Sintomaticamente, a cidade de Lisboa é assim, nos textos setecentistas, conotada com o “feminino”, isto é, aparece como “ligada ao campo não racional mas do instinto: prazer sobrepõe-se à utilidade, a fruição à produção, o instinto e a sensualidade à razão, o excesso à medida, o ócio ao trabalho” (1989, p. 193). Conforme a lógica da ordem masculina, portanto, esta “desordem” de teor feminino deve ser punida com a destruição (cf. 1989, p. 193).

190 que é “natural”, tem sido tomado com muita freqüência como um pensador pré e antimoderno. Em sua carta aberta a Voltaire, Rousseau insistiu que, se não o desastre de Lisboa em si, mas certamente suas conseqüências catastróficas e sua escala horripilante resultaram de falhas humanas, não da natureza (observem: falhas, não

pecados – diferentemente de Deus, a natureza não tinha a faculdade de julgar a

qualidade moral dos feitos humanos): produtos da miopia humana, não da cegueira da natureza; e da ambição terrena do homem, não da indiferença altiva da natureza. Se “os moradores daquela grande cidade tivessem se distribuído de modo mais equilibrado, e construído casas mais leves, os danos teriam sido muito menores, talvez até não ocorressem… E quantos infelizes perderam suas vidas na catástrofe porque quiseram recolher seus pertences – alguns seus documentos, outros seu dinheiro?” (Bauman, s/d, p. 58)

A partir desta sugestão pode ser observado que Jean-Jacques Rousseau, já na altura, fez uso de uma inteligência iluminada e pragmática, desviando-se totalmente das discussões teológicas e metafísicas em favor da conceção racionalista, humanista. A acentuação de falhas humanas (e não de pecados, como é justamente sublinhado por Bauman) demonstra claramente que a origem do desastre pode ser (também) atribuída a uma questão puramente urbanística. É, basicamente, esta a linha de várias interpretações do imaginário cataclísmico, embora numa sequência inversa, que pode ser igualmente detetada no romance Mónica, como adiante se verá.

A leitura preferida de Afonso Ruas é, por sinal, História universal dos terramotos que tem havido no mundo de Joachim Joseph, obra realmente existente e publicada em 1758, que aborda com um interesse particular as localidades atingidas pelo terramoto de 1755. Submerso na leitura e revivendo na fantasia o desastre, Afonso Ruas fica em todas as atividades a que se entrega dominado pelos receios de ondas sísmicas que possam abalroar a cidade mais uma vez. Por isso, também, seguiu atentamente a construção da sua casa na Avenida Duque de Loulé, assegurando-se especialmente do elevado grau de solidez e resistência dela (“Mas não respirava apenas soberba em seus umbrais, sentia-se em segurança persuadido com havê-la palpado pedra a pedra, tábua a tábua, quando fora construída, que não vinha abaixo com dois safanões.”, 1985a, p. 7).

O pragmatismo como a expressão mental da classe pequeno-burguesa lisboeta, cujo representante Afonso Ruas sem dúvida é, incide naturalmente sobre a interpretação do cataclismo do ponto de vista físico-geológico, como um desastre natural. Tal obsessão é substancialmente fomentada pelo panorama da cidade que o mestre-de-obras tem ensejo de observar a partir da varanda da sua nova casa. A vista sobre a cidade, tipo de um postal, enquadra sempre a penha da Madalena e do Limoeiro, vista sobre o casario que desce para as margens do rio Tejo e um fundo verde da Outra Banda. Ocasionalmente, o olhar de Afonso Ruas regista ainda Rilhafoles, a ruína do Carmo, a lomba de S. Pedro de Alcântara ou “mar

191 revolto de telhados, desde Santa Catarina ao Castelo” (1985a, p. 148). Admirando o mesmo panorama da janela da casa do sogro, Ricardo Tavarede “compreendia que o Ruas magicasse