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4. SEGUNDO GIRO: REGRAS PARA A DIREÇÃO DO CORPO

4.2 Um tronco, um cachorro morto: vizinhança pela semelhança

Em um livro de poemas nos deparamos com duas fotografias que, estando lado a lado, criam uma terceira imagem. Antes descrevemos as duas imagens em uma frase: um animal morto está ao lado de um tronco de uma árvore. Praticamente no mesmo nível da página, na primeira imagem temos a linha que é do asfalto e, na segunda, a do horizonte cortada pelo mar. O animal morto é um cachorro. Ao atermo-nos sobre essa imagem, observamos que, mais ao fundo, existe outro cachorro morto, em meio a cruzes e mármores, possivelmente para túmulos. Na imagem ao lado, nos tons de cinza que marcam o espaço do céu, encontramos uma vizinhança em relação aos mármores e cruzes para os túmulos. Na praia, em meio a uma grande parte de areia, o tronco está um pouco enterrado, possivelmente pelo movimento da maré. Diante dessas duas fotografias, olhando para uma e depois para outra, da esquerda para a direita, isto é, do cachorro para o tronco, e da direita para a esquerda, do tronco para o cachorro, notamos que existe uma forma de aquilo que foi vivo ocupar o ambiente. O tronco, que traz parte de suas raízes, parece resistir em suas ramificações, uma resistência que não implica na vida, mas em um determinado modo de estar no espaço, de apresentar ainda alguma verticalidade, típica da árvore, enquanto os dois cachorros mortos ocupam o espaço horizontal.

Um cachorro, um tronco de árvore. O que ambos, lado a lado, constroem? Uma frase? Uma sentença? Que frase a linguagem verbal nos daria para traduzir o asfalto que continua no mar, as cruzes que se prolongam no céu, o gramado e o asfalto na areia, até que, em três pontos dessa terceira imagem, temos dois cachorros mortos e um tronco de árvore que começa a ser enterrado por um movimento lunar que remonta ao próprio movimento da maré? No verso de cada imagem há um poema, ou melhor, fragmentos de um poema maior de

Junco. O primeiro, sobre o qual refletiremos em seguida, fala de uma “vontade vertical das

árvores”. O segundo, logo atrás da imagem do tronco de árvore, inicia-se com a palavra “Perda”. Ao voltar às imagens da página anterior, tocamos a terceira imagem: a “perda” emite seus sinais no corpo, no tronco, no que está morto e provavelmente irá desaparecer ceifado pelo mar, o qual recebe de volta o tronco da árvore, ou por algum automóvel que tenha ceifado a vida dos cachorros no meio de uma estrada. Nessa operação do olhar, poderíamos converter essa “perda” na “devolução” da “pele”, observando simplesmente as distintas

superfícies e as aparências dos dois cachorros e do tronco de árvore: afinal, “uma árvore também têm sua pele”, escreve Georges Didi-Huberman em Écorces.12

Écorces e Junco inscrevem-se em uma vizinhança de livros que praticamente

foram publicados no mesmo período. Junco em setembro, e Écorces entre julho e novembro do mesmo ano, 2011. A etimologia de Écorces faz com que resistamos a traduzi-la por “cascas”, mas é uma palavra cujo étimo toma o latim, em seu acabamento medievo, como

scortea, que significa “capa de pele”. Ela pode ser lida aqui como “a superfície de uma

aparição dotada de vida, reagindo à dor e à promessa da morte”.13 Junco é uma reação, uma reação à maré que leva e lava a vida orgânica nas praias, criando um movimento em que a vida não existe mais. É aqui que o poema cria seu desvio etimológico, pelo viés da imaginação, para ressignificar a perda: “perder é uma argila// misturada a folhas secas”14 em “um meio gelatinoso onde cada/ um se conforma ao seu nome”.15 O cachorro e o tronco convertem-se, assim, em “irmãos da matéria/ no curso da volta/ à confraria/ cinza/ de antigos corpos”.16 Se a etimologia cartografa um certo acabamento do significado da palavra, expressando ainda sua origem, o poema Junco alcança um significado posterior. Esse significado posterior está no curso de um retorno, mais precisamente em curso, dos corpos que estão em comum pela fotografia, pelo poema e, mais, pelo livro, que é o tronco da aderência de Junco. O poema remonta a palavra de modo distinto da etimologia, recriando sua própria origem, embora a relação entre a etimologia das palavras e a poesia seja intrínseca. É da superfície, dos pedaços e das cascas que chegamos à noção da palavra e do objeto livro, como se pode ler em Écorces:

Ora, aqui precisamente onde ela adere ao tronco – de algum modo a derme – ; os latinos inventaram uma segunda palavra que dá, exatamente a outra face da primeira: é a palavra liber, que designa a parte da casca que serve como material para a escrita com mais facilidade do que o próprio córtex. Naturalmente ele deu seu nome às coisas feitas de superfícies, de pedaços de celulose cortadas, extratos de árvores, onde vêm reunir-se as palavras e as imagens. Essas coisas que caem do nosso pensamento, e que chamamos de livros. Essas coisas que caem dos nossos escorchamentos, essas cascas de imagens e de textos montados, um conjunto de frases.17

12

DIDI-HUBERMAN, Georges. Écorces. Paris: Les Éditions de Minuit, 2012. “Un arbre, il aussi a sa peau” 13 DIDI-HUBERMAN, Écorces, p. 70. “Une surface d’apparition douée de vie, réagissant à la douleur et promise à la mort.”

14 RAMOS, Nuno. Junco. São Paulo: Iluminuras, 2011. p. 26. 15

RAMOS, Junco, p. 33. 16 RAMOS, Junco, p. 39.

17 DIDI-HUBERMAN, Écorces, p. 71. “Or, là précisément où elle adhère au tronc – le derme, en quelque sorte – les latins ont inventé un second mot qui donne l’autre face, exactement, du premier: c’est le mot liber, qui désigne la partie d’écorce qui sert plus facilement que le cortex lui-même de matériau pour l’écriture. Il a donc naturellement donné son nom à ces choses si nécessaires pour inscrire les lambeaux de nos mémoires: ces choses

Junco é um livro que busca o estado de sua matéria imediatamente anterior. Livro

ao qual as camadas originárias são expostas pelo poema, também vertical, e pelo tronco de uma árvore. Trata-se de um conjunto de imagens que expõe suas cascas. No entanto, em

Junco, a paginação do poema e as fotografias são outras camadas, enfim, peles. Nuno Ramos

fotografa os cães mortos e o tronco de uma árvore porque ele precisa do enquadramento para alcançar a semelhança. Cada imagem torna-se assim, um ponto luminoso para o poema homônimo. Junco, palavra estabelecida no século XII para nomear diversas plantas de solos úmidos que possuem um tamanho considerável. Tratam-se de plantas com uma haste oca e rígida, mais ou menos lenhosa. Essa forma de vida rizomática é originada e desenvolvida na lama. Esse junco tem suas raízes filosóficas, sobretudo quando lemos os Pensées18, de Blaise Pascal que escreveu no artigo VI que o homem é um junco pensante. Junco seria, assim, uma posição entre a botânica e a filosofia. No movimento dialético das suas imagens, o cachorro morto ao lado do tronco de uma árvore faz do poema um espaço para o pensamento como uma zona de proliferação de raízes. Trata-se de uma concepção da poesia desenraizar as palavras, proliferando-os na forma vegetal. Sua escrita faz parte do gesto que aqui começa em Georges Bataille e se prolonga em Nuno Ramos, olhar para o chão. Aliás, é o poeta que escreve que “o chão é a grande pergunta”,19 na página seguinte ele parece responder sua necessidade de enquadrar, sua justificativa fotográfica: “aqui tudo começa/ e fica/ parecido com.”20

Em Junco, em meio à articulação com a aparência e a semelhança, o poema e a fotografia reorganizam registros de transformação da matéria. Isso implica em um problema faites de surfaces, de bouts de cellulose découpés, extraits des arbres, et où viennent se réunir les mots et les images. Ces choses qui tombent de notre pensée, et que l’on nomme des livres. Ces choses qui tombent de nos écorchements, ces écorces d’images et de textes montés, phrasés ensemble.”

18

“L’homme n’est qu’un roseau, le plus faible de la nature; mais c’est un roseau pensant. Il ne faut pas que l’univers entier s’arme pour l’écraser: une vapeur, une goutte d’eau, suffit pour le tuer. Mais, quand l’univers l’écraserait, l’homme serait encore plus noble que ce qui le tue, parce qu’il sait qu’il meurt, et l’avantage que l’univers a sur lui; l’univers n’en sait rien. Toute notre dignité consiste donc en la pensée. C’est de là qu’il faut nous relever et non de l’espace et de la durée, que nous ne saurions remplir. Travaillons donc à bien penser: voilà le principe de la morale” e “Roseau pensant. – Ce n’est point de l’espace que je dois chercher ma dignité, mais c’est du règlement de ma pensée. Je n’aurai pas davantage en possèdant des terres: par l’espace, l’univers me comprend et m’engloutit comme un point; par la pensée, je le comprends” (PASCAL, Blaise. Pensées. Paris: Éditions André Silvare, 1961. p. 147-148). “O homem não é nada mais que um junco, o mais fraco da natureza; mas ele é um junco pensante. Nem é preciso que todo o universo se organiza para esmagá-lo: um vapor ou uma gota d’água basta para matá-lo. Mas quando o universo o esmagar, o homem seria ainda mais nobre que aquilo que o mata porque ele sabe que morre, esse é o benefício que o universo tem sobre ele: o universo não sabe nada. Toda nossa dignidade consiste então em pensar. É daqui que é preciso nos reerguer e não do espaço e da duração que nós não saberemos preencher. Trabalhemos então a pensar: eis o princípio da moral” e em outro pensamento “Junco pensante. – Não é no espaço que devo buscar minha dignidade, mas no regulamento do meu pensamento. Eu não teria vantagem possuindo terras: pelo espaço, o universo me compreende e me engole como um ponto; pelo pensamento, eu compreendo.”

19

RAMOS, Junco, p. 53. 20

das falhas da linguagem, em que se evoca o que a antecede e um problema de lugar, pois, a súbita aproximação entre um cachorro morto e um tronco põe em risco a ideia de lugar, lugar que seria justamente Junco: “Um lugar não é um ganido/ nem uma voz. / Um lugar é onde/ (onde até o fim) / as partes de um corpo crescem”.21 No entanto, o que existe é um contraste entre esse crescimento em terreno argiloso e a lama, indiretamente presentes no título da obra. Nuno Ramos, no mesmo fragmento, faz com que passemos por mais três definições de lugar que nos servirão para pensar a plasticidade da animalidade em relação à literatura a às artes visuais: “Um lugar não é uma ave/ voando/ mas um saco de penas/ afundando/ é um lugar”; “Um lugar não é uma luz/ talvez sua sombra/ largada no chão”; “Um lugar é um chão/ que a palavra chão/ não pisa nem descreve.”22

A partir de três definições de lugar que vêm do poema, sob o distinto olhar das palavras encontramos algo em comum, possivelmente um lugar frágil, conforme o tipo de presença proposto em cada definição de lugar. Não estamos tão somente diante de uma abstração obtida pelo efeito das imagens do poema: primeiro, existe um elemento animal, e não o animal em si. Isso é um efeito plástico da matéria. O homem toma materialmente aquilo que lhe falta e, pela ausência do animal, evoca sua presença por meio de algo que lhe era próprio, nesse caso, as penas de uma ave. O segundo ponto é outra evocação da presença pelo viés da ausência: a sombra que imprime de modo efêmero uma marca e, por fim, a especificidade de um chão naquilo que reside sua impossibilidade de descrição e aderência à linguagem. A aderência, nesse sentido, está mais próxima da impressão, por mais leve que ela seja, como a imagem de um saco de penas capaz de afundar. Sabe-se, inclusive, que existe uma anedota simples, mas que lida com imagens previsíveis que se pode ter de dois materiais diferentes, um dos quais seriam as penas e o outro, por exemplo, a areia. Pergunta-se a alguém o que pesa mais: um quilo de penas ou um quilo de areia. Quem se ativer ao material, e não à medida, optará pela areia. A imagem de um saco de penas afundando, ao mesmo tempo que imprime uma leveza, estabelece certa medida. Existe um peso nesse material, o qual está na ordem do excesso, se pensarmos na quantidade de penas necessária para fazer com que o saco afunde. A questão é que a forma nas suas mais distintas manifestações praticamente não é previsível. Aliás, “pré-visível”, separado, como sugere Georges Didi- Huberman: “a forma, no processo de impressão, nunca é ‘pré-visível’: ela é sempre

21

RAMOS, Junco, p. 57. 22

problemática, inesperada, instável, aberta.”23 Em um vocabulário mais ligado a procedimentos de impressão, a forma exige sua contraforma, e entre ambas existe tudo aquilo que foge ao valor operatório da impressão no que ela produz em termos de visível ou de legível, sem que um termo fique submetido ao outro. Existe um processo que permanece indeterminado, mesmo nas três definições de lugar do poema, no qual existe uma qualidade do lugar pelas vias de uma impressão.

Geralmente, essa contraforma seria aquilo a ser moldado. Na escultura há um molde, como nas obras de Nuno Ramos intituladas Craca e Caixas de areia. A contraforma no poema de Junco é marcada pelo “não”: não é uma ave voando, não é uma luz, não é pisado ou descrito pela palavra. Entre a forma e contraforma existe algo que escapa e que é indeterminado, pois, como enfatizou Georges Didi-Huberman, a impressão tem uma abertura cujo procedimento possui uma impureza concomitante ao acaso e à técnica.24 As fotografias de Junco, além de possuírem uma relação material articulada pelo artista, possuem o traço de uma impureza aliada ao acaso e à técnica. De um lado, existe a impressão da sombra do cachorro morto; de outro, a pressão do peso do tronco sobre a areia. Essas impressões marcam a passagem de formas que foram inventadas pelo artista a partir de uma impressão que possibilitou que essas imagens fossem recolhidas.25 Essa impressão acontece por uma operação de montagem que implica na disposição das imagens lado a lado, no ritmo que elas ocupam entre os fragmentos do poema, e no próprio poema em seu conjunto. Uma vez que cada fragmento é datado – e Nuno Ramos mantém as datas visíveis –, há claramente uma exposição temporal do processo de montagem deste único poema escrito em diversos períodos da vida do artista. A montagem de Junco obedece a um percurso, que seria a “colisão temporária (e que) também é uma colisão visual”,26 e as imagens de Nuno Ramos conduzem algumas considerações sobre a animalidade e apresentam uma abertura para que se discuta, inclusive, os aspectos relativos aos processos morfológicos enfrentados pelas superfícies dos corpos.

23 DIDI-HUBERMAN, Georges. La resemblance par contact. Archéologie, anachronisme et modernité de l’empreinte. Paris: Les Éditions de Minuit, 2008. p. 33. “La forme, dans le processus d’empreinte, n’est jamais rigoureusement ‘pré-visible’: elle est toujours problématique, inattendue, instable, ouverte.”

24

DIDI-HUBERMAN, La resemblance par contact.

25 Em uma ordem inversa da apresentada por Georges Didi-Huberman quando ele assinala o aspecto de “formas colhidas” para “formas inventadas”, a partir de Denis Vialou (DIDI-HUBERMAN, La resemblance par contact, p. 40).

26

DIDI-HUBERMAN, La resemblance par contact, p. 42. “Colision temporaire (et que) est aussi une colision visuel.”

Figura 11 – Junco, de Nuno Ramos

Fonte: RAMOS, Junco, p. 24-25.