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7. TERCEIRO GIRO: NA PELE DE UM CACHORRO MORTO

7.2 O verme, o anjo, o tronco: traços do apodrecimento

Para a exposição Fruto estranho, de 2010, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Nuno Ramos montou, além de Monólogo para um cachorro morto e da própria obra homônima,9 outra que se chama Verme. A obra consiste em duas esferas de areia prensada com um diâmetro de 340 cm, além de um vídeo projetado em seu interior. No vídeo acontece a leitura do texto do artista, que tem uma paginação que torna o poema parecido com uma partitura. O poema começa com um momento epifânico, certamente herdado da vanitas do século XVII: “Eis/ a/ visão/ do/ verme: ninguém/ será/ obrigado/ a/ ficar/ sentado/ aqui/ ou/ a/ declarar/ seu/ nome/ origem/ ou/ intenção/ preferência/ sexual/ ou/ política/ ninguém/ essa/ é/ a/ vontade/ do/ verme.”10

Nuno Ramos inscreve o verme no papel de anjo. E apenas com as palavras “anjo” e “verme”, ele também disporá o anjo no papel de verme. Ambos estão intimamente ligados pela fina película do real que é o mundo: “o/ mundo/ enfim/ inteiro/ banal/ cada/ detalhe/ real/ real/ espalhado/ por/ tudo/ como/ uma/ pele/ minuciosamente/ camuflada/ disfarçada/ de/ epifania/ da/ matéria/ ou/ sintoma/ de/ época/ ou/ momento/ histórico.”11 Nesse fragmento, contempla-se o encontro do verme com o anjo que será articulado posteriormente na disposição do vocábulos “verme” e “anjo” em uma série de pinturas da mesma época, intulada Verme Anjo, cuja acepção semântica propõe um movimento de rotação entre os dois vocábulos, os quais participam do que Georges Bataille chamou, em L’anus solaire, de “grande coito”.12 O “real” está espalhado como uma “pele”, disfarçada de epifania da matéria ou sintoma de época ou momento histórico. Podemos falar de uma “epifania da matéria” na obra de Nuno Ramos na medida em que todo o material convocado pelo artista nas instalações, na pintura, nas esculturas ganha outro corpo em seu texto literário. Nesse sentido, o cachorro morto é um momento epifânico em que o artista, sem tomar completamente o papel de um xamã, se aproxima do mundo da matéria e da morte, lê as superfícies da matéria morta. Ele lê o que não foi escrito, frequentando como leitor um mundo anterior ainda não formulado em linguagem que, apesar de tudo, tenta criar um vocabulário com a matéria em transformação. Isso é o que poderíamos chamar de uma articulação da animalidade do corpo

9 O material utilizado nessa obra consiste em árvores, aviões, sabão, vidro, contrabaixos, sebo e soda cáustica. 10 RAMOS, Nuno. Verme. 2010, p. 5. Documento disponível no site do artista: http://www.nunoramos.com.br/portu/arquivos/Verme.pdf, último acesso em 6 ago. 2013.

11

RAMOS, Verme, p. 5. 12

para a matéria, fazendo da superfície desta última um modo de pôr o corpo à prova da literatura.

Por um momento, temos um corpo que foi ultrapassado por seu próprio metabolismo, com uma insuficiência diante da linguagem que o sustenta precariamente, porque existe um movimento contínuo da matéria. O artista lê o problema da matéria e da linguagem no “coito” de ambos, na rotação do planeta, na organização solar13 em que as leis – Nuno Ramos se vale mesmo de palavras retiradas da Constituição Brasileira – estão sob o julgo da Vanitas, na epifania do verme. Além disso, o verme e o anjo produzem movimentos aparentemente contraditórios, nos quais o verme está ligado diretamente à abjeção enquanto que o anjo liga-se à redenção. Georges Bataille escreveu, em Le coupable, que o anjo era “um movimento dos mundos”;14 o que podemos acrescentar, no entanto, é que em outra escala, na obra Verme, de Nuno Ramos, o verme é um movimento dos mundos. Ambos, o anjo e o verme, produzem rotações para um princípio da economia geral que não exclui as energias corporais e sua estrutura.

Observando em detalhe a estrutura da pele, observamos que o próprio pelo que a recobre, por exemplo, existe como um problema filosófico desde Platão, como se pode ler em

De immundo, de Jean Clair. A leitura que Jean Clair faz de Parmênides ressalta os aspectos

do hirsuto e do sujo, onde, além da lama e do escarro, está o pelo, que além de não ter forma, não apresenta uma forma separada capaz de representá-lo.15 Sem se ater a um percurso diacrônico da filosofia, Jean Clair lê em Platão um aspecto da pele em relação à morte, pois o que o crítico acrescenta é que existe uma categoria da pornografia contemporânea, sob a rubrica “hard crad”, em que o escarro, a sujeira, os dejetos, a lama integram cenas e descrições do sexo, seja na literatura, no cinema ou em objetos de sex-shops. Enfim tudo o que conduz o homem em direção a uma ideia de decomposição, de podridão, do que pulula e se assemelha ao movimento dos vermes.16

No fim das contas, torna-se surpreendente que em Verme, de Nuno Ramos, após a leitura do texto homônimo, exista um filme pornô. Se existe uma menção à vanitas em Verme, é porque ao longo da precária existência física existiam imagens que antecediam as representações do corpo nos atlas anatômicos que lembravam a existência da morte. Em Les

13 Existe uma economia solar na obra de Nuno Ramos. Essa economia está ligada aos seus desenhos, guaches, pinturas e diálogo com a gravura. Os títulos de boa parte dessa produção são os seguintes: Para Goeldi 1 e 2, 1997 e 1998 (na primeira série existem algumas pinturas em que se pode ler “sol apodrecido”); Sol, 2001; Luz

Negra, 2002; Platão e Platão com sol, 2009.

14 A discussão sobre o anjo e sua relação com a animalidade foi desenvolvida, nesta tese, na seção 3.3, “A distância da redenção: o animal na pele do anjo”.

15

CLAIR, Jean. De Immundo. Apophatisme et apocatastase dans l’art d’auhourd’hui. Paris: Galilée, 2004. p. 13. 16

larmes d’Éros, de Georges Bataille, por exemplo, nos deparamos com duas vanitas de Hans

Baldung Grien, do século XVI, em que o corpo em decomposição envolve mulheres que se contemplam no espelho.17 Eis a vanitas que incita, pelo viés do poema, que o autor elabore uma forte metonímia a partir de uma forma de vida extremamente elementar: “enfia/ até/ o/ fim/ é/ isso/ o/ que/ o/ verme/ que/ até/ o/ cabo/ de/ uma/ vez/ e/ inteiro/ é/ isso/ o/ que/ o/ verme/ pede/ agora/ nesse/ exato/ momento/ penetração”.18 Termos como “cópula”, “abertura”, “penetração” condizem textualmente e sexualmente com o movimento contínuo e descontínuo dos corpos, o que nos faz perceber que uma imagem, ao existir, pode ser rearticulada em um processo de montagem para nos expor ao vanitas quando nos debruçamos sobre os seus sentidos em termos de “cópula”, “abertura” e “penetração”. Ao expormo-nos diante do tempo das imagens, somos também o elemento de passagem,19 uma vez que em cada manifestação de vida e em cada imagem existem rompimentos por vibrações de amplitude e de durações diversas, para que continuemos próximos à força circular presente em L’anus solaire.20

No contexto dessa força circular em que existe um verme que tudo vê, que deseja outros desejos, podemos dizer que o jogo semântico concebido por Nuno Ramos faz com que o artista troque os papéis entre o verme e o anjo. Tal acontecimento seria manifesto, se fizéssemos a partir dessa leitura uma paródia de Walter Benjamin, o “verme da história”, pois

17 BATAILLE, Georges. Les larmes d’Éros. Paris: Jean-Jacques Pauvert, 1997. p. 88-89. 18

RAMOS, Verme, p. 4.

19 Devemos tomar cuidado quando discutimos a questão da aparência e do real a partir da pele e, mais precisamente, em relação às imagens e o discurso de uma especialidade: “Diante de uma imagem – mesmo que ela seja muito antiga –, o presente não cessa de reconfigurar-se, desde que a desapropriação do olhar não ceda completamente o lugar ao hábito encantado do especialista” (DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant le temps. Histoire de l’art et anachronisme des images. Paris: Les Éditions de Minuit, 2000. p. 10). “Devant une image – si ancienne soit-elle –, le présente ne cesse jamais de se reconfigurer, pour peu que la dépossession du regard n’ait pas complètement cédé la place à l’habitude infatuée du spécialiste”. Isso faz com que especifiquemos que a aparência discutida no primeiro momento da tese esteja diretamente ligada ao que escreveu Adolf Portmann e, por consequência, às reflexões de Georges Bataille em torno do dispêndio. No entanto, o que ressaltamos da reflexão de Georges Didi-Huberman é o nosso contato temporário e passageiro com as imagens: “diante de uma imagem, – tão recente, tão contemporânea como seja –, o passado não cessa de se reconfigurar, dado que essa imagem apenas torna-se pensável em uma construção da memória, quando não de uma obsessão. Enfim, diante de uma imagem temos humildemente que reconhecer o seguinte: que provavelmente ela nos sobreviverá, que diante dela nós somos o elemento frágil, o elemento passageiro e que, diante de nós, ela é o elemento do futuro, o elemento da duração. A imagem frequentemente tem mais memória e mais porvir que o ser que a observa” (DIDI-HUBERMAN, Devant le temps, p. 10). “Devant une image, enfin, nous avons humblement à reconnaître ceci: qu’elle nous survivra probablement, que nous sommes devant elle l’élément fragile, l’élément de passage, et qu’elle est devant nous l’élément du futur, l’élément de la durée. L’image a souvent plus de mémoire et plus d’avenir que l’étant qui la regarde.”

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É assim que Georges Bataille compreende uma economia geral que não abandona sua parte maldita, reforçando ainda o princípio contínuo e circular até que, enfim, existe uma metamorfose contínua: “Todavia, não existem vibrações que não sejam conjugadas com um movimento contínuo circular, bem como a locomotiva que segue sobre a superfície da terra, imagem da metamorfose contínua” (BATAILLE, L’anus solaire, p. 18) “Toutefois, il n’y a pas de vibrations qui ne soient pas conjugées avec un mouvement continu circulaire, de même que sur la locomotive qui roule à la surface de la terre, image de la métamorphose continuelle”.

seria no limite do anjo e do verme que Georges Bataille estabeleceria seu pensamento, ressaltando a parte maldita pelo jogo paródico. Esse verme não veria uma catástrofe única e não despertaria os mortos, mas abriria sua carne, fazendo jus a um dos étimos de cadáver, carne dada aos vermes. No entanto, se lemos essa palavra a partir do latim cadere, ela significa o que não se pode manter em pé. E isso se aplicaria a um homem, a um animal e a uma árvore,21 o que contradiz formas de distinguir os corpos do animal e do homem, em termos de cadáver e carcaça.

A partir de uma paródia de Walter Benjamin permitida pelo espírito lúgubre de Georges Bataille analisamos uma série composta por sete quadros de Nuno Ramos, intitulada

Verme Anjo, de 2010. Semanticamente, os vocábulos fundem-se e separam-se onde um termo

parece ter saído com as propriedades do outro. O verme, em sua cegueira retiniana, é capaz de cegar o anjo enquanto projeto de redenção. Os termos que estão separados são aglutinados, “VermeAnjo”, para logo em seguida a palavra “anjo” ser rasurada ou, em termos gerais, esmagada por uma figura geométrica, e apenas a palavra “verme” tornar-se legível. No quadro seguinte da série o verme se sobressai ao anjo, permanecendo em uma posição superior a este anjo nos quadros seguintes até que, no último quadro da série, o anjo está tão ligado ao verme que vem entre parênteses, logo após: “verme (anjo)”.

Figura 19 - Série Verme Anjo, 70 x 100 cm

Fonte: Site do artista (www.nunoramos.com.br)

Os rastros desse verme (anjo) podem ser vistos a partir de um momento no qual o verme toma a forma de primeira testemunha, anunciando: “eu/ sou/ o/ cego/ que/ vê/ dentro/ do/ centro/ sensível/ de/ uma/ infâmia/ que/ não/ sei/ descrever/ de/ tão/ parecida/ com/ tudo/ o/ que/ há/ aquilo/ que/ é/ as/ coisas/ que/ me/ circundam/ o/ mundo/ enfim/ inteiro/ banal/

21 Trata-se de uma leitura das Etimologías, de Isidoro de Sevilla, mais precisamente o livro XI, “Acerca del hombre y los seres prodigiosos”. Ao fim do livro XI, Isidoro de Sevilla cria uma rede semântica que diferencia o cadáver, do corpo e do sepulto, pois o cadáver é o que ainda não foi sepultado. Uma vez enterrado é que se diz “sepultado”. Mesmo sepultado, ele continua a ser chamado de “corpo”. E, finalmente: “Sepulto deve sua denominação ao que já não tem pulso ou palpitação (sine pulsu), quer dizer, ao que falta movimento. Sepelire significa ocultar o corpo. Humare quer dizer soterrar, ou seja, cobrir de terra” (SEVILLA, Isidoro de.

Etimologías. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2004. p. 879). “Sepulto debe su denominación a que ya

no tiene ni pulso ni palpitación (sine pulsu), es decir, carece de movimiento. Sepelire significa ocultar el cuerpo.

cada/ detalhe/ real.”22 O verme é ainda uma forma de vida que perfura o real, o corpo, enfim, a derradeira aparência. O verme cava a carne em uma operação vital, incitando toda uma economia do apodrecimento que existe em Bataille, sobretudo quando ele retoma a citação de Marx de modo particular ao seu projeto: “na história como na natureza, a podridão é o laboratório da vida.”23

Entre o pictórico e o semântico, a ordem difere quando passamos dos quadros aos textos de Nuno Ramos. Se em “VermeAnjo” temos uma articulação semântica sob as regras do pictórico pela presença das palavras no quadro, no texto de Nuno Ramos o que existe é uma articulação do pictórico pelo viés semântico. Em ambos existe uma economia do apodrecimento na superfície pictórica que funciona pela disposição e justaposição das palavras. E disso decorre a formação de uma nova vizinhança entre “Verme (Anjo)”,

Monólogo para um cachorro morto e Monólogo para um tronco podre. Neste último, mesmo

com um tom fabular, o processo de transformação da matéria acontece desde a queda da árvore, uma vez que suas raízes estão expostas. A partir da queda, que aconteceu por conta do seu limite de crescimento, “ela” (a árvore) se torna “ele” (o tronco), mas esse “ele” também é um cadáver, isto é, aquilo que não mais está em pé. É ele que será absorvido pela terra, mais precisamente pelo chão (e no texto existe a pergunta feita pela folhagem “Mas que chão será o dele?”) que o sustentava. Trata-se do início de um processo de marca e de impressão de uma matéria sobre a outra, evidenciando, assim, seu processo contínuo de transformação:

Como uma matéria se confunde à outra, como uma matéria marca a outra, cava a outra, o tronco caído virou madeira e secou a seta de um rio ascendente e úmido que lhe corria pelo meio, desde sempre – ainda bicho, pedra demente. Flechou o reino animal e o mineral, fiel à vida breve e ao tempo, enorme, amalgamando-os, aos dois servindo com perseverança, engordando e morrendo simultaneamente.24

Georges Bataille chamaria esse fenômeno de um “coito polimórfico”, que acontece pela própria rotação terrestre. Uma vez no solo, sejam elas abatidas por um raio, arrancadas ou desenraizadas, as árvores se encontram sob uma outra forma, lê-se ainda em

L’anus solaire.25 Nesse coito polimórfico, uma matéria cava a outra. Por isso, o verme e o anjo assumem uma dinâmica que possui uma materialidade específica no processo contínuo da transformação da matéria, nos seus mais altos graus de metamorfose, como se pode ler em

22 RAMOS, Verme, p. 5.

23 BATAILLE, Georges. Œuvres complètes II. Paris: Gallimard, 1987. p. 91. “Dans l’histoire comme dans la nature, la pourriture est le laboratoire de la vie.”

24

RAMOS, Nuno. Ensaio Geral. São Paulo: Globo, 2007, p. 364-365. 25

“Manchas na pele, linguagem”, de Ó: “Toda matéria aceita um grau bastante alto de metamorfose, mas há um limite depois do qual não é mais reconhecível.”26 Afrontar a ideia de apodrecimento é entender, sem um viés exclusivamente formalista, que os graus de animalidade encontrados no corpo passam por um processo contínuo de transformação e que, um pouco antes disso, encontram-se as noções de continuidade e descontinuidade, fundamentais para o entendimento da morte e do erotismo, em princípio, a partir de Georges Bataille. Se tomarmos o encadeamento do erotismo, dos princípios da economia geral contidos em La part maudite, que incluem uma economia do apodrecimento, o verme não seria apenas uma presença da corrupção da carne desde a Vanitas, mas um momento em que o corpo é tocado pela matéria (a terra), e o anjo, concebido por Bataille como um movimento dos mundos, faz com que exista um jogo de transposições entre o corpo e a terra.