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1. Fundamentos Teóricos para Análise do Crescimento e do Desenvolvimento

1.2 Keynes e Kalecki: Demanda Efetiva, Ciclo e Tendência

1.2.4 Acelerador Ciclo e tendência

1.2.4.1 A função investimento de Kalecki

A função de investimento sugerida por Keynes descreve-o como um gasto autônomo em relação à renda da economia e função das expectativas exógenas de longo prazo dos agentes. Esta visão pode ser complementada a partir da teoria do acelerador, desenvolvida por outros autores79, cuja hipótese básica é a de que o investimento, na medida em que visa ampliar a capacidade produtiva e compor estoques, deve responder a variações ocorridas e previstas no nível de atividade econômica80.

Kalecki aponta como primeiro fator determinante do investimento a capacidade de autofinanciamento da empresa. Este elemento é especificado em seu modelo a partir de uma fração, menor do que a unidade e estável, da poupança privada, proxy da poupança das empresas e ao mesmo tempo proxy dos lucros retidos. Os lucros retidos, além de poderem ser usados como fonte de financiamento, fortalecem a posição da empresa em termos de capital próprio, facilitando a obtenção de fundos externos81.

A importância do capital próprio está relacionada ao princípio do risco crescente. Em primeiro lugar, o endividamento crescente das firmas aumenta o risco do emprestador, que se preocupa com a capacidade dos empresários de saldarem suas dívidas antigas e novas. Logo, o volume de capital que a firma pode esperar obter de investidores externos e/ou credores é

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Ver Kalecki (1983, cap.8)[1954], para uma versão aperfeiçoada do acelerador.

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A defasagem presente na função investimento de Kalecki representa tanto o tempo decorrido entre a avaliação dos capitalistas das alterações na economia e suas decisões, como o tempo médio decorrido entre a tomada das decisões e a maturação do investimento. Estas defasagens apresentam grande dispersão setorial e mudam com a estrutura da economia.

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Kalecki considera incerto o valor do coeficiente que multiplica a poupança na equação do investimento, devendo situar-se em torno da unidade. Esta incerteza deve-se aos fatores contraditórios que influenciam sua determinação: por um lado, há a facilidade conferida pela poupança interna à obtenção de recursos externos; por outro, a poupança interna das firmas é apenas parte da poupança total; e há o limite imposto pelo próprio mercado à expansão continuada das empresas. Neste ponto, Kalecki mistura questões teóricas e estatísticas, postulando alguma compulsão automática ao reinvestimento dos lucros retidos sem considerar as condições competitivas do mercado. A motivação para o investimento está nos fatores autônomos e induzidos, à frente apresentados. Assim, a poupança, na função investimento, deveria ser multiplicada por uma variável (e não por um coeficiente) que seria acionada com o intuito de manter um grau de endividamento máximo considerado adequado, tendo em vista a aversão ao risco do empresário, e seria preciso incluir uma equação de restrição financeira efetiva. Como coloca Possas, M. (1999a, p.44, nota de rodapé 36): “O problema neste termo está mais na especificação inadequada dessa influência, que a meu ver deveria ser expressa não em termos de uma função linear de uma variável contínua, mas de uma restrição, portanto não-linear. Do contrário resulta que, estranhamente, haveria uma tendência ao reinvestimento automático, mesmo na ausência de motivos para investir ligados às condições de mercado – ou seja, mesmo que os demais termos fossem nulos”. Ver, também, Possas, M. (1987, p.127-8).

determinado, fundamentalmente, pelo volume de capital próprio, cujo aumento reduz o risco de insolvência. Em segundo lugar, o próprio empresário se impõe um limite de endividamento ou emissão de ações (no caso de sociedades anônimas), que varia de acordo com a aversão do empresário a ficar inadimplente e a correr o risco de se descapitalizar, ou até de perder o controle de seus negócios, em caso de fracasso no mercado. Assim, o endividamento pode estabelecer um limite ao investimento, em função dos riscos crescentes do emprestador e do tomador – “a expansão de uma firma depende de sua acumulação de capital a partir dos lucros correntes”82.

Os componentes induzidos do investimento são função das elevações no lucro, que ampliam o leque de oportunidades consideradas atrativas, e do incremento líquido de capacidade produtiva resultante, que reduz a taxa de lucro esperada caso os lucros se mantenham constantes83. Estas considerações refletem a “necessidade de ajustar a capacidade produtiva das empresas ao crescimento esperado das vendas, projetado com base no crescimento recém-verificado”84, observando, porém, a capacidade ociosa existente, em conseqüência, por exemplo, de erros de expectativas passadas85.

O componente autônomo do investimento, para Kalecki, está relacionado aos chamados “fatores de desenvolvimento”, como os gastos em inovação, em infra-estrutura, gastos públicos anti-cíclicos e em ampliação da capacidade produtiva à frente da demanda nos setores com longo período de maturação, ou seja, aos gastos que estão desvinculados do nível e da variação da renda corrente. O investimento autônomo é uma variável exógena (e não parâmetro), constante a curto prazo e variável a longo prazo, responsável pela tendência da economia.

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Kalecki (1983, p.76)[1954]. A questão do risco crescente é apresentada por Kalecki no capítulo 8 deste livro. Keynes também ressalta esta questão tanto do ponto de vista do tomador como do emprestador. Ver Keynes (1988, p.106)[1936]. Na teoria de Keynes, este risco é incorporado e afeta o investimento, como foi visto, via taxa de risco e incerteza, que diminui o preço de demanda e a eficiência marginal do capital.

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Na função investimento de Kalecki, o coeficiente que multiplica a variação do lucro na equação reflete o comportamento otimista do empresário: quão maior este coeficiente, mais o empresário está suscetível a ser influenciado por variações positivas no lucro. O coeficiente que multiplica a variação de capital reflete o comportamento pessimista: quão maior este coeficiente, menos o empresário irá investir por receio de operar com capacidade ociosa.

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Possas, M. (1987, p.129).

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Quanto ao acelerador desenvolvido por Harrod e aprimorado por A. Sen, Possas ressalva: “(o) acelerador usado na função investimento é fortemente irrealista, na medida em que se limita a projetar o crescimento esperado da renda (demanda agregada), sem levar em conta a possibilidade de que a utilização da capacidade produtiva anterior esteja fora (abaixo ou acima) do nível desejado, o que obviamente deve afetar as decisões de investir”. Possas, M. (1987, p.117). No mesmo sentido, Kalecki observa que: “Com respeito ao problema teórico, pareceria mais realista fundar o ‘princípio de aceleração’ nas bases sugeridas acima do que deduzi-lo a partir da necessidade de capacidade de expansão para aumentar a produção. É bem sabido que existe capacidade ociosa em elevado grau, pelo menos durante boa parte do ciclo, e que a produção, portanto, pode aumentar sem um aumento real da capacidade existente”. Kalecki (1983, p.82)[1954].

O investimento em estoque é incorporado supondo-o proporcional à variação no nível de produção ou de vendas e com aproximadamente o mesmo retardo do investimento em capital fixo. A hipótese de proporcionalidade defasada é justificada da seguinte maneira:

(O) hiato temporal significativo entre causa e efeito (...) se explica pelo fato de que uma elevação na produção e nas vendas não cria qualquer necessidade imediata de uma elevação dos estoques. É só depois de algum tempo que os estoques se ajustam ao novo nível – mais elevado – da produção.86

Kalecki resume sua teoria do investimento na passagem reproduzida a seguir:

De acordo com essa teoria, o investimento em capital fixo por unidade de tempo é determinado (com um hiato temporal) por três fatores: (1) pela poupança bruta ‘interna’ corrente das firmas; (2) pela taxa de elevação dos lucros; e (3) pela taxa de elevação do volume de capital em equipamentos. As duas primeiras influências são positivas e a terceira é negativa. Entende-se que o investimento em estoques é determinado pela taxa de elevação da produção. 87

Para chegar à equação final do investimento, Kalecki reescreve cada um dos fatores de sua função em termos do próprio investimento. Neste sentido, a poupança é substituída pelo investimento, a variação de capital pelo investimento bruto menos a depreciação88, e a variação no lucro e na renda por seus respectivos multiplicadores do investimento. O multiplicador do investimento defasado para a renda é definido a partir da equação de determinação dos salários e ordenados como uma fração da renda mais uma constante, substituindo os salários e ordenados pela diferença entre a renda e os lucros e a reordenando para estabelecer a renda em função dos lucros89. O multiplicador do investimento com hiato temporal para o lucro, por sua vez, é determinado a partir da igualdade entre a soma dos lucros e salários, por um lado, e a soma do investimento e consumo, por outro, considerando que os trabalhadores consomem toda sua renda e que o consumo do capitalista depende do lucro passado90.

Como resultado, o investimento futuro fica determinado pelo investimento corrente e pela variação do investimento num passado recente91. Nesta equação, o parâmetro que multiplica o termo relativo ao investimento corrente é suposto menor do que a unidade e “representa a influência sobre as decisões de investir exercida pela poupança corrente e 86 Kalecki (1983, p.87)[1954]. 87 Kalecki (1983, p.133)[1954]. 88 Kalecki (1983, p.85)[1954]. 89 Kalecki (1983, p.47-49)[1954]. 90 Ver Kalecki (1983, p.41-44)[1954]. 91

“Conclui-se que o investimento a um dado tempo é determinado pelo nível e pela taxa de modificação do nível de investimento numa ocasião anterior”. Kalecki (1983, p.99)[1954].

também o efeito negativo do aumento dos equipamentos”92; o parâmetro que multiplica o segundo termo, relativo à variação do investimento num passado recente, “representa a influência da taxa de modificação dos lucros e da produção”93. A equação final engloba, portanto, o investimento fixo bruto (líquido mais depreciação) e o investimento em estoque, considerando os determinantes induzidos, autônomos e financeiros; e, como será visto a seguir, permite tirar conclusões dinâmicas que complementam a teoria de Keynes.

1.2.4.2 Ciclo e Tendência

Com o intuito de analisar as flutuações cíclicas da economia, Kalecki re-escreve a equação do investimento em termos do investimento líquido, supondo que o componente autônomo assume o valor necessário para manter o investimento flutuando apenas em torno do nível de depreciação, sem tendência. A explicação apresentada por Kalecki para a presença de flutuações cíclicas na economia é intuitiva. O movimento resultante depende, na verdade, do valor dos coeficientes. Sob determinadas condições não demonstradas pelo autor, o investimento flutuará em torno do nível de depreciação, seguido por “flutuações da renda, da produção e do nível de emprego”94, 95.

De acordo com Kalecki, os ciclos poderiam estar presentes mesmo se os parâmetros determinassem uma trajetória exponencial. Neste caso, a taxa de crescimento pode ser maior, menor ou igual à taxa de crescimento do produto potencial. Se for maior, a economia é detida pela escassez de equipamentos e de mão-de-obra e reverte sua trajetória, seguindo, então, o mecanismo cíclico. No caso de uma depressão, se não houver uma reversão “automática”, a economia se deterá num nível mínimo de atividade, pelo fato de o investimento bruto em capital fixo não poder cair abaixo de zero e pelo limite de desinvestimento de estoques existentes, iniciando, adiante, a recuperação, também nos moldes descritos para o ciclo. A presença de “tetos” e “pisos” faz com que a possibilidade de flutuação seja grande. Seus

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Este parâmetro é suposto por Kalecki menor do que a unidade a partir, basicamente, de dados empíricos. Ver Kalecki (1983, p.86)[1954]. 93 Kalecki (1983, p.101)[1954]. 94 Kalecki (1983, p.103)[1954]. 95

Tendo em vista a equação final do acelerador em termos de investimento líquido: it+ θ = [a/(1+c)].it + μ.Δit/Δt, Kalecki

afirma: “As considerações acima baseavam-se na suposição de que os coeficientes de a/(1+c) e μ são de molde a provocar a detenção automática da elevação do investimento na fase de prosperidade e a detenção da queda do investimento na fase de depressão”. Kalecki (1983, p.104)[1954]. Como pode ser visto a partir da interpretação proposta por Possas, M. (1987, p.146- 154), é possível chegar às conclusões de Kalecki de forma rigorosa. Tomando como unidade de tempo do modelo “o intervalo normal entre duas decisões consecutivas de investir” Possas, M. (1999a, p.36) (despreza defasagem do consumo), então a equação do investimento de Kalecki pode ser reescrita em termos de uma equação a diferenças finitas de segunda ordem. As flutuações serão cíclicas quando a solução da equação característica apresentar raízes complexas conjugadas. Segundo Possas, aplicando valores realistas dos parâmetros, chega-se a um ciclo com flutuação regular e com média caracterizando um Juglar. Ver Possas, M. (1989b).

efeitos influenciarão da mesma forma trajetórias marcadas por flutuações explosivas. Ainda que as flutuações sejam amortecidas, os ciclos serão mantidos pela presença de perturbações aleatórias inerentes à relação entre investimento, lucro e produção, conforme retratada por Kalecki96.

O que explica o fato de a economia seguir uma trajetória cíclica “no caso normal em que os parâmetros assumam os valores adequados, dispensando hipóteses exógenas às equações”97 é o efeito dual e defasado do investimento. Segundo Possas e Baltar:

A idéia central de Kalecki sobre o movimento cíclico de uma economia capitalista pode ser sintetizada pela bem conhecida referência ao papel contraditório do processo de investimento ao gerar de um lado, estímulos dinâmicos através da demanda efetiva e, de outro, na criação de nova capacidade produtiva que este mesmo processo simultaneamente engendra, e que terá de ser de algum modo ocupada a seguir, sob pena de dificultar o prosseguimento daquele mesmo impulso inicial. A conjunção de ambos os efeitos num padrão temporal necessariamente assimétrico dá lugar a um mecanismo que tende a gerar, endogenamente, flutuações no nível da atividade econômica.98 ,99

As decisões de investimento são tomadas pautadas nos acontecimentos recentes e nas expectativas sobre as condições de demanda para o período em que a nova capacidade produtiva estiver em operação – a lógica da dinâmica está baseada no desequilíbrio: os agentes erram suas previsões.

Quanto à tendência da economia, esta seria gerada, de acordo com Kalecki, pelos “fatores de desenvolvimento”, elemento autêntico da demanda agregada autônoma100. O principal exemplo desses fatores são os gastos em inovações, que não estão atrelados ao nível corrente de renda, mas que são determinados pela tentativa da empresa de se manter

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“O resultado é que se gera uma espécie de movimento cíclico semi-regular, cuja amplitude é determinada pela magnitude e pelo padrão dos choques, ε, e pelos parâmetros da equação”. Kalecki (1983, p.106 )[1954].

97

Possas, M. (1987, p.119).

98

Possas e Baltar (1981, p.131).

99

Os comentários de Keynes sobre o ciclo econômico podem ser identificados com a teoria apresentada por Kalecki. De acordo com Keynes, o movimento cíclico da economia industrial estaria relacionado à interação entre disponibilidade de capital existente e expectativa sobre rendimento futuro. A crise seria iniciada devido a uma queda na eficiência marginal do capital em função de uma piora nas expectativas após o fim de uma etapa de expansão, quando há um clima demasiado otimista e a crescente disponibilidade de bens de capital começa a gerar capacidade ociosa. Neste momento passa a vigorar o pessimismo e a incerteza que aumentam a preferência pela liquidez e a taxa de juros, acentuando ainda mais a queda do investimento. A simples tentativa de manipulação da taxa de juros por parte das autoridades monetárias no sentido de queda pode não ser eficaz frente à acentuada falta de confiança. Ainda, a depressão pode ser acentuada pela diminuição da propensão a consumir devida à baixa no valor de mercado dos títulos dos agentes que aplicam sua riqueza na bolsa de valores. A duração desta fase descendente do ciclo dependerá em grande parte do ritmo de depreciação do capital existente, que irá refazer gradualmente a escassez do capital elevando sua eficiência marginal e iniciando a fase de recuperação. Mais detalhes, ver Keynes (1988, cap.22)[1936].

100

Kalecki comete o equívoco, dado seu foco apenas na equação, de considerar poupança de longo prazo como componente autônomo de tendência – considera o efeito depressivo da poupança daqueles que vivem de renda, diminuindo a poupança interna das firmas, sobre o investimento e desenvolvimento. Ver Kalecki (1983, p.134-5) [1954]. A poupança já foi corretamente considerada na equação do investimento refletindo a acumulação interna das empresas e, na versão final do investimento, no parâmetro que amplifica o investimento induzido.

competitiva em seu mercado, repondo o capital necessário para conservar-se atualizada em termos tecnológicos. Como explica Kalecki:

A influência das inovações é análoga à de um acréscimo do montante dos lucros que, no decorrer de um dado período, torna os projetos de investimento em geral mais atraentes do que eram no princípio desse mesmo período. Cada nova invenção, da mesma forma que cada acréscimo de lucro, provoca certas decisões adicionais de investimento. Um fluxo constante de inovações – no que diz respeito ao efeito sobre o investimento – é comparável a uma taxa constante de acréscimo dos lucros. Assim, esse fluxo faz subir o nível de investimento por unidade de tempo que se teria sem ele. (...) Agora está claro que um fluxo constante de invenções provoca acréscimos de investimento a um ponto acima do nível resultante de nossos determinantes básicos. As invenções, portanto, transformam o sistema estático em outro, sujeito a uma tendência ascendente.101

Em geral, as flutuações na economia se dão em torno de uma tendência positiva gerada, precisamente, por fatores como as inovações.

O ponto central de Kalecki é sugerir que a economia é cíclica e que se explica pelo mecanismo multiplicador-acelerador, vinculado à atuação da demanda efetiva. Embora não tenha recebido o devido destaque, a teoria de Kalecki permite concluir também que o desenvolvimento econômico no capitalismo, ou seja, crescimento de longo prazo com mudança estrutural, depende essencialmente de inovações e de progresso técnico102, foco de análise da próxima seção.