• Nenhum resultado encontrado

5. A metodologia da pesquisa

5.4. O trabalho de campo

O uso de métodos qualitativos é recomendado quando se conhece pouco sobre um fenômeno ou quando se pretende descrevê-lo a partir do ponto de vista do sujeito. Aborda- gens qualitativas são vistas como indutivas, pois hipóteses e teorias emergem durante o procedimento de coleta e análise dos dados, que são examinados pelo pesquisador em bus- ca de descrições, padrões e relações do fenômeno, retornando ao campo para obter mais dados e testar a hipótese assim elaborada (MORSE; FIELD, 1995). Ou seja, a teoria é cons- truída passo a passo, no contexto da pesquisa, sendo relevante somente apenas durante determinado período.

Strauss e Corbin (1998) afirmam que pesquisas qualitativas são aquelas cujos resul- tados não provêm de procedimentos estatísticos ou outros meios de quantificação, mas são estudos “sobre as vidas das pessoas, experiências vividas, comportamentos, emoções e sentimentos, bem como funcionamento organizacional, movimentos sociais, fenômenos culturais e interações entre nações” (STRAUSS; CORBIN, 1998, p.11). Para esses autores, muitos pesquisadores reúnem dados de entrevistas e de observações, técnicas normal- mente associadas com métodos qualitativos, mas os codificam de modo a serem analisados estatisticamente, ou seja, eles estão, na verdade, quantificando dados qualitativos. Apesar de isso ser possível, e às vezes até necessário, a importância dos dados qualitativos é refor- çada quando se faz uma análise interpretativa dos resultados, situação em que esses resultados se tornam a parte fundamental do estudo. Esses autores identificam ainda os três principais componentes da pesquisa qualitativa: 1) os dados, que podem vir de várias fon- tes, como entrevistas, observações, documentos, gravações e filmes; 2) os procedimentos usados pelos pesquisadores para interpretar e organizar os dados, os quais consistem, normalmente, na conceitualização e redução dos dados, na elaboração de categorias em função de suas propriedades e dimensões, e no estabelecimento de relações entre esses dados e uma série de declarações pré-definidas, processo frequentemente denominado de codificação; 3) informações escritas e verbais, que podem estar em artigos científicos, conferências ou livros.

A pesquisa aqui relatada é uma pesquisa qualitativa, de caráter exploratório, na qual o objetivo principal do trabalho de campo não é buscar dados que comprovem uma hipó- tese, mas verificar, no cotidiano de um determinado grupo de pesquisadores, como está se dando a adoção de práticas transdisciplinares. Assim, não há uma teoria a priori, ela é cons- truída ao longo do trabalho, o que possibilitou adotar, na coleta e análise dos dados, a meto-

dologia conhecida como Teoria Fundamentada (Grounded Theory34), sistematizada por Bar- ney Glaser e Anselm Strauss (GLASER; STRAUSS, 1967).

Glaser e Strauss (1967) apresentam a Teoria Fundamentada como uma tentativa de preencher a lacuna entre teoria e pesquisa empírica, objetivo que já havia sido perseguido, porém sem sucesso, por outras tradições metodológicas. Originada de duas linhas de pen- samento diferentes, associadas à formação de seus desenvolvedores, o interacionismo simbólico, da Escola de Chicago (Strauss), e a estatística positivista de Lazarsfeld (Glaser), a Teoria Fundamentada integra essas duas tradições e é aplicável a estudos quantitativos e qualitativos, pois, segundo seus criadores,

não há conflito entre propósitos e capacidades de métodos ou dados quali- tativos e quantitativos [...] toda forma de dados é útil tanto para a verificação quanto para a geração de teoria, qualquer que seja a primazia da ênfase. A primazia depende apenas das circunstâncias da pesquisa, dos interesses e treinamento do pesquisador e dos tipos de materiais que ele necessita para sua teoria (GLASER; STRAUSS, 1967, p.17-18).

Eles consideram, ainda, que os dois tipos de dados, qualitativos e quantitativos, po- dem ser necessários em muitas ocasiões, nas quais podem ser usados de forma comple- mentar, para verificação mútua e comparação. Entretanto, eles focam seu trabalho nos da- dos qualitativos, por considerar que os métodos qualitativos geralmente se mostram mais adequados para identificar elementos da teoria sociológica.

Segundo Glaser e Strauss (1967), uma teoria é um conjunto bem estabelecido de categorias, como temas e conceitos, sistematicamente interrelacionados através de senten- ças de relacionamento (proposições) para formar um arcabouço que permita a compreensão de um fenômeno. Para esses autores, o pesquisador que trabalha com a Teoria Fundamen- tada não busca aplicar uma teoria pré-estabelecida para explicar o fenômeno que estuda, mas constrói uma teoria a partir da observação desse fenômeno. O objetivo, portanto, não é simplesmente descrever um fenômeno, mas desenvolver uma teoria a partir dele. Também Strauss e Corbin esclarecem que o termo Teoria Fundamentada significa “aquela que é deri- vada dos dados, sistematicamente coletados e analizados ao longo do processo de pes- quisa” (STRAUSS; CORBIN, 1998, p.12). Sua ênfase é na geração da teoria, em vez de na sua comprovação (GLASER; STRAUSS, 1967).

Bandeira-de-Mello e Cunha (2003) enxergam a Teoria Fundamentada como um mé- todo científico que utiliza procedimentos sistemáticos de coleta e análise dos dados visando gerar, elaborar e validar teorias sobre fenômenos ou processos sociais. É um método inter-

34

A expressão Grounded Theory costuma também ser traduzida como Teoria Fundamentada nos Dados.

pretativo, que busca explicar a realidade a partir dos significados que os envolvidos atribuem às suas experiências, que se diferencia de outros métodos subjetivistas, como a fenomeno- logia e a etnografia, pelo fato de que a coleta dos dados, a análise, a formulação e a vali- dação da teoria são tratadas como reciprocamente relacionadas, em um processo indutivo de interpretação e em um processo de dedução e validação de proposições.

Minayo (1992) enfocando a pesquisa qualitativa em saúde, divide sua realização em três fases: 1) fase exploratória, em que são feitas a definição do objeto (elaboração de per- gunta dentro da área de interesse, pesquisa bibliográfica e organização do discurso teórico), a construção de instrumentos de pesquisa (roteiro de entrevista, critérios para observação e itens para discussão em grupos focais) e a exploração de campo (escolha do grupo de pes- quisa, definição de critérios de amostragem e estabelecimento de estratégia de entrada em campo); 2) fase de trabalho de campo, que pode ser a realização de entrevistas, a observa- ção participante, discussões em grupo ou combinações desses instrumentos; e 3) a fase de análise ou tratamento do material, por meio de métodos como análise do conteúdo, análise do discurso ou hermenêutica-dialética. Quando se trabalha com a Teoria Fundamentada, essas etapas apresentam uma interdependência e encadeamento circular, com as ativi- dades ocorrendo simultaneamente (GLASER; STRAUSS, 1967). As três atividades princi- pais, nesse processo, são a amostragem teórica, a codificação e a redação da teoria.

De acordo com Glaser e Strauss (1967), na amostragem teórica, o pesquisador decide que dados vai coletar em seguida, em função da análise que vem realizando. Uma amostragem estatística é realizada com o objetivo de obter uma evidência acurada na distri- buição de pessoas entre categorias a serem estudadas para descrições e verificações de fenômenos. Já a amostragem teórica tem o objetivo de mostrar eventos que sejam indica- tivos de categorias e não de pessoas. Na Teoria Fundamentada, a amostragem adotada é teórica, e não estatística, porque o número de sujeitos ou situações incluídos no estudo é definido pelo que seus criadores chamaram de saturação teórica, que ocorre quando as informações começam a se repetir, sem que surjam dados novos ou adicionais. A identifica- ção da ocorrência da saturação teórica está ligada à sensibilidade teórica do pesquisador, ou seja, sua habilidade de dar significado aos dados e sua capacidade de separar o que é e o que não é pertinente para sua pesquisa, que são desenvolvidas a partir do conhecimento científico acumulado pelo pesquisador e de sua experiência profissional e pessoal (STRAUSS; CORBIN, 1998).

Glaser e Strauss (1967) esclarecem ainda que a amostra teórica é realizada com o objetivo de descobrir categorias e suas propriedades, e também sugerir interrelações dentro da teoria. Strauss e Corbin (1998) descrevem a amostra teórica como aquela em que os dados devem ser coletados até que nenhum dado relevante emirja, que a categoria esteja

bem desenvolvida em termos de suas propriedades e dimensões e que se configure o relacionamento entre as categorias.

No caso desta pesquisa, cujo trabalho de campo consistiu na realização de entre- vistas semi-estruturadas com atores envolvidos na discussão sobre transdisciplinaridade na UFMG, a definição da amostra foi intencional, não-aleatória, buscando incluir indivíduos cujo envolvimento com os projetos e com o desenvolvimento de pesquisas pudesse auxiliar na compreensão dos temas estudados. Para o IEAT, essa seleção foi feita a partir da leitura de artigo publicado em livro editado conjuntamente pelo IEAT e pela Editora UFMG (DOMIN- GUES, 2001), no qual é descrito o processo que culminou na criação do Instituto. Foram incluídos, então, os cinco pesquisadores que participaram da comissão que definiu a pro- posta de criação do instituto, o ex-reitor que efetivou essa proposta, a vice-reitora durante seu mandato, o diretor atual e dois pesquisadores que fizeram residência no instituto, um que já havia encerrado seu período de residência e outro que ainda estava exercendo essa atividade. Para o estudo do Projeto Manuelzão, a seleção foi feita com base na estrutura organizacional apresentada no sítio do projeto na Internet, sendo incluídos todos os coorde- nadores de área.

A solicitação de entrevista foi feita primeiramente por e-mail, por ser essa uma forma de comunicação que interfere menos no trabalho do pesquisador que o telefone ou o con- tato pessoal. É preciso ressaltar aqui a pronta disponibilidade desses pesquisadores, todos de competência reconhecida nacional e internacionalmente e, em decorrência disso, de agenda carregada, em participar da pesquisa. Apenas dois dos incluídos no grupo inicial, um de cada projeto, não se dispuseram a atender ao pedido. O grupo final de atores entrevistados, num total de 19, está descrito de forma resumida no quadro 5. Informações mais detalhadas sobre o grupo são apresentadas no Apêndice 10.

QUADRO 5 - Atores entrevistados Origem Descrição Participantes

IEAT Grupo que elaborou a proposta de criação do IEAT

5 (dos quais 3 dirigiram o IEAT após sua fundação) Reitorado que criou o Instituto 1

Diretoria atual do Instituto 1 Professores residentes do Instituto

2 Manuelzão Coordenadores do Projeto 10

Total 19

As entrevistas foram realizadas buscando levantar informações, experiências e per- cepções dos entrevistados sobre as mudanças que estão ocorrendo no mundo do conhe- cimento, com ênfase na instauração e disseminação do trabalho transdisciplinar. Os roteiros

básicos de entrevista, que podem ser encontrados nos apêndices 11 e 12, incluíram um conjunto de questões distribuídas em oito blocos:

• Bloco 1 - criação e funcionamento do projeto: surgimento, objetivos, atores envolvidos, funcionamento organizacional e interação com o outro projeto estudado.

• Bloco 2 - participação no projeto: período de permanência, motivação, objetivos e ativi- dades.

• Bloco 3 - conhecimento científico: situação atual da ciência, relações com o estado, o mercado, a técnica, a cultura e com outras formas de conhecimento.

• Bloco 4 - universidade: respostas à globalização e validade do tripé ensino-pesquisa- extensão nas universidades brasileiras.

• Bloco 5 - transdisciplinaridade: conceito, prática e participação em eventos relacionados ao tema.

• Bloco 6 - informação: conceito, papel na transdisciplinaridade e forma de divulgação do trabalho de pesquisa

• Bloco 7 - tecnologias de informação e comunicação: relação com a transdisciplinaridade e transformações que trouxeram para o mundo do conhecimento, entre elas a utilização de arquivos abertos (open archives) para divulgação de resultados de pesquisas.

• Bloco 8 - redes: conceito, relação com a transdisciplinaridade e participação em redes de pesquisadores.

Durante as entrevistas, a partir das falas dos pesquisadores, novas questões eram elaboradas e novas perspectivas se abriam para análise dos temas abordados. As entre- vistas foram transcritas em sua íntegra, como preconizado pela Teoria Fundamentada, para permitir a realização da análise, fase crucial da metodologia, uma vez é nela que a teoria emerge dos dados (BANDEIRA-DE-MELLO; CUNHA, 2003). A análise dos dados tem como parte central a codificação, que consiste em procedimentos para rotular e analisar os dados coletados, com os códigos podendo ser classificados em categorias, que representam um fenômeno, ou subcategorias associadas.

A análise das entrevistas envolveu a seleção de trechos que fornecessem inferências que permitissem discutir o objeto da investigação e a classificação desses trechos dentro de categorias e subcategorias construídas durante a análise, o que foi feito utilizando uma fer- ramenta de tecnologia da informação e comunicação desenvolvida para auxiliar no processo de análise de conteúdo em pesquisas qualitativas, procedimento recomentado por Bandeira- de-Mello e Cunha (2003). Foi obtida uma versão de demonstração do programa Atlas.ti, desenvolvido com base nos princípios da metodologia Teoria Fundamentada. Uma versão anterior desse programa já havia sido usada por esta autora durante a análise dos dados coletados na pesquisa realizada no mestrado. Naquela pesquisa, e também nesta, foram

utilizadas apenas as funcionalidades básicas que o programa oferece, mas elas foram sufi- cientes para imprimir agilidade ao processo de análise e simplificar a recuperação de dados relevantes. As categorias e subcategorias de análise utilizadas na análise do material produ- zido nessa pesquisa estão relacionadas no quadro 6, apresentado a seguir.

QUADRO 6 - Categorias de análise Categorias Subcategorias

Projetos História

Participação do entrevistado

Conceito norteador (saúde/transdisciplinaridade) Adoção da ecologia dos saberes

Interação com o outro projeto estudado Conhecimento Situação atual

Papel do Estado Papel do mercado

Relação com a sociedade Relação com a cultura Relação com a técnica Universidade Situação atual

Resposta à sociedade Tripé ensino-pesquisa-extensão Transdisciplinaridade Conceito Prática Reconhecimento da transdisciplinaridade Transdisciplinaridade x departamentalização Participação em eventos Conceitos transversais Informação Conceito Transversalidade da informação Divulgação de trabalho

Tecnologia TICs e transdisciplinaridade

TICs e produção, comunicação e uso do conhecimento

TICs e democratização do acesso à informação Open archives

Redes Conceito

Redes e transdisciplinaridade Participação em redes

Um dos problemas cruciais quando se reliza uma pesquisa qualitativa é sua vali- dação. Minayo (1992) sugere que a validação de pesquisas qualitativas passa pela triangu- lação, que ela define com sendo a combinação e cruzamento de pontos de vista diferentes, o que pode ser obtido pelo trabalho conjunto de vários pesquisadores ou pelo uso de múl- tiplas fontes de dados e múltiplas técnicas de coleta de dados. A triangulação permite bus- car divergências que possam revelar novos facetas sobre o fenômeno. Tendo isso em vista,

alguns outros instrumentos foram utilizados para complementar as informações obtidas nas entrevistas realizadas na pesquisa. Havia a intenção de identificar, entre os grupos de pesquisa que a UFMG tem certificados no Diretório dos Grupos de Pesquisa da Plataforma Lattes do CNPQ, quais teriam um perfil multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, mas esse dado não é ali registrado, por isso a única aproximação possível dessa informação foi pela verificação da existência dessas palavras no nome do grupo: não foi encontrada qualquer incidência da palavra multidisciplinar, seis para interdisciplinar e ape- nas duas para transdisciplinar.

A partir de dados obtidos no Diretório dos Grupos de Pesquisa da Plataforma Lattes, foi elaborado um quadro que relaciona os grupos e linhas de pesquisa dos quais participam os pesquisadores entrevistados, apresentado no Apêndice 15. No quadro, a coluna Árvore

do conhecimento permite verificar se nesses grupos e linhas de pesquisa participam pesqui-

sadores de mais de um campo de conhecimento, o que não acontece em praticamente nenhum dos grupos levantados. O campo Setores de Aplicações dá uma idéia da possibili- dade de aplicação dos resultados da pesquisa, tão exigida na ciência contemporânea. O campo Relações com o setor produtivo, existente no diretório, permite verificar se a pes- quisa estabelece relações com setores externos à universidade, mas ele só estava preen- chido para quatro grupos de pesquisa, por isso essa informação não foi incluída no quadro, sendo colocada apenas como observação, ao seu final.

A última etapa de uma pesquisa realizada tendo como base a Teoria Fundamentada é a redação da teoria (GLASER; STRAUSS, 1967). Geralmente, segundo Glaser e Strauss (1967, pesquisadores buscam, nos dados que coletam, evidências que lhes permitam testar suas hipóteses. Entretanto, esses autores sugerem que a meta principal da pesquisa social deve ser a geração sistemática de novas teorias a partir dos dados. Isso é feito por meio da especificação das relações entre as categorias, o que exige um grande esforço de recupe- ração e integração das informações codificadas. Strauss e Corbin (1998) defendem que a teoria gerada a partir da aplicação da Teoria Fundamentada deve apresentar as seguintes características: a) coerência entre os dados e resultados; b) compreensão pelo envolvidos; c) generalização suficiente, que permita considerar variações da ocorrência do fenômeno; e d) controle na previsão das ações dos envolvidos. Deve ainda ser coerente com a realidade da área especificada para o estudo e ser compreendida tanto pelos sujeitos envolvidos quanto por outros pesquisadores.

No caso da pesquisa aqui relatada, essa etapa consiste na apresentação e discus- são dos resultados encontrados no trabalho de campo, o que é feito no próximo capítulo.