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1. PRIMEIRO GIRO: NO INÍCIO ERA A MORTE

2.1 Acidente, aparência

Existe uma súbita aproximação entre “forma” e “pele” que, por sua vez, possibilita o encontro da literatura com as artes plásticas e com as ciências da vida, mais precisamente uma aproximação que investiga os modos de absorção e rearticulação de saberes em não-saber, marcando um jogo de forças da linguagem dentro do mundo sensível. As ciências da vida fazem parte de um processo ao qual seus conceitos são capazes de mudar desde que eles cheguem em outra área. Em linhas gerais, trata-se de um modo pelo qual escritores, teóricos e artistas servem-se de um saber jogado por terra, que altera os modos de conhecimento por uma desorganização dos sentidos. Por que seria um saber jogado por terra? Porque atingir a terra é atingir um limite para nele se mover. O sujeito converte-se em uma operação cognitiva. Assim, não somos indiferentes à inclusão do animal como sujeito, não apenas como assunto. Diante do limite de um saber, o não saber faz parte de uma desorganização que requer uma sobrevivência de formas, uma convivência com resíduos e modos de tornar presente o corpo ausente. Tateamos e manuseamos textos e imagens, examinando seus percursos, seus acidentes, suas formas.

Essa formas observadas e manuseadas apresentam suas contradições justamente por não serem fixas, pois oscilam de modo imperceptivel, como se tentássemos observar durante dias a própria pele até em suas mínimas transformações. A pele, maleável, recebe uma forma que também é informe; origina outras formas na medida em que se altera. Ela possui uma dinâmica, uma forma-informe que imprime novas formas perceptíveis e imperceptíveis. Além de dar ao corpo uma organização que articula seus próprios sentidos, a pele delimita uma unidade, um limite que confere ao indivíduo um caráter simultâneo de singularidade e de pertencimento a uma espécie.

A pele excede seu ciclo puramente biológico, dispondo em um corpo suas formas de aparição, o que lhe dá permeabilidade fenomenológica para existir como imagem. Sem abandonar seus aspectos fisiológicos e morfológicos para restringi-la a uma linguagem, gostaríamos de estendê-la a um lugar paradoxal, ambíguo, que confere toda uma imagerie ao corpo, o qual pode ser narrado, mostrado, especulado, imaginado e, por fim, inserido na produção literária e artística.

Pelos incalculáveis movimentos da forma, o corpo é capaz de sobressair de sua própria fisiologia e da linguagem que o coordena, reorganizando todo um conjunto de regras para seus movimentos, exigindo um conhecimento que passa por uma noção remota da montagem, que desorganiza e reordena no mundo contemporâneao toda uma tradição que vai

das artes à medicina, passando pelas invenções físicas, mecânicas e eletrônicas, enfim, por saberes e técnicas diversos: afinal, o corpo humano foi aberto com finalidade didática e artística para ser estudado, representado, radiografado, cortado, até cruzar o século XX, fragmentado, abstraído e, praticamente sempre, animalizado. Compreende-se, portanto, que uma discussão sobre a montagem pode ser estendida ao longo desse percurso que compreende a aventura da abertura do corpo e suas representações, chegando até as noções de corte e desfiguração em que a pele seria uma superfície permeável pela memória e pela matéria, bem como pela animalidade.

Em “Littérature et connaissance par le montage”, Muriel Pic justifica um aspecto viável para pensar o príncipio de montagem que passa da memória para a imaginação: o conhecimento pela montagem também é um conhecimento pela margem; esta margem, esta distância é necessária à liberação da semelhança e do sentido: é o lugar onde a imaginação se inscreve na memória.1 É pelo viés de margem e de distanciamento, mas também de entalhe, incisão e diferença2 apreendido do vocábulo francês écart que a pele se apresenta como um lugar íntimo e material de memória da espécie, de exposição, de experiências, de aberturas e de apresentação de corpos com superfícies, por vezes, enigmáticas.

Os limites da pele formam um espaço ao qual a imaginação pode operar a partir da memória como um fato objetivo. Muriel Pic nos mostra que nos aproximamos de uma

antropologia da linguagem3, pois o corpo, além da contingência, é um fator heterogêneo para pensar a escrita, incluindo a criação artística. Esses distanciamentos, essas margens nos fornece, inclusive, efeitos animalescos para sair e chegar à pele. O filósofo Jacques Dewitte, nesse sentido, lê o pensamento do zoólogo suíço Adolf Portmann com as tonalidades da antropologia de Marcel Mauss. Diante dessa proposição é que chegamos à noção de “horizonte ampliado”. Trata-se de um termo que evidencia aquilo que estava distante, nas margens de uma procupação biológica, justamente porque se tratava de um aspecto formal. Na exigência teórica de Portmann, o que estava à margem encontra um lugar, ganha um sentido que antes não tinha.4 Pela própria aparência, o “horizonte ampliado” se conecta com a “autoapresentação” (Selbstdarstellung). Para Portmann trata-se de um conjunto fruto de uma lenta elaboração de motivos epidérmicos que por sua vez são capazes de comportar grandes

1 PIC, Muriel. Littérature et connaissance par le montage. In: ZIMMERMANN, Laurent. Penser par les images: autour des travaux de Georges Didi-Huberman. Nantes: Éditions Cécile Defaut, 2006. p. 149.

2 LE PETIT ROBERT. Paris: Le Robert, 1996. p. 702.

3 Por isso que os escritos de bataille e todo o seu trabalho desenvolvido ao longo da revista Documents nos apresenta um limite entre a antropologia e a literatura, apresentando assim, os limites da animalidade.

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DEWITTE, Jacques. La manifestation de soi. Élements d’une critique philosophique de l’utilitarisme. Paris: Éditions de la Découverte, 2010. p. 34.

contrastes de pigmentação. A partir de tais manifestações surge uma especificidade de uma forma animal. Dewitte, por exemplo, define esse conceito de Portmann, que foi esboçado na primeira edição de La forme animale, de 1948, mas que foi melhor elaborado em um artigo publicado dez anos depois, em 1958, “L'autoprésentation, motif de l'élaboration des formes vivantes”. Para Dewitte:

O conceito de “autoapresentação”, um termo para designar o fato de que um vivente, animal ou planta, não realiza apenas o metabolismo e não é explicável apenas como um conjunto de estruturas que servem para conservar a vida, mas que, além da simples existência mínima e além de toda a necessidade, o organismo constrói uma forma que representa precisamente a particularidade de cada espécie.5

A noção de écart, de tudo aquilo que tinha sido posto à margem por ser superficial ou até mesmo inadequado, é introduzida por Portmann no centro das preocupações em relação ao organismo, fazendo com que essa margem incida sobre e corte o que antes estava estabelecido. Tomamos ainda essa palavra em estado de dicionário, pelo fato de ela ser uma distância que separa dois pontos, uma distância que, ao mesmo tempo, é intervalo e que se deixa cortar para criar outros centros e novas distâncias. Ao mesmo tempo, écart pode ser uma variação, um erro ou algo dado ao isolamento. Se o organismo constrói uma forma ou particularidade de cada espécie, ele também pode acidentalmente criar os seus desvios, suas margens, para, assim, fazer novas incisões. É assim que lemos Adolf Portmann com Georges Bataille. Este último, por sua vez, escreveu no nº 2 da revista Documents, em 1930, um texto intitulado “Les écarts de la nature”,6 no qual aponta que os monstros e prodígios que antes eram vistos como presságios e maus-agouros começam, a partir do século XVI, a ser o centro de inquietações e da avidez humana, que necessita de um estado de estupor. Em relação a este aspecto, o corpo apresenta um modo de transformar um ethos capaz de regular suas ações quando o conhecimento estava fundado sobre os princípios morais diante dessas imagens compósitas que, de fato, segundo Bataille, são bem concretas quanto a um desenvolvimento

dialético e ainda são literalmente perturbadoras. O termo dialético está diretamente ligado à

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PORTMANN, Adolf apud DEWITTE, La manifestation de soi, p. 34. “Le concept d’'autoprésentation’ – un nom pour désigner le fait qu’un être vivant, animal ou plante, ne pratique pas seulement le métabolisme et n’est pas explicable seulement comme un ensemble de structures servant à conserver la vie mais que, par-delà la simple existence minimale et au-delà de toute nécessité, l’organisme édifie une forme qui représente précisément la particularité de cette espèce.”

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forma, pois Bataille se vale desse termo a partir de uma conferência ministrada pelo cineasta russo S. M. Eisenstein, 17 de janeiro de 1930, na Sorbonne.7

Ao buscar a particularidade, Adolf Portmann não se atém apenas à espécie no sentido darwinista. Seu ponto de partida dialoga com tudo aquilo que seria até então considerado superficial, enfim, ornamento. Isso implica que as experiências dentro de cada espécie seriam consideradas particulares e distintas. Espécie e experiência podem ser lidas ao lado de estilo. Espécie, que no latim species, antes de ser tomado como um termo que designa gênero, categoria ou classificação, significa “aspecto”, “aparência”, cujo uso original no século XV apresenta um sentido teológico, que traz “a aparência sensível das coisas”, e que a filosofia antiga tomava como “o objeto imediato do conhecimento.”

A experiência, palavra importante para a obra de Georges Bataille e que ganhou, a partir dos experimentos das vanguardas artísticas, um uso mais específico ao longo do século XX no campo da literatura e das artes, vem do latim experientia ou, ainda, experiri, que implica na tentativa de fazer ou provocar um fenômeno. O termo exprime certamente a capacidade de se expor ao perigo. Desse contato entre espécie e experiência, o “estilo”, na sua origem latina, stillus, relaciona-se com a escrita, com o modo de expressar-se com a língua, em linguagem relacionada a um antigo objeto de metal ligado à produção física da escrita.

Uma vez apresentado o recorte entre conhecimento e montagem por Muriel Pic, passando por Adolf Portmann e Georges Bataille, autores importantes para a questão específica da forma e do excesso, Marielle Macé, em uma elegante operação de montagem, aproxima espécie de estilo. Em Styles animaux, Macé aborda algo que não estaria tão evidente no interesse da literatura pela animalidade, sobretudo pelo realce de autores como Jakob von Uexküll e Adolf Portmann. O primeiro é posto em destaque pela relevância dos “modos de vida”, e o segundo pela das “formas de vida”. Assim, surge um modo de ler a “animalidade” pelo viés literário em que a aparência animal, seguindo o pensamento de Portmann, culminaria com a “exposição de uma forma intensa.”8 Marielle Macé indica que, pela própria imanência, o objeto literário se torna lugar de exposição de uma variedade de modos de vida que, em suas palavras, vem do “desejo de chamar a atenção às maneiras, às fraseados do

7 Reproduzimos aqui a nota presente no primeiro volume das Œuvres complètes de Georges Bataille “o assunto dessa conferência de Eisenstein cf. Documents: 1o O anúncio feito por G. H. Rivière (n. 7, dezembro de 1929, p. 384); 2o O artigo de Robert Desnos intitulado La ligne générale precedido de uma nota de G. H. Rivière, protestando contra a interdição da polícia que havia impedido a projeção do filme de Eisenstein que tinha o mesmo título, projeção que deveria ter sido seguida da conferência que, de fato, aconteceu (Documents, deuxième année, n. 4, p. 217). BATAILLE, Georges. Œuvres complètes I. Paris: Gallimard, 1987. p. 653. 8

MACÉ, Marielle. Styles animaux. L’Ésprit Créateur, Minnesota, University of Minnesota, v. 51, n. 4, 2011, p. 98. “L’exposition d’une forme intense”.

vivente que encontra no mundo animal um campo de expressividade infinita (…) infinitamente diferenciada, viva e segura”.9

Se, para a teoria literária, a animalidade passa a ser um elemento importante para se pensar o estilo, a história da arte também se vale dos autores das ciências da vida para pensar questões-limite no seu domínio, como a representação e a imagem. Graças ao estilo, existe um lugar de exposição aos modos e às formas de vida, enfim, a variedade dos viventes e suas maneiras podem tornar-se verdadeiras frases do vivente uma vez postos na linguagem, como reitera Marielle Macé. Retomando o que até então foi apresentado, temos que Muriel Pic havia aproximado o conhecimento da montagem, consistindo em uma passagem do “fato objetivo” ao “fato de memória”, como ela enfatiza a partir de Walter Benjamin.10 Essa memória, por sua vez, passa a existir materialmente na própria pele, em suas marcas e na sua forma de apresentação, a qual amplia o campo de visão do outro. No campo visual, a variedade de formas de vida amplia o repertório do olhar, colaborando, inclusive, para a combinação de formas viventes que já existem, resultante de uma plasticidade posta em ação por cada forma animal.

A partir de Jacques Dewitte, podemos afirmar que Marielle Macé toma a questão da animalidade como um “horizonte expandido” no objeto literário, acrescentando ao debate a noção do estilo. Dewitte e Macé partilham das leituras de Portmann, fato que também ocorre com historiador da arte Bertrand Prévost. Este retoma o argumento pelo viés da “aparência não endereçada” (l’apparence inadressée) desenvolvida pelo zoólogo suíço para discutir uma ausência de finalidade da aparência animal. O ponto de partida é que as imagens aguardam nosso olhar justamente para alcançar sua plenitude, que seria um tipo de consagração perpétua, intelectual e crítica.11 Quando as imagens se encontram nessa posição, arma-se uma cadeia na qual o espectador também pode ser visto como uma presa do espetáculo que não lhe é endereçado. O que buscamos das imagens, além do seu caráter de apresentação, é o caráter

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MACÉ, Styles animaux, p. 97. “Le désir de faire attention aux manières, aux phrasés du vivant, qui trouve

dans le monde animal un champ d’expressivité infinie (...) infiniment différenciée, vive et sûre”.

10 Na leitura de D.A.F. de Sade, mais precisamente em Justine ou les malheurs de la vertu, a relação entre anatomia e imaginação toma o próprio aspecto físico para pensar uma espécie de soberania que será posteriormente desenvolvida nesta tese, de modo mais preciso, na leitura de Pierre Klossowski e, em particular, de Georges Bataille. Em Justine, lê-se que “encontrariam-na no físico, sem dúvida, com a mesma facilidade, e quando a anatomia for aperfeiçoada, isso será facilmente demonstrável por ela, toda a relação da organização do homem aos gostos que o terão afetado” (SADE, D.A.F. Justine ou les malheurs de la vertu. Paris: Gallimard, 2005. p. 237-238.) “On la trouverait au physique avec la même facilité sans doute, et quand l’anatomie sera perfectionné, on démontrera facilement, par elle, le rapport de l’organisation de l’homme aux goûts qui l’auront affecté.”

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Disponível em: <http://www.fabula.org/atelier.php?Les_apparences_inadress%26eacute%3Bes>. Último acesso em: 15 out. 2012.

háptico alcançado por suas texturas, as quais podem fazer da própria pele um dos veículos da animalidade.

A animalidade alcança texturas nos limites do humano, em que vários corpos, pelas suas formas de apresentação, se tornaram marginais e distanciadas. Essas texturas não são gerais e alcançam singularidades na espécie, estilos, que por uma força de distanciamento, por ficarem à margem, também criam novos centros, e a operação de montagem torna-se mais assim pontual, isto é, mais corporal. Em Sigmund Freud, em Pierre Klossowski e em Georges Bataille, por exemplo, distintas concepções de montagem rearticulam as formas de pensar o corpo em torno da animalidade, de modo que ela que não se restrinja às suas operações fisiológicas e metabólicas. Um “corpo-montagem” é enunciado, em parte, em tais concepções, como podemos ler ainda com Muriel Pic:

Se as polaridades contraditórias no ataque histérico descrito por Freud estão sob o signo da bissexualidade, da copresença no corpo do feminino e do masculino, esse “corpo-montagem” é então, propriamente dito, monstruoso. A “simultaneidade contraditória”, princípio do divino segundo Pierre Klossowski, é o lugar de uma teratologia que, segundo Bataille, sucede uma dialética do informe.12

A partir de Muriel Pic, a questão se mostra como um desafio para criar outras leituras da animalidade para além da polaridade que deixaria a “humanidade” simetricamente oposta em termos de graus de desenvolvimento ou de exposição à zoé, como apresenta Giorgio Agamben em Homo Sacer.13 Lendo esse aspecto com Adolf Portmann e Jakob von Uexküll, as formas e os modos de vida, os estilos e as espécies apresentam muitas nuances para que se entenda não apenas o movimento das formas vivas, mas o movimento vivo das formas. Esse movimento é duplo e gera transformações nas próprias superfícies dos corpos. Se a pele pode ser lida como um princípio de montagem, a aparência não é apenas um modo de cobrir e de organizar o corpo (como tradicionalmente se define a pele), enfim, uma

12 PIC, Littérature et connaissance par le montage, p. 167-168. “Si les polarités contradictoires dans l’attaque hystérique décrite par Freud sont sous le signe de la bisexualité, de la coprésence en un corps du féminin et du masculin, ce ‘corps-montage’ est alors, à proprement parler, monstrueux. La ‘simultanéité contradictoire’, principe du divin chez Pierre Klossowski, est le siège d’une tératologie qui, chez Bataille, relève d’une ‘dialectique de l’informe’”.

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Na introdução de Homo Sacer, Giorgio Agamben aponta que entre os gregos inexistia um termo único para o que conhecemos por vida. Nesse sentido, Agamben apresenta dois termos utilizados pelos gregos, sem um étimo comum para designar o simples fato de viver, que põe em comum homens e animais (zoé), e a forma ou a maneira de viver, que os distingue (bíos). Nesta disposição, a análise política de Agamben passa, de acordo com ambos os termos, por uma inclusão-exclusão (zoé-bíos) (AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. p. 9.)

“cobertura exterior do corpo dos animais vertebrados”.14 Essa, no entanto é uma definição que não satisfaz nosso trabalho. Evelyne Sechaud, em Le dictionnaire du corps, escreve que a pele aparece no desenvolvimento embrionário antes dos outros sistemas sensoriais, e que a lei biológica atesta, pelo viés da ciência, que quanto mais precoce é uma “função”, maiores as chances de ela ser fundamental.15 Fundamental e superficial, como a pele realiza a exteriorização de algo que é interno, ela mesma se encarrega, primeiro fisiologicamente, de mover os limites do que está dentro e fora do corpo, desde o momento embrionário até o crescimento dos pelos e seu processo contínuo de regeneração. Em outro momento, essa exterioridade nos move para a questão da aparência e dos movimentos da forma do corpo, ressaltando-se a própria dialética dessa forma com uma vocação informe, com suas simultaneidades, isto é, dentro e fora, demarcados e interdependentes, e com a possibilidade de montagem pelo viés plástico e literário de um corpo sempre em vias de fazer-se, compondo-se e decompondo-se até que se torne literariamente impossível.

O encadeamento que Muriel Pic faz entre Freud, Klossowski e Bataille para evidenciar um “corpo-montagem”, uma “simultaneidade contraditória” e uma “dialética do informe” mostra pelo menos três modos de uma presença do termo écart para o pensamento plástico e literário no século XX. Quando Muriel Pic apresenta um corpo diante de polaridades contraditórias, seja pela presença mútua do masculino e do feminino, seja por uma deformidade anatômica que o desvia da espécie, a forma expõe a exceção de um corpo teratológico. A animalidade geralmente relegada ao fisiológico também é um traço lido nesse registro e chega a ter variantes, como o próprio termo “animalesco”, deformando inclusive pelo viés da linguagem o corpo, tornando-o monstruoso. Nessa relação, é importante

14 LE PETIT ROBERT, 2000, p. 1814. “Enveloppe extérieure du corps des animaux vertebrés, constituée par une partie profonde (derme) et par une couche superficielle (épiderme).”

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SECHAUD, Evelyne. Peau. In: MARZANO, Michela. Le dictionnaire du corps. Paris: Puf, 2007. p. 689-694. “La peau apparaît dans le développement embryonnaire avant les autres systémes sensoriels, répondant à cette loi biologique selon laquelle plus une fonction est précoce, plus elle a des chances d’être fondamentale. Au stade de la gastrula, l’embryon prend la forme d’un sac par invagination d’un de ses pôles et présente deux feuillets,