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1. Cidade e literatura

1.4. Cidade e modernidade

1.4.1. Espaço mecanizado e alienado

Georg Simmel, um dos pensadores que refletiram sobre os estatuto da cidade moderna e um dos sociólogos mais influentes do início do século XX, analisou a cidade e a consciência moderna como uma complexa transformação cultural do mundo que tende a uma crescente heterogeneidade. Entre as reflexões mais pertinentes relacionadas com o funcionamento da sociedade moderna pertencem as ideias sobre o trabalho moderno e sobre a economia monetária. O dinheiro, de acordo com Simmel, estabelece as relações objetivadas, distanciadas.

46 Embora oriundo de obras setecentistas inglesas (de H. Walpole, A. Radcliffe etc.), o gótico, no sentido mais lato, corresponde, conforme Fred Botting (2002) e outros especialistas da área (Lloyd-Smith, 2004, Hughes et al., 2016 etc.), a um fenómeno transcultural e transhistórico. Para além de se tratar de uma estética de horror/terror, o gótico apresenta ainda um forte envolvimento com o passado ou, nas palavras de Allan Lloyd-Smith, com o retorno do passado, do reprimido, do segredo enterrado que subverte e corrói o presente, daquilo que ninguém ousa falar (Lloyd-Smith, 2004, p. 1).

63 Isto reflete-se também na forma de vida da sociedade moderna, a qual, porém, não podia funcionar de outra maneira, uma vez que as grandes cidades exigem uma maior acumulação de pessoas num sítio. Sem esse distanciamento psíquico, a vida na cidade seria insuportável. O facto de o homem ser forçado a aproximar-se tanto de outros corpos podia causar num ser mais sensível e nervoso uma angústia cruel, se essa objetivação das relações não criasse limites interiores e uma reserva (cf. Simmel, 2011, p. 542). Por isso, o dinheiro introduz entre as pessoas uma distância invisível e funcional que serve de proteção íntima e recompensa por essa demasiada proximidade. Simmel percebe bem que o caráter do trabalho moderno mudou, que se tornou automatizado, executado por máquinas complexas que exigem um ritmo repetitivo, criando também cada vez maior distância entre o homem e o instrumento de trabalho (cf. Simmel, 2011). Todas as relações começam a ser definidas de modo quantitativo, e não qualitativo. Além do trabalho cada vez mais regularizado e mecanizado, o homem na cidade moderna é constantemente exposto a uma grande variedade de estímulos e incentivos que podem alterar a sua sensibilidade. Neste contexto Ricardo Cordeiro Gomes também comenta:

Simmel vê nas formas urbanas da era moderna o ambiente que sobredetermina o indivíduo com uma variedade infinita de estímulos. O indivíduo e o grupo realizam-se em um ambiente social artificialmente produzido por eles mesmos e onde são dominados pelo aspecto tecnológico da existência. (Gomes, 2008, p. 74)

Por extensão, “o bombardeio dos sentidos por uma pluralidade de impressões produz um acentuado nervosismo”, provocando este estado de “mudanças nas várias formas de defesa interior e distância social” e incitando a uma “completa indiferença” (Gomes, 2008, p. 75). Isto, junto com o trabalho cada vez mais mecanizado, gera uma aguda sensação de alienação (cf. Simmel, 2011, p. 566). Desenvolvendo as ideias de Simmel, podemos constatar que a alienação é estimulada pelo fenómeno mais caraterístico da cidade moderna, que são as massas. A cidade moderna, com efeito, é também na literatura representada pela multidão, como diz Richard Lehan, para quem “[t]he city often presents itself metonymically, embodied by the crowd. We look through the crowd – whether Eliotʼs and Baudelaireʼs walking dead or the violent mob in Dickens, Zola, Dreiser, West and Ellison – to the city” (Lehan, 1998, p. 8). Não se trata, porém, de uma multidão qualquer porque a multidão urbana é específica, é um conjunto de elementos individualizados que não têm nada em comum com os outros. Em vez da comunidade que ainda poderia funcionar, de alguma forma, nas aldeias ou pequenas vilas, na grande cidade desenvolve-se um processo denominado por Engels “atomização da sociedade” (cf. Gomes,

64 2008, p. 75). Deve ser precisamente esta atomização que imprime ao espaço urbano o caráter paradoxal da solidão dentro da multidão.

A alienação/solidão do ser humano é agravada por mais um grave problema que deflui das novas exigências impostas aos trabalhadores na urbe moderna e que consiste na redução do homem à máquina. Por trás deste fenómeno alarmante há toda uma série de acontecimentos e “inovações” fabris, sobretudo uma nova conceção científica do trabalho industrial, cunhada por Ford e Taylor, que deveria melhorar o clima social e moral pela imposição da prosperidade, e a consequente crise económica que abalou os EUA e a Europa entre 1929-1934. O filme Modern Times (1936) de Charlie Chaplin é disso uma prova das mais conhecidas. Podemos assim concordar com Ricardo Cordeiro Gomes de que a metrópole se constitui como “lugar de coletividades indefinidas, que pode gerar total indiferença de cada indivíduo para com o outro, na vida cotidiana, como traço de autopreservação.” (Gomes, 2008, p. 74). Em contraste com o campo (ou vila), onde predomina um estilo de vida assente num ritmo e monotonia natural, a cidade oferece uma grande escala de impulsos, que promove uma rápida absorção de novas ideias e estímulos inteletuais, mas pode, por outro lado, desembocar numa diminuição de sensibilidade, ou numa postura cínica e blasé (cf. Derdowska, p. 58).

Temos, portanto, a imagem da cidade moderna como um reservoir de sensações, muitas vezes contraditórias, como são um nervosismo/inquietação/hipersensitividade por um lado, e uma indiferença/apatia por outro. As duas vertentes afetivas, no entanto, conduzem ao mesmo sentimento de alienação. Convém recordar que este tipo de sensitividade urbana começa a definir-se com maior intensidade nos fins do século XIX, na época em que a literatura dá voz a várias fobias, manias e obsessões que desregulam a vida estável de uma burguesia auto-confiante, retratada pelos realistas influenciados pelo positivismo. A imagem literária desta face sombria da cidade passou a ser considerada, pelo menos na teoria literária anglófona, herdeira dos romances góticos, pela evidente afinidade no tratamento de horror/terror. Neste sentido, podemos até falar de um gótico urbano (urban gothic), em que a posição central da cidade pode adquirir o protagonismo nas histórias narradas. Ou seja, na esteira de Emily Adler, “the city becomes a key locus for the uncanny” (Adler, 2016, p. 704). Como em qualquer ficção gótica, o conceito do passado, junto com os vários segredos, mistérios e traumas, desempenham o papel principal: “Over a cityʼs history, the layers of its building and rebuilding produce a sense of buried past that shapes charactersʼ experience of the city and re-emerges as repressed secrets, desires, or histories marginalized by a culture formed by capitalist dynamics” (Adler, 2016, pp. 704-705). A face amável, calorosa e hospitalar da cidade desdobra-se num território sombrio, ameaçador, labiríntico, ou até claustrofóbico, povoado de duplos, espetros ou monstros. Ao

65 mesmo tempo, a cidade exibe vários traços do passado que, a cada passo, alertam para a sua descodificação. Neste âmbito do gótico urbano, próximo do conceito da psicogeografia, podem ser inseridas, ainda de acordo com E. Adler, as narrativas famosas como The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1886) de R. L. Stevenson, ao invocar Londres como o espaço em que o crime floresce e em que a cidade próspera é duplicada pelo seu reverso sombrio, Dracula (1897) de B. Stoker, em que as conquistas da modernidade urbana (o conceito da New Woman, novas tecnologias e capacidade de viajar/comunicar) possibilitam a invasão do Conde, ou The Great God Pan (1894) de A. Machen, em que a cidade de Londres se torna um palco de predação da demoníaca Helen Vaughan (cf. Adler, 2016, pp. 704-705). Todas estas atitudes e imagens são de facto representações da alienação urbana.

Ao lado da narrativa de Stevenson que demonstra um dos aspetos mais frequentes da sensibilidade urbana moderna e que se relaciona com a cisão de um eu considerado até agora estável, releve-se também a importância da narrativa de Stoker que, por meio de uma figura do estrangeiro supostamente predatório, aponta para os medos irracionais com os quais a urbe moderna terá que viver. Com efeito, a ideia de que os estrangeiros abalam a ordem de uma sociedade próspera, trazendo só caos e violência, não diz respeito somente aos finais do século XIX e à sociedade inglesa, mas anticipa lucidamente todos os fenómenos de migração, cujo palco será precisamente a Europa dos séculos XX e XXI. Por tudo isso, a figura do estrangeiro (ou foragido) num ambiente urbano, dominado pela crescente alienação, vem atraindo cada vez maior atenção, suscitando interesse não só na área de literatura, mas também, como é óbvio, na sociologia e filosofia.