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1. PRIMEIRO GIRO: NO INÍCIO ERA A MORTE

2.2 Uma pele para todas as coisas

Emanuele Coccia, em A vida sensível, escreveu que se deveria fazer uma pele para todas as coisas (“faire peau de toutes choses”). A pele, recorrentemente associada a metáforas, também existe como um conjunto de superfícies em que cada uma delas é acionada e aciona movimentos interiores. Coccia escreveu que o homem é um animal capaz de vestir todas as coisas, enfim, de dar uma pele a todas as coisas. Na sua perspectiva, pele e linguagem estão sensivelmente ligadas.37 Mesmo a voz, seu tom e sua textura, seria uma “pele fônica” que, em geral, é um dos pontos de articulação de nossa aparência com as extremidades do mundo.38 A noção de aparência utilizada por Coccia também se baseia no pensamento de Adolf Portmann:

35 DIDI-HUBERMAN, Atlas, p. 26. “de la materia informe vista como cartografía de síntomas, lo que suscitaba una intensa actividad de escritura interpretativa.”

36 É o que ele escreve em “Manchas na pele, linguagem”, de Ó: “Mas esta alegria progressiva precisa de alimento constante e o próprio corpo, em sua casca, parece não resistir bem a ela, tornando-se inquieto, ofegante e, aos poucos, cansado e deprimido. Como um balão cujo gás vai escapando, a energia insana de nossa alegria física procura abrigo – nas imagens, nos braços de outra pessoa e, no limite, pois é a isto que sempre recorre, na

linguagem. É ali que a tentamos prender, antes que o gás escape de uma vez e sejamos tão-somente os

espectadores de nossa própria decrepitude, de nossa fusão indeterminada na matéria” (RAMOS, Nuno. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2008. p. 17).

37

COCCIA, Emanuele. La vie sensible. Paris: Rivages, 2010. p. 133. 38

Todo vivente é antes de tudo uma aparência, uma forma, uma imagem, uma espécie. Por isso, a aparência, em si, não é acidental. Trata-se de uma faculdade. Como ensinou Adolf Portmann, longe de ser um traço secundário e acidental para os viventes, a semelhança e o aspecto dos viventes são o exercício de uma potência específica.39

O vivente, como aparência, movimenta-se no limite da imagem, da espécie, enfim, ele seria a própria forma em movimento. Sua pele lhe confere uma particularidade, algo que simplesmente o situa no limite de sua própria experiência de mundo. Em outros termos, podemos nos valer do “exercício de uma potência específica” ao qual se refere Coccia e que poderíamos chamar simplesmente de singularidade partilhada. Como ressalva, essa potência não está ligada à construção da subjetividade que funda o sujeito moderno, na formação pronominal do “eu”. Ela se constitui em sua aparência, em sua pele dada a outros olhares.

Coccia apresenta ainda dois termos importantes no pensamento do biólogo suíço. O primeiro deles é a “autoapresentação”, que seria uma inscrição autônoma que possui um valor de forma;40 o segundo termo é a “biopoética”, sendo essa as características fundamentais em que os viventes se comprometem a fazer e desfazer sua própria natureza.41 A “autoapresentação” e a “biopoética” são termos que podem ser ligados ao aspecto do estilo. Diante das formas de vida, a literatura desnuda os saberes classificatórios, como Georges Bataille o faz em “Les écarts de la nature”, convertendo-os em um não saber que lida com os movimentos das formas, com sua dialética, que, sem apresentar uma síntese, enfatiza pelo movimento e pela metamorfose a própria animalidade. A literatura oferece singularidades a esse movimento em que cada texto expõe modos de legibilidade a outras formas de vida, desnudando o vivente pelo estilo do texto. Com uma variedade de “autoapresentações” e “biopoéticas”, a literatura seria um “estilo dos estilos” que permite, notavelmente a partir de Jacques Derrida, se valer da ambivalência do vocábulo francês “suivre”, quer dizer, “seguir” ou “ser” os animais em sua potência semântica e expressiva.42 Nesse sentido, na medida que um escritor ou artista inventa uma pele para todas as coisas, essas peles são novamente absorvidas, formando outras peles, outras aparências e novas superfícies.

39 COCCIA, La vie sensible, p. 115. “Tout vivant est avant toutes choses une apparence, une forme, une image, une espèce. L’apparence elle-même n’est donc pas accidentelle. Il s’agit d’une faculté. Comme l’a enseigné Adolf Portmann, loin d’être chez les vivants un trait secondaire et accidentel, la semblence et l’aspect des vivants sont l’exercice d’une puissance spécifique.”

40 MACÉ, Styles animaux, p. 98. 41

COCCIA, La vie sensible, p. 116. 42

Quanto à recepção das peles, das aparências, Hannah Arendt, em La vie de

l’esprit, enfatiza o papel do espectador como um “receptor de aparências”, afinal, “estar em

vida significa ser movido por uma necessidade de se mostrar que corresponde em cada um ao seu poder de parecer.”43 O problema da “autoapresentação” alcança o aspecto da representação, fazendo-nos perguntar o que significa representar uma espécie, pois Hannah Arendt dá a cada objeto vivente a característica de um ator que está em uma cena comum que lhe foi preparada. Esta cena comum, descrita em La vie de l’esprit, é diferente para cada espécie.44 Segundo esse viés, a aparência põe em questão atores, espectadores e cena, expandindo o que constitui um espetáculo, opondo ainda pela aparência a presença não orgânica da matéria aos viventes.45 Dentro dessa “biopoética”, o mundo exterior de cada vivente constitui um traço e um estilo a ser seguido e vivido. É ele o traço constituidor de diferença. Hannah Arendt enfatiza a tese do autor de La forme animale, ao dizer que se fossem os órgãos internos que aparecessem, isto é, que fossem expostos à luz, todos nós nos pareceríamos.46 Essa forma de parecer distingue-se completamente da relação exterior que existe na semelhança entre os corpos, tomando a epiderme como ponto de partida. A dimensão de opacidade da pele, além de facilitar o pensamento pela semelhança, cria suas especificidades:

Todas as criaturas viventes, por sua vez receptoras de fenômenos graças aos órgãos sensoriais, e capazes de se mostrar sob o aspecto das aparências, são a presa de autênticas ilusões, de nenhum modo idênticas a todas as espécies, mas em relação com seus modos de vida e suas formas de vida específicas.47

Arendt expõe os dois aspectos que estão sendo discutidos a partir do artigo de Marielle Macé: os modos e as formas de vida. Tomando o aspecto de uma cena comum que não é necessariamente partilhada por espécies distintas, justamente pela existência de modos de expressão isolados, as formas de vida seriam veículos dos modos de vida. Como criaturas

43 ARENDT, Hannah. La vie de l’esprit. Paris: Puf, 2005. p. 40. “Etre en vie signifie être mû par un besoin de se montrer qui correspond en chacun à son pouvoir de paraître.”

44 ARENDT, La vie de l’esprit, p. 50.

45 Neste aspecto, diversas manifestações artísticas põem a aparição em cena, expondo a matéria não orgânica, dentre as quais destacamos a obra do artista Nuno Ramos, que em seu primeiro livro, Cujo, escreve que é preciso “inventar uma pele para tudo” (RAMOS, Nuno. Cujo. São Paulo: Ed. 34, 1993. p. 19).

46 ARENDT, La vie de l’esprit, p. 50.

47 ARENDT, La vie de l’esprit, p. 62. “Toutes les créatures vivantes, à la fois récepteurs de phénomènes, grâce aux organes sensoriels, et capables de se montrer sous l’aspect d’apparences, sont la proie d’illusions authentiques, en aucune façon identiques pour toutes les espèces, mais en rapport avec leur mode de vie et leurs formes de vie spécifiques.”

viventes receptoras de fenômenos, cada uma criaria sua intermitência: “nós também somos aparências com nossas partidas e chegadas, nossas aparições e desaparições.”48

A discussão que separa os modos das formas de vida está diretamente ligada à observação de Marielle Macé a propósito da retomada dos pensamentos de Jakob von Uexküll, com os modos de habitar o mundo, e de Adolf Portmann, na já discutida lógica da aparência. Quanto a Uexküll, suas observações em relação ao animal estão ligadas à construção do seu próprio meio, o que por consequência seria um modo de fazer um estilo: “um estilo, quer dizer, a maneira característica de uma forma, repetível e repetida, que tira a atenção sobre sua própria intensidade.”49 Por mais que exista uma separação entre as formas do vivente e seus modos de habitar o mundo, existe um ponto em que eles se encontram. Afinal, ambos estão articulados, pois, mesmo em movimento, o estilo não deixa de produzir suas figuras.

Se tomarmos um artigo de Georges Bataille como “Figure humaine”, publicado em 1929 na revista Documents, o choque entre formas e modos de vida apresenta, por outro viés, a questão do “corpo-montagem” quando duas fotografias são postas em contraste: a de um antigo casamento em uma província francesa e a de uma tribo da Polinésia. Bataille vê uma monstruosidade no primeiro grupo, uma verdadeira desproporção entre homem e natureza, na qual um universo exterior não teria lugar em um “eu” (moi) que fosse auxiliado por metáforas. Diante da animalidade como um movimento de formas, “Figure humaine” merece ser posto ao lado de “Les écarts de la nature”, em que Georges Bataille faz uma inversão dos polos indicando o que seria monstruoso para ele, o próprio homem ou, ainda, os próprios do homem que lhe causam o riso diante da imagem fotográfica de um casamento. Essa fotografia é uma verdadeira vanitas para Bataille, que lhe traz o ranço da poeira e a presença dos fantasmas, enfim, de traços que marcam uma verdadeira negação da natureza

humana.50 Ao contrastar duas fotografias, Bataille realiza uma leitura pela montagem que ressignifica os sentidos de écart e de excesso, retirando-os justamente do caso patológico ou dos aspectos monstruosos. Essa negação da natureza humana acontece pela sua descontinuidade, pois ela existiria pretensamente sobre nossa natureza.51 O sentido da negação ainda se liga à ausência de uma medida comum entre diversas entidades humanas, culminando com a desproporção entre o homem e a natureza. Nessa inversão, o homem seria

48

ARENDT, La vie de l’esprit, p. 41. “nous aussi sommes des apparences, avec nos arrivées et nos départs, nos apparitions et nos disparitions.”

49 MACÉ, Styles animaux, p. 99. “un style, c’est-à-dire la manière caractéristique d’une forme, répétable et répétée, qui attire l’aatention sur sa propre intensité.”

50

BATAILLE, Œuvres Complètes I, p. 182. 51

o écarté, o separado, e talvez por isso a “Teoria da religião” de Bataille comece pela animalidade, passando em seguida pelos instrumentos fabricados pelo homem e pelo consumo que antes estava voltado para o sacrifício até chegar ao encadeamento que nos leva ao homem-mercadoria (l’homme-merchandise).52 Esse argumento encontra outra formulação em

La part maudite, justamente quando Bataille afirma que “a burguesia fez do homem um

animal servil e mecânico.”53