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3. A questão da transdisciplinaridade

3.2. Definindo a transdisciplinaridade

3.2.1. A visão do IEAT sobre a transdisciplinaridade

Apresentamos, por fim, as idéias relacionadas à transdisciplinaridade identificadas na literatura produzida pelo IEAT, um dos dois projetos que compuseram o campo empírico dessa pesquisa.

Domingues e outros quatro pesquisadores, que construíram juntos a proposta de criação do IEAT, põem em relevo o sentido de ‘para além’, ‘passagem’, ‘transição’, ‘mudan- ça’ e ‘transformação’ que tem o prefixo trans, para descrever a transdisciplinaridade como “aquelas situações do conhecimento que conduzem à transmutação ou ao traspassamento das disciplinas, à custa de aproximações e freqüentações” (DOMINGUES et al., 2001, p.18), permitindo pensar o trabalho nas interfaces das disciplinas, a superação de suas fronteiras, a migração de conceitos entre elas e a unificação do conhecimento, numa interação dinâ-

mica construída por processos de auto-regulação e de retroalimentação. Sá Barreto entende a transdisciplinaridade como “uma metodologia que, com base em novos níveis de reali- dade, trabalha no espaço vazio entre as disciplinas e além delas” (SÁ BARRETO, 2001, 29).

QUADRO 2 - Comparação entre conhecimento disciplinar e conhecimento transdisciplinar

CONHECIMENTO DISCIPLINAR (CD) CONHECIMENTO TRANSDISCIPLINAR (CT)

in vitro in vivo

Mundo externo - Objeto Correspondência entre o mundo externo (Objeto) e o mundo interno (Sujeito)

Conhecimento Compreensão

Inteligência analítica Um novo tipo de inteligência - harmonia entre mente, sentimentos e corpo

Orientado para o poder e a posse Orientado para o deslumbramento e a partilha Lógica binária Lógica do terceiro incluído

Exclusão de valores Inclusão de valores Fonte: NICOLESCU, 2002, p.58

Brandão (2008), atual presidente do IEAT, também descreve o que seriam as abor- dagens multi, inter e transdisciplinar:

Multi ou pluridisciplinaridade - justaposição de vários discursos sobre um mesmo pro-

blema ou tema, sem que haja interação ou contaminação recíproca entre eles, sem coor- denação comum, inteligibilidade mútua e sem transformações internas em cada um.

Interdisciplinaridade - conceitos e métodos de diferentes campos são integrados e traba-

lham em uma região comum a esses campos, ainda sem mudanças estruturais em cada campo e sem que um campo contagie ou deforme o outro. Ela ultrapassa as disciplinas, mas está ainda inscrita na pesquisa disciplinar.

Transdisciplinaridade - interação entre saberes que os transforma, deforma e cria um

campo externo a eles, criando uma inteligibilidade mútua; é uma abertura também ao ‘indisciplinado’, o saber que está além do conhecimento científico e fora da universidade, que a ciência considera marginal ou periférico.

A definição de transdisciplinaridade feita por Brandão a aproxima do conceito de ‘ecologia dos saberes’, proposto por Santos (2004c), para quem a ciência precisa deixar de lado o preconceito em relação ao conhecimento externo a ela. Brandão (2008) esclarece que a transdisciplinaridade não é uma superdisciplina, um método a priori, uma metodologia geral, uma negação das disciplinas, um campo de trabalho de um especialista (não é possí- vel existir um ‘especialista em transdisciplinaridade’), uma religião, uma filosofia ou metafí- sica, uma teoria geral, uma nova síntese, uma ciência das generalidades, um saber holístico

e, principalmente, não é uma conquista definitiva e permanente. A transdisciplinaridade é, antes de tudo, um procedimento, uma atitude, contextualizada e referida a um determinado problema de interesse mútuo de especialidades diferentes, na qual se “desconfia de toda homogeneidade cultural e científica universal e de uma teoria demasiado geral” (BRANDÃO, 2008, p.27) e não se aceita o relativismo, a fragmentação e a atomização de práticas sociais e epistemológicas. Para sua instauração, seriam necessários rigor, abertura, tolerância, pru- dência, desenvolvimento da capacidade de escuta, de aprendizado com erros e desvios, ou seja, a disponibilidade para o exercício trans, no sentido de migrar conceitos e procurar conexões entre campos.

Brandão (2008) reafirma que a metodologia da transdisciplinaridade é determinada pelos três pilares já apresentados, a complexidade, a lógica do terceiro incluído e os dife- rentes níveis de Realidade, e ressalta que a transdisciplinaridade não pretende dominar as outras disciplinas, mas “abri-las ao que as atravessa e as ultrapassa” (BRANDÂO, 2008, p.28), o que torna as disciplinas essenciais à instauração do trabalho transdisciplinar. Para ele, a força da transdisciplinaridade é definida pela modificação que ela provoca no sujeito e pelo trabalho nos três pilares a ela associados.

Segundo o filósofo Ivan Domingues, que também já ocupou a presidência do IEAT, a transdisciplinaridade é uma atitude, um modo de olhar, “uma tentativa de restabelecer as co- nexões em domínios onde, hoje, elas estão ausentes, não foram vislumbradas ou não pude- ram ainda ser encontradas” (DOMINGUES, 2005a, p.10), propondo metodologias abrangen- tes e procedimentos unificadores, como alternativa à pulverização do saber e à excessiva especialização das disciplinas, uma vez que a realidade é complexa e diversa, e não pode ser compreendida olhando-se apenas suas partes (especialidades). Para esse autor, a transdisciplinaridade não deve ser vista como uma panacéia universal, ou como uma ‘geléia geral’, mas como a tentativa de instaurar uma abordagem unificadora (DOMINGUES, 2005b). Domingues (2005c) defende que a constituição e expansão das disciplinas é um fato importante, ao qual devem ser creditados os feitos extraordinários das ciências mo- dernas, cujos reflexos perpassam toda a nossa existência, mas que isso redundou na cons- tituição de barreiras que as isolam uma das outras. Para ele, é nos interstícios e nas inter- faces entre as disciplinas que as abordagens multi, inter e transdisciplinares podem encon- trar abrigo, colocando juntos especialistas de diferentes áreas de conhecimento, em torno de um objetivo comum, que pode ser a geração de um artefato tecnológico, uma intervenção urbana, o fomento a um novo campo de conhecimento ou a criação de condições técnicas para a geração da indústria de entretenimento. Ele também distingue essas abordagens, com base no modo de compartilhamento dos objetos e dos programas de pesquisa:

Multidisciplinaridade - caracteriza-se pela aproximação de diferentes disciplinas para

solucionar problemas específicos, em que cada disciplina fica com sua própria metodo- logia e os campos mantêm suas fronteiras, permanecendo imunes ao contato.

Interdisciplinaridade - também envolve a aproximação de diferentes disciplinas para a

solução de problemas específicos, mas há um compartilhamento de metodologia e a geração de uma nova disciplina após a cooperação.

Transdisciplinaridade - suas características são a aproximação de diferentes disciplinas

e áreas do conhecimento, compartilhando metodologias unificadoras e ocupando zonas de indefinição e ignorância de diferentes áreas, mas sem necessariamente gerar novas disciplinas, ficando a transdisciplinaridade “com o movimento, o indefinido e o inconcluso do conhecimento e da pesquisa (DOMINGUES, 2005c, p.25).

Para esse autor, a experiência da transdisciplinaridade exige a instauração de uma inteligência coletiva, através da cooperação de especialistas de vários campos disciplinares (que continuarão existindo, pois é impossível alguém dominar todo o conhecimento dispo- nível em qualquer área), numa reinvenção das atividades científicas e intelectuais, processo que implica o fim do expert que se basta a si mesmo, produzindo um novo intelectual, o qual agrega uma conversão moral ao conhecimento que produz, conversão essa fundada na éti- ca da responsabilidade socialmente compartilhada e na promoção de um novo humanismo (DOMINGUES, 2005c).

A rede é a tópica (o modo de organizar e dispor) que Domingues (2005c) propõe pa- ra o conhecimento transdisciplinar, como a organização das redes da informática, dos neu- rônios e das telecomunicações, pois essa organização permite que as ciências, as tecno- logias e as artes se agrupem em um sistema aberto, sem hierarquia, e introduz referências cruzadas nos campos de conhecimento e nas disciplinas. França (2002) apresenta os termos rede, estrutura reticular, malha e teia como as metáforas da moda para representar o funcionamento na sociedade, ressaltando que, na realidade, a sociedade sempre se confi- gurou na forma de rede. Segundo essa autora, a temática das redes possibilita duas aborda- gens, uma que se refere ao fenômeno empírico, na qual encontramos o desenvolvimento e expansão das tecnologias de informação e a globalização econômica e informacional, e outra que diz respeito ao estatuto teórico da noção de rede, que é também uma metáfora, um conceito para auxiliar na interpretação do funcionamento da sociedade e dos processos comunicativos. O termo rede representa um entrelaçado de fios, um conjunto de nós inter- conectados, e, por analogia, passou a descrever “a interconexão de elementos, processos e sentidos que marcam as relações comunicativas e a construção da vida social” (FRANÇA, 2002, p.59). E Marteleto vê a idéia de rede, que é também transversal a vários campos disciplinares como sendo apropriada, nas ciências sociais, “para se referir ao conjunto diver-

so de relações e funções que as pessoas desempenham umas em relação às outras” (MAR- TELETO, 2000, p.78), dentro das sociedades complexas, uma vez que os indivíduos estão ligados a outros por relações de trabalho, propriedade, afeto e outras, formando uma rede de muitas unidades, na qual existe uma interdependência funcional entre os indivíduos.

A organização em rede seria um elemento fundamental para a produção compar- tilhada de conhecimento. Para Latour e Woolgar (1997), o conhecimento é um efeito de uma rede de materiais heterogêneos, que inclui agentes, instituições sociais, máquinas e organi- zações. O conhecimento, portanto, não é simplesmente o resultado da aplicação de um mé- todo científico privilegiado, é um produto social. O conhecimento assume formas materiais (uma fala, uma conferência, um artigo, um livro, uma patente ou qualquer outra forma de materialização) ou ainda, ele aparece como habilidades incorporadas em cientistas e técni- cos. Ciência, na visão da teoria ator-rede, é um processo de “engenharia heterogênea” que justapõe elementos do social, do técnico, do conceitual e do textual e os traduz para um conjunto de produtos científicos, igualmente heterogêneos. Marteleto defende que aborda- gens como a de Latour e Woolgar apontam

para a oportunidade de se estudarem os processos de produção de conhe- cimentos numa perspectiva estrutural, reticular e relacional, de modo a apre- ender os modos de geração e circulação dos fatos científicos, assim como o sistema de posições dos atores no campo científico e os capitais materiais e simbólicos investidos para a sua reprodução e/ou alteração (MARTELETO, 2007, p.12)

Parrochia (2001) defende que uma investigação sobre o conceito de rede deve levar em conta três realidades: 1) a palavra rede é um conceito científico; 2) nós e ligações, os elementos das redes, já eram importantes em diversas outras fases da história da huma- nidade; e 3) o desenvolvimento das tecnologias eletrônicas de comunicação (rádio, televi- são, telefone, celular etc.) trouxe maior notoriedade à noção de rede, pois possibilitou a ligação instantânea entre seres humanos de qualquer parte do planeta. Redes, segundo esse autor, mais que uma distribuição coerente e ordenada de uma pluralidade de ligações no espaço (configurações), são espaço de circulação, de movimento, que instauram uma racionalidade reticular. Para ele, as redes eletrônicas nos dão, hoje, acesso a um verdadeiro universo informacional, o qual tem uma importância até maior que o universo físico. Mas a própria rede, segundo Domingues (2005c), ainda depende de sustentação teórica e de um

corpus de conceito, uma teoria transdisciplinar.

Domingues (2005c) apresenta também quatro pressupostos relativos à transdiscipli- naridade:

1. Zonas de indefinição e de ignorância existentes nos diversos campos de conheci- mento, interfaceando esses campos, seriam franqueadas à abordagem transdisci- plinar.

2. É possível propor abordagens unificadoras, com conceitos transversais e comparti- lhamento de objetos, temas e problemas.

3. É possível articular e fundir metodologias e procedimentos existentes nos diversos campos de conhecimento, de modo a encontrar uma abordagem unificadora.

4. A distinção entre metodologia e técnicas de pesquisa evitará o choque entre a busca por metodologias compartilhadas e as técnicas e instrumentos de pesquisa especí- ficos dos diversos campos disciplinares.

É possível identificar uma aproximação dessa visão sobre a transdisciplinaridade, apresentada pelos autores ligados ao IEAT, das idéias expressas no Congresso de Locarno, que se basearam na proposta de Basarab Nicolescu.

Uma vez acompanhada a trajetória do conceito de transdisciplinaridade, é necessário investigar que papel cabe à informação nessa discussão, e esse é o tema da próxima seção.