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4. Universidade: espaço de produção de conhecimento e campo de lutas

4.2. O campo acadêmico-universitário como campo de lutas

A ciência precisa ser alvo, ela mesma, de investigação, como bem o mostrou o sociólogo francês Pierre Bourdieu, para quem o sujeito que pratica a ciência, o pesquisador, deve aplicar a seu trabalho todas as proposições enunciadas pela própria ciência, pondo à prova as teorias e conceitos por ele utilizados, mesmo que não seja tarefa fácil separar o discurso da ciência da lógica em que ela funciona (BOURDIEU, 1982). Bourdieu considera necessário pensar cientificamente o próprio mundo científico, pois a crítica científica só re- força a ciência. Isso implica buscar perceber ali “as estratégias simbólicas que visam impor a verdade parcial de um grupo como a verdade das relações objetivas entre os grupos” (BOURDIEU, 1982, p.23), pois só analisando o jogo que se joga no mundo acadêmico, visto como um espaço de posições objetivas, é possível compreender os interesses em participar dele e os conluios que disso resultam.

O conceito de campo, utilizado em várias áreas do conhecimento, foi apropriado por diversos autores da sociologia, especialmente por Pierre Bourdieu, para quem esse con- ceito se tornou uma ferramenta analítica fundamental. De acordo com o próprio Bourdieu,

esse conceito foi elaborado a partir da leitura de um capítulo do livro Wirtschaft und Gesell-

shaft17, de Max Weber, capítulo consagrado à sociologia religiosa (BOURDIEU, 2007b). A visão interacionista das relações proposta por Weber abriu-lhe uma alternativa às interpre- tações e explicações até então utilizadas na análise da produção cultural, permitindo-lhe criar um conceito que expressava o pensamento relacional, por ele considerado mais ade- quado para essa análise. Segundo Wacquant (2002, p.98), campo, para Bourdieu, designa “espaços relativamente autônomos de forças objetivas e lutas padronizadas sobre formas específicas de autoridade”, trazendo uma revisão à noção de estrutura, ao incorporar a ela um dinamismo histórico que não tinha originalmente, por ser estática e reificada. Para Ortiz (2003), o campo, no trabalho de Bourdieu, é um território, um lugar específico produzido pela sociedade, hierarquizado, que segue uma lógica de interesses, e no qual um grupo de atores se agrupa, interage, se complementa e, também, entra em conflito. Esse espaço de produção simbólica se presta a uma leitura sociológica, à qual Bourdieu se dedicou com afinco, abordando campos diversos, como o partidário, o artístico, o religioso, o literário e, especialmente, o campo científico (BOURDIEU, 2003), no qual ele, antes de mais nada, enxerga um campo de lutas como qualquer outro, sendo a verdade, o conhecimento, um dos resultados dessas lutas (BOURDIEU, 1982).

Bourdieu introduz sua noção de campo como um microcosmo, espaço relativamente autônomo de forças e de lutas que buscam transformar esse campo (BOURDIEU, 2003, 2004). Ele define o sistema de produção e circulação de bens simbólicos como “o sistema de relações objetivas entre diferentes instâncias definidas pela função que cumprem na divi- são do trabalho de produção, de reprodução e de difusão de bens simbólicos” (BOURDIEU, 2007a, p.105). A estrutura das relações que constituem o campo é que define que relações podem ali ser visíveis e mesmo o conteúdo das experiências que os atores que dele par- ticipam podem ter (BOURDIEU, 1982).

No caso específico do campo científico, a estrutura de relações objetivas estabe- lecidas entre os agentes envolvidos é determinada pela distribuição do capital científico, um tipo especial do capital simbólico, que é fundado em atos de conhecimento e reconhe- cimento. Dentro do campo científico, o reconhecimento é atribuído pelos pares (outros pes- quisadores), os quais são, ao mesmo tempo, concorrentes no interior do campo. Tal reco- nhecimento diz respeito a uma competência que proporciona autoridade e contribui para a definição das leis de distribuição do capital intelectual. A estrutura de relações assim defi- nida comanda os princípios de funcionamento do campo, ou seja, “os pontos de vista, as

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WEBER, Max; Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. São Paulo: Impr. Oficial; Brasília: Ed. UnB, 2004. 2v.

intervenções científicas, os lugares de publicação, os temas que escolhemos, os objetos pelos quais nos interessamos” (BOURDIEU, 2004, p.23).

O campo científico é, também, um lugar de luta concorrencial pelo monopólio da autoridade científica, ou monopólio da competência científica, a capacidade legitimada de falar e agir, com a autoridade de quem recebeu da sociedade a autorização para fazê-lo (BOURDIEU, 2003). A imagem do pesquisador altruísta, desinteressado, não cabe nessa visão, pois, para Bourdieu (2003, p.123), “o próprio funcionamento do campo científico pro- duz e supõe uma forma específica de interesse”, estando as práticas científicas orientadas para a aquisição da autoridade científica, associada a prestígio, reconhecimento, competên- cia, celebridade e outros bens de valor simbólico.

Não basta, portanto, que uma pesquisa tenha importância intrínseca para o pesqui- sador, é necessário que sua importância seja reconhecida pelos outros. Na luta científica, está sempre em jogo a posição dominante, aquela que permite aos participantes impor “uma definição de ciência segundo a qual a realização mais perfeita consiste em ter, ser e fazer aquilo que eles têm, são e fazem” (BOURDIEU, 2003, p.128). Os dominados sempre podem subtrair-se dessa classificação legitimada e mudar sua visão de mundo (BOURDIEU, 1982), mas, nesse lugar de luta política pela dominação científica, as escolhas feitas por um pes- quisador (campo da pesquisa, metodologia, objetos de interesse, temas, quando divulgar o trabalho, meio de divulgação etc.) não são escolhas feitas apenas por seu caráter científico, mas estratégias políticas de investimento orientadas para a obtenção do reconhecimento pelos pares-concorrentes, os quais, por causa da concorrência, são pouco dispostos a oferecer tal reconhecimento sem discussão ou exame (BOURDIEU, 2003). Esses pares são, ao mesmo tempo, os juízes e as partes interessadas, o que pode gerar um problema no jul- gamento, uma vez que não há no processo outras instâncias encarregadas de validar a ins- tância de legitimação pelos pares. Além disso, a definição dos objetos importantes de serem estudados, num determinado momento, é sempre feita pelos pesquisadores dominantes na estrutura do campo. Portanto, os conflitos intelectuais presentes no campo científico são também conflitos de poder, com uma dimensão política e uma dimensão científica, com pesos que variam segundo o campo e a posição no campo, e ambas devem ser levadas em conta (BOURDIEU, 2004).

De acordo com Bourdieu, a autonomia de um campo de produção erudita pode ser medida tomando como base o “poder de que dispõe para definir as normas de sua produção, os critérios de avaliação de seus produtos e, portanto, para retraduzir e rein- terpretar as determinações externas de acordo com seus princípios próprios de funciona- mento” (BOURDIEU, 2007a, p.106). Um campo que goza de autonomia rejeita definições e demandas externas acerca de suas funções e tende a excluir aqueles que se subme- tem a essas demandas. Nesse campo, os produtos destinam-se, na realidade, a um pú-

blico de pares, os quais são, ao mesmo tempo, concorrentes que competem entre si pela legitimidade cultural. Tais características são reconhecidas no campo científico, um mun- do social relativamente autônomo que tem uma lógica própria e cujas imposições e solicitações gozam de relativa independência das pressões externas, oriundas do mundo social em que está inserido (BOURDIEU, 2004). Para Bourdieu, mesmo instituições cien- tíficas que utilizam a retórica da ‘demanda social’ e reconhecem as funções sociais da ciência, o fazem, na realidade, para “assegurar uma forma relativamente indiscutível de legitimidade e, simultaneamente, um acréscimo de força simbólica nas lutas internas de concorrência pelo monopólio da definição legítima da prática científica” (BOURDIEU, 2004, p.47). Mas um paradoxo marca os campos científicos: o fato de serem financiados pelo Estado lhes traz autonomia em relação ao mercado, mas os coloca em uma posição de dependência do primeiro, o qual pode se sentir no direito de impor-lhes condições ou de repassar-lhes pressões de forças econômicas.

O campo científico tem suas próprias leis de funcionamento, as quais determinam a estrutura de posições possíveis do campo e o sistema de mecanismos sociais de preen- chimento dessas posições, que vai garantir a reprodução dessa estrutura (BOURDIEU, 2007a). Fatores sociais levam à construção dessas leis, entre os quais sobressaem-se os fatores estruturais, como a posição das disciplinas na hierarquia da ciência e a posição dos produtores (os cientistas) na hierarquia de cada disciplina. Essa posição torna a luta no campo científico uma luta desigual (BOURDIEU, 2003), pois os concorrentes diferem no capital específico com que dela participam e na capacidade de se apropriar do produto do trabalho científico que resulta do trabalho colaborativo do conjunto desses concor- rentes. Temos aí os dominantes, aqueles que ocupam as posições mais altas na hierar- quia do capital científico, e os dominados, os novatos, cujo capital científico terá sua im- portância associada à importância do próprio campo. Os dominantes buscam perpetuar a ordem científica com a qual compactuam, restando aos novatos dois caminhos possí- veis: adotar estratégias de sucessão, que significa seguir uma carreira previsível, dentro dos limites autorizados pelos dominantes, ou a subversão, que consiste em recusar essa carreira traçada, na busca pela redefinição dos princípios de legitimação da dominação. A escolha da segunda alternativa significa investir (em termos de trabalho científico) sem esperar lucros (reconhecimento de sua autoridade científica) em curto prazo, pois se trata de agir contra a lógica do sistema.

Após discutir a evolução da instituição universitária, as crises que ela enfrenta e a luta pelo poder que se desenvolve no campo científico, é preciso voltar o olhar especifica- mente para a universidade brasileira, o que é feito na seção a seguir.