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breve nota sobre a olisipografia dos anos 30 do século XX

2.2. A Lisboa da modernidade literária

Quando o russista checo Svatoň analisou as prosas russas oitocentistas, verificou que uma das imagens mais poderosas do século XIX era precisamente a da imagem da cidade. Não a imagem criada a partir da realidade observada, mas a imagem simbólica, baseada na

94 sistematização e apresentação de traços idênticos em autores diferentes (cf. 2002, p. 222). A cidade, portanto, corresponde a uma estrutura da vida humana, a um modelo de existência, sendo também a sede da degradação de valores e relações naturais (cf. Svatoň, 2002, p. 222). Em Portugal, há vários autores no século XIX que inseriram as suas narrativas, peças ou poemas no espaço urbano, não só lisboeta, mas também portuense (p. ex. O Arco de SantʼAna, 1845, 1850 de Garrett, algumas obras de Camilo Castelo Branco e Júlio Dinis) ou conimbricense (p. ex. algumas lendas de Herculano). No que diz respeito a Lisboa, é impossível não lembrar a tradição folhetinesca dos mistérios urbanos (Mistérios de Lisboa, 1854, de Camilo Castelo Branco, O mistério da estrada de Sintra, 1870, de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, O mistério da Rua Saraiva de Carvalho, 1919, de Reinaldo Ferreira etc.), romances/contos realistas e naturalistas de Eça de Queirós (O primo Basílio, 1878, Os Maias, 1888, A capital, 1925, A relíquia, 1887 etc.), Abel Botelho (O Barão de Lavos, 1898), Fialho de Almeida (A cidade do vício, 1882) e muitos outros. Um capítulo muito especial da modernidade literária lisboeta foi, no entanto, escrito por Cesário Verde que enriquece o imaginário lisboeta com uma profunda melancolia e com o tópico da cidade noturna (morta, criminosa, babilónica, babélica e solitária). O poema mais famoso do autor, intitulado “O sentimento dum ocidental” (1880) expõe precisamente um passeio solitário e noturno pelas ruas lisboetas ao modo de “[s]infonia de uma capital, com seus andamentos, da melancolia ao tédio, da miséria à dor” (França, 1993, p. 61). Além disso, o legado de Cesário Verde é perceptível em todos os textos que invocam estas imagens, seja o poeta explicitamente referido ou não. Todos os autores que o precederam, inclusive Eça de Queirós e outros realistas e naturalistas, não ganharam tantos seguidores quanto à “matéria” lisboeta como precisamente este poeta.

Era na altura da intervenção da geração de 70 que Cesário começou a escrever e publicar os seus poemas, mais concretamente, no ano de 1873. Por isso, podia estar até certo ponto familiarizado com alguns eventos “revolucionários” que tiveram lugar nesse período, como as Conferência Democráticas do Casino (1871), fundação do jornal O Pensamento Social (1872) e publicação de obras orientadas para a crítica social (p. ex. o conto “Singularidades de uma rapariga loura” de Eça de Queirós ou o poema narrativo A Morte de D. João de Guerra Junqueiro, os dois títulos de 1874). Dificilmente, porém, procurarímos a mesma expressão da crítica social que Eça exprimiu nas suas obras dos anos 70, porque a poesia urbana de Cesário não assenta numa fria racionalidade distante e irónica, típica para o paladar queirosiano, mas é tecida de um material próprio das emoções e sentimentos. É óbvio que as duas poéticas, queirosiana e cesariana, são baseadas no percepcionismo e na estimulação dos sentidos, dos quais a visão é notoriamente a mais privilegiada (porque olhar significa também observar), a

95 poesia de Cesário é, porém, mais dada a várias transfigurações, pelas quais um fenómeno apenas entrevisto pode ganhar uma dimensão emocional e um significado mais ambíguo. Há mais diferenças, obviamente. Repare-se, junto com Eduardo Lourenço, que a crítica não impediu a Eça de Queirós de retratar Lisboa como uma cidade de facto “solar”, enquanto a Lisboa de Cesário, mesmo que realista, é essencialmente sombria, melancólica e onírica:

A Lisboa de Cesário é uma mistura da Leiria do Crime e da Lisboa do Primo Basílio de Eça, mas com uma porta de saída onírica que a visão mais naturalista e crítica de Eça não comporta. O universo de Cesário não é um universo pensado, crítico, à maneira de Eça via-Proudhon, é um mundo sentido, palpado e ao mesmo tempo transcendido pelo sonho que é desejo de um lugar-outro, de uma humanidade-outra que inconscientemente o conforta na sua admiração pela força, pela saúde e energia que a memória e o sangue lhe denegam. (Lourenço, 1993, p. 130)

De mesmo modo, Eduardo Lourenço percebeu que a poesia de Cesário, tal como a prosa de Eça, era “a expressão de uma nova forma de erotismo, complexa, ambígua, de recorte baudelairiano em superfície, mas sem a fascinação pelo artifício nem o peso de uma culpabilidade absoluta.” (Lourenço, 1993, p. 130). Os dois, com efeito, exprimiram na sua obra um erotismo ambíguo, em que a atração supostamente fatal, exercida pelas aristocratas finas e luxuosas, é logo desconstruída por uma ironia ou sarcasmo corrosivo. No caso de Eça de Queirós é evidente que a maior paixão de toda a sua obra romanesca, a de Carlos de Maia e Maria Eduarda, termina com um fracasso irónico, por se tratar de incesto. Repare-se no procedimento ainda mais ambíguo no caso de Cesário Verde. Por exemplo no poema “Deslumbramentos”, o sujeito poético começa com o elogio à dama:

Milady, é perigoso contemplá-la, Quando passa aromática e normal [...]

Em si tudo atrai como um tesoiro [...] Ah! Como me estonteia e me fascina...

O poema continua com a desconstrução da mesma atração insinuando a frieza da dama (“Pois bem. Conserve o gelo por esposo”) e acaba com os versos que sugerem uma revolta da plebe contra a aristocracia, seu poder e atração magnética:

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas, Sob o cetim do Azul e as andorinhas, Eu hei-de ver errar, alucinadas, E arrastando farrapos – as rainhas! (Verde, 1999, pp. 35-37)

96 Esta ambiguidade poderia ser, talvez, melhor percebida à luz das perturbações de género, às quais o poeta possivelmente tenha sucumbido. A este propósito, Martim de Gouveia e Sousa observa:

Muitas das vezes de forma hesitante, cautelosa mesmo, lá vão surgindo, para trás e para a frente, ligeiros mas claros enfoques homográficos e tendências homossexuais na literatura portuguesa e nos seus fautores. Por exemplo, estão «sob suspeita» homossexual Cesário Verde e Silva Pinto, assim como deste existem claras incidências homográficas no conto «Berloque Vermelho» e daquele o estranho designativo para uma irlandesa de «rural boy» (Verde, 1983: 73) do poema «Manhãs brumosas», bem como um indicioso pavor às «carnações redondas» (Verde, 1983: 53) decorrente da composição «Frígida». O mesmo Silva Pinto, autor, como vimos, de um deslembrado conto sobre uma paixão entre dois rapazes escrito na primeira pessoa no ano em que conhecera Cesário (1873), manterá uma relação tempestuosa com um jovem poeta «prodígio» de nome Narciso de Lacerda, com quem passará a viver. (Sousa, 2009, p. 47)

Sem invocar as hipóteses acerca da orientação sexual dos autores, convém assumir que esta alusão a um possível, somente implícito, homoerotismo na poesia de Cesário Verde (que não está presente em Eça de Queirós) poderá ser também uma das linhas de leitura de outros textos do modernismo português, não só da geração de Orpheu, como também do modernismo tardio que me interessa neste trabalho. Mas a sintonia entre Cesário e Eça, no que se refere às mulheres, consiste sobretudo no retrato das burguesinhas de luxo, acomodadas ao seu estado privilegiado e abastado, conhecidas de quase todas as obras queirosianas (e especialmente de O primo Basílio) e de alguns versos cesarianos, sobretudo de “O sentimento dum ocidental”. Uma sombra de dúvida paira só no caso da visão futurista de mansões “de vidro transparente”, prevista como um abrigo de “castíssimas esposas” (Verde, 1999, p. 104). Esta imagem surpreende pela deslocação temporal, evocando não só a arquitetura modernista, mas também, do ponto de vista atual, a casa dos programas acéfalos de reality show televisivos que apostam no prazer voyeurista de certo estrato do público espetador. Não contando com esta aberração imaginativa, fica a pairar, por aqui, a pergunta de como imaginar, neste tipo de edifício, um ninho de esposas castíssimas se o vidro transparente, em princípio, revela muito mais em vez de esconder e proteger. A amplificação pelo superlativo, assim, parece uma ironia sarcástica, talvez mesmo dirigida a essas burguesinhas muito católicas, cuja castidade é desmascarada como hipócrita. O vidro transparente, de facto, podia também funcionar como a metáfora do olhar duplo de autor/leitor que tem entrada voyeurística nesses ninhos burgueses de Luísas queirosianas para averiguar do seu grau da castidade a que elas são submetidas pelos princípios

97 da mentalidade patriarcal. Como, porém, estamos na cidade, na época em que se debate a posição da civilização, com todas as suas conquistas técnicas (recorde-se o romance A cidade e as serras de Eça de Queirós), frente a um mundo possivelmente arcaico e genuíno, a metáfora cesariana insere-se dentro de uma vertente da literatura realista e naturalista em que, conforme José Carlos Seabra Pereira, inspirado por Philippe Hamon, são “recorrentes as cenas e imagens de vidro, cristal, superfícies translúcidas, luminosidade penetrante etc., em conexão com o tropismo da informação civilizacional e suas injunções técnico-compositivas” (Pereira, 1992, p. 21).

A diferença entre Cesário e Eça, no que diz respeito à imagem do feminino, vê-se contudo nas figuras das mulheres pobres: enquanto Eça entreliga, de maneira micheletiana, um aspeto degradado e coçado de uma mulher que nunca na vida podia contar com alguns favores tanto materiais, como sentimentais, com o caráter de mesmo modo “podre” (p. ex. Juliana de O primo Basílio), Cesário recria a figura de uma pobre engomadeira que, embora feia e doente por não poder ser bem alimentada, emana uma ternura que ganha simpatia não só do sujeito que a espia através da janela, mas também do leitor. De mesmo modo, valoriza o trabalho hercúleo de pobres mulheres trabalhadoras no cais lisboeta que, após um dia de labuta, regressam a um bairro, em que o “peixe podre gera os focos de infecção” (Verde, 1999, p. 99).

O universo urbano percecionado e simultaneamente transfigurado de Cesário Verde encontra a sua fértil perpetuação na poética de Livro do Desassossego de Bernardo Soares pessoano, estudado já, a partir da perspetiva do espaço, por La Salette Loureiro (1996) e Maria Fernanda de Abreu (2018), entre outros. As duas investigadoras coincidem sobretudo no facto de valorizarem particularmente as contínuas variações e contrastes de luz e sombra, bem como o aproveitamento dos sentidos, sobretudo da visão e audição. Curiosamente, as duas poéticas, a de Cesário e Bernardo Soares, coincidem não só na plasmação da cidade como um espaço essencialmente sinestésico, mas também na sua coloração que contesta o tratamento cromático estereotipado (sobretudo o branco, como já foi recordado). Veja-se, por exemplo, o motivo da chuva que, na paleta pessoana, adquire a cor amarela e cinzenta. Maria Fernanda de Abreu comenta este espetro cromático com a seguintes palavras:

Un “día de lluvia” (título de un fragmento) puede tener, también, colores específicos; puede hacer que el aire sea “de un amarillo oculto, como un amarillo pálido visto a través de un blanco sucio”, puede hacer que haya apenas “amarillo en el aire ceniciento”, puede, en fin, hacer que “la palidez de lo ceniciento” tenga “algo de amarillo en su tristeza” (Abreu, 2018, p. 275).

98 O amarelo é uma cor particularmente interessante, visto que é uma das cores mais caraterísticas da cidade de Lisboa e, ao mesmo tempo, corresponde à cor de larga repercussão na estética do fin-de-siècle e início do século XX. Desde “Les rayons jaunes” (Poésies) de Sainte-Beuve e Amours jaunes (1873) de Tristan Corbière, até a “Primavera amarilla” (Poemas mágicos y dolientes, 1909) de Juan Ramón Jiménez, poemas de Lorca e Rafael Alberti, a cor amarela exprimia tudo que era corajoso, impertinente e extraordinário, tornando-se também a cor da saudade. Como diz Claudio Guillén, o amarelo era a única cor a servir para a concepção moderna da arte (Guillén, 2008, p. 223). O cinzento, por sua vez, corresponde à cor das grandes metrópoles europeias, como se lê em “O sentimento dum ocidental” de Cesário Verde, em que pode simbolizar tanto a monotonia e rotina, como o insólito do espaço que se aproxima da capital britânica (“E os edifícios , com as chaminés, e a turba, / Toldam-se duma cor monótona e londrina”, Verde, 1999, p. 97). Helder Macedo relaciona mesmo esta cor com a imagem de Londres, “cidade monstruosa que se tinha tornado, na literatura do século XIX, num símbolo de desespero, da miséria e da opressão da sociedade industrial”, Macedo, 1986, p. 171).Deve ter sido também esta conotação que mais tarde levou o autor neorrealista Mário Dionísio a eleger esta cor como cimeira nos seus contos lisboetas (O dia cinzento, 1954).

Assim, a Lisboa não se apresenta só como uma cidade de sol e de cores alegres, mas antes como uma urbe melancólica. Esta melancolia tem origem na sensação do sujeito cesariano de ser um marginalizado, excluído desse mundo que “parece estar em toda a parte salvo em Lisboa” (Lourenço, 1993, p. 127), sendo desenvolvida numa reflexão de teor pessoal (duplicidade do eu/cidade) e ao mesmo tempo coletiva (mergulho num solo mítico do destino português), evidente tanto em Cesário, como em Bernardo Soares e toda a obra de Pessoa. Esta ideia pode ser ilustrada por um exemplo. Apesar do sol e várias cores, Maria Fernanda de Abreu avisa que a representação da Lisboa de Bernardo Soares é guiada pela ideia de “opressão” (Abreu, 2018, p. 271), demonstrada no fragmento a começar pela frase: “Desde o princípio baço do dia quente e falso nuvens escuras e de contornos mal rotos rondavam a cidade oprimida” (Pessoa, 2006, p. 177) Embora a pesquisadora não avance na interpretação deste indício, para mim de alto interesse, suponho haver um relacionamento entre esta sensação de opressão e os motivos que se seguem no fragmento e entre os quais se contam as nuvens, a parte da barra, o castelo, a parte antiga da cidade, a parte setentrional e a parte oriental da cidade. O olhar, deste modo, contorna o espaço, alcançando as suas fronteiras naturais que é o horizonte. Vale a pena registar o cromatismo das nuvens que, pela parte do norte, se juntaram para formar uma só nuvem – “negra, impalcável, avançando lentamente com garras rombas de branco cinzento na ponta de braços negros” (Pessoa, 2006, p. 178). Maria Fernanda de Abreu comenta tratar-se de

99 uma cena “animada por un angustiado movimiento, que da vida a una ciudad que espera una nube convertida en hombre-monstruo, una tormenta“ (Abreu, 2018, p. 272). Por mais justíssima que esta observação seja, pode avançar-se com maior coragem na interpretação desta cena. Trata-se evidentemente de um registo descritivo sobre a tormenta que se está a aproximar. A sua antropomorfização, essa “nube convertida en hombre-monstruo” nas palavras de Maria Fernanda de Abreu, contudo, evoca duas imagens fantasmagóricas sancionadas pela tradição. A primeira corresponde à imagem de Adamastor camoniano, o gigante de pedra que simboliza o Cabo da Boa Esperança (o antigo Cabo das Tormentas) e cujo aparecimento é, em Os Lusíadas, precedido por uma “nuvem que os ares escurece” (Camões, 1994, p. 213), e cuja imagem é perpetuada em Mensagem (1934) de Pessoa. A segunda imagem que tenho em mente diz respeito à Criatura de Frankenstein, figura composta de diversas partes corporais, retiradas dos mortos, e animada pela descarga elétrica. Nos dois casos, portanto, temos uma “matéria” inanimada levada à vida por via de eletricidade, natural ou artificial, que fornece uma visão alucinatória. Nos dois casos, também, temos um indício de “tristeza” que circunscreve a “vida” dos dois seres míticos, uma vez que ambos estão infelizmente apaixonados, não correspondidos por serem monstros. A descrição da Lisboa sob uma nuvem negra, transfigurada num monstro de tormenta, não pode ser assim lida só em termos de um registo meteorológico, mas também dentro de um código simbólico-mítico como um corpo dorido, condenado pela vis maior a uma existência triste, cheia de saudade do que nunca houve. Maria Fernanda de Abreu, com efeito, afirma, glosando Bernardo Soares pessoano (a paisagem não é um estado da alma, é um símbolo), que a paisagem é um Mistério, a metafísica, e isto lhe traz o desassossego “causado por una dupla herencia romántica y romántico-simbolista, para lo cual solo hallará reposo en la lectura de los clásicos” (Abreu, 2018, p. 286). Nesta perspetiva, a invocação de dois mestres, Cesário e Alberto Caeiro, pode exprimir o desejo de ser diferente do que se é, o desejo de atenuar o fundo romântico-simbólico que Bernardo Soares sente profundamente em si. Assim, de acordo com Maria Fernanda de Abreu:

... la relación con la “ciudad” parece ser vivida por Fernando Pessoa-Bernardo Soares en esa tensión entre el movimiento espontáneo hacia una "identificación del corazón con el paisaje" y, por otro lado, la necesidad de "sosegarse" de ello. Tendríamos, entonces, en estos momentos, la reflexión, la meditación, si se quiere, la metadescripción, la elaboración, incluso, de pasos hacia una teoría de la descripción y, a veces, la ironía y la auto-ironía. (Abreu, 2018, p. 289).

100 A imagem da trovoada é também fundada na perceção auditiva que atesta certos paralelismos com a poesia de Cesário Verde. A mais ilustrativa e talvez a mais conhecida é a imagem “sonora” da última parte do poema “O sentimento dum ocidental”, em que o silêncio noturno é sublinhado por um som que, num ruído diário, seria completamente despercebido: “Um parafuso cai nas lajes, às escuras” (Verde, 1999, p. 103). O facto de se tratar de um som, e não de uma imagem visual, é reforçado pela escuridão, na qual um simples parafuso não pode ser visto. No caso de Bernardo Soares, por sua vez, as suas páginas do diário fictício são também preenchidas de vários ruídos com os quais a cidade se apresenta quotidianamente (p. ex. “os carros eléctricos rosnam e tinem”, p. 102). Entre estes, Maria Fernanda de Abreu chama a atenção para o repetitivo som da chuva, ouvido do quarto, o som “como se fosse de morte” que enche o sujeito de medo, e também o som do vento, em várias escalas de intensidade e registo emocional (também o vento é antropomorfizado ou animalizado quando o seu som é classificado como “soluço” ou “gemido”) (cf. Abreu, 2018, p. 274).

Além do registo das várias perceções e sensações que o passeante experimenta ao deambular pelas ruas, é curioso notar como a dimensão do exterior penetra dentro do sujeito observador até convergirem num certo tipo de duplicidade. Embora o tópico da duplicidade tenha sido muito aproveitada na prosa oitocentista, sobretudo no que diz respeito à prosa urbana, este tipo de duplicidade soaresiana é essencialmente modernista: aqui, o eu já não se sente perseguido por um outro ameaçador, como acontecia por exemplo nas histórias de Dostoievski (O duplo, 1849) ou Gogol (Contos de Petersburgo, 1842), porque o eu já não se ilude acerca da natureza da sua fusão com o espaço, assumindo-a conscientemente. Nenhum outro representante do modernismo português exprimiu tão forte simbiose com o espaço lisboeta como Pessoa que, além de Livro do Desassossego e poemas (sobretudo do heterónimo Álvaro de Campos), escreveu também em inglês um texto substancialmente olisipógrafo, O que o turista deve ver (escrito nos anos 30, publicado postumamente), um guia da cidade carregado de informações fatuais, históricas e culturais.

Convém salientar que paralelamente à pesquisa olisipógrafa, de teor informativo, abundam nas letras portuguesas muitos textos literários que, nas suas páginas, recriam esse universo tipicamente “alfacinha”, sobretudo dos bairros da cidade velha, com as suas idiossincrasias populares e um certo pitoresco que dá cor e vivacidade aos quadros da vida retratada. Entre os textos deste tipo, escritos na década de 30, sobressai a peça Alfama (1933) de mais um grande representante do modernismo português, António Botto (1897-1959), conhecido sobretudo pela sua poesia invulgarmente pura, melódica e concisa, na qual o autor conseguiu exprimir um tipo de erotismo substancialmente carnal (não muito familiar à tradição

101 da lírica portuguesa). A intriga da peça Alfama, por sua vez, não se centra na problemática do amor homoerótico, como é caraterístico para os poemas de Botto, mas sim num clássico triângulo amoroso que envolve um casal e um pretenso “dandy” de bairro pobre. É bastante curioso que, nesta peça, Botto reflete sobre o adultério feminino, distanciando-se completamente da abordagem positivista vigente no século XIX (O primo Basílio de Eça de Queirós etc.) e privilegiando a perspetiva feminina. Com efeito, a personagem de Júlia, mulher casada com um “proletário” desempregado e alcoólico, a quem de facto sustenta e de quem trata, deixa-se seduzir por um jovem marinheiro, filho da sua senhoria, por quem se apaixonou e de quem esperava um amor “romântico”. Percebendo que não serve para mais que um entretenimento temporário para o jovem, e uma criada para o seu marido, decide-se a sair de