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4. SEGUNDO GIRO: REGRAS PARA A DIREÇÃO DO CORPO

4.3 Sobre a pele: poeira e sabão

A animalidade não está concentrada no animal, ela é um lugar perdido no homem, em movimento no jogo de aparências, nos procedimentos estéticos e ficcionais que existem em uma vasta cadeia operatória da espécie que, se não têm sua origem na relação corpo e matéria, têm pelo menos aqui o valor temporário de uma matriz. Buscar entender a animalidade, nesse caso, está longe de se configurar como a busca por uma origem perdida da humanidade; trata-se, antes, de entender que existe uma indeterminação mesmo na “particularidade zoológica do homem”, como assinala André Leroi-Gourhan a propósito da potente ligação entre as ferramentas desenvolvidas e a linguagem.27

Isso não quer dizer que a animalidade seja essa indeterminação, mas ela contribui diretamente para pôr em evidência o corpo e a matéria, além do corpo como matéria em meio a uma cadeia operatória que “designa um sistema dinâmico de uma sinergia entre matéria, ferramentas, gesto, memória e linguagem”, em que “não há humanidade sem técnica, não há técnica sem memória, não há memória sem linguagem, não há ferramenta sem gesto e muito

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menos gesto sem uma relação do corpo com a matéria.”28 E não há homem sem animalidade. Não se trata, ainda, de reforçar a polaridade entre humanidade/animalidade, pois um está no outro e, em nível suplementar, pois a “animalidade é o logos do mundo sensível e [...] ela é, assim, constitutivamente, um sentido incorporado”,29 como se pode ler com Maurice Merleau- Ponty, retomando Paul Valéry quando ele diz que cada um de nós é um “animal das palavras”.

Estamos praticamente ao lado de Georges Bataille, quando ele diz, em Lascaux ou

la naissance de l’art, que a animalidade é um signo sensível da nossa presença no universo.30

As formas de definir a animalidade, lado a lado, recorrem ao sensível como uma estratégia de acionar todo o corpo para uma experiência que não se reduz ao conhecimento ou, ainda, aos embustes da linguagem, mesmo existindo uma dinâmica que nos incite, mais uma vez, a ler o que não foi escrito, a ver o que não foi visto para, assim, dar matéria ou uma nova pele àquilo que até então era inexistente ou que pelo menos estava pautado na ausência, no que ainda não havia sido assimilado pela linguagem. Existe algo que esse “logos do mundo sensível”, esse “signo sensível da nossa presença no universo”, toma de uma frágil anatomia que se esconde no poder da linguagem. Para observarmos um cachorro morto e um tronco podre em meio ao jogo de semelhanças que oscila no confronto de duas imagens distintas, essas formas de perceber a animalidade se voltam para quem olha as imagens.

Nesse retorno, sobressalta-se uma anatomia impotente e temporária. Ela ocupa um corpo que, além de um tempo íntimo, possui uma certa história, participando ainda de um corpo coletivo. Trata-se de um corpo que observa algumas imagens e que segue em busca de encontrar nelas, algo que ainda não foi lido. Nessa leitura vêm-lhe outros gestos que não lhe pertencem apenas, mas que se desenvolvem com certa coerência para as regras do próprio corpo que observa, anota e analisa textos e imagens. A partir dessa anatomia existe um conjunto de regras e, mesmo que o corpo varie, as regras permanecem e tornam indistintos, por algum momento, matéria, gesto, memória, linguagem. Assim, as fotografias de Junco, em aproximação com o que escreveram Merleau-Ponty e Georges Bataille em relação à animalidade, fazem com que nos retornemos às “Regras para a direção do corpo”, mais precisamente para a Regra VIII:

28

DIDI-HUBERMAN, La resemblance par contact, p. 36. “Désigne ici le systhème dynamique d’une synergie entre matière, outil, geste, mémoire et langage” e “d’humanité sans technique, pas de technique sans mémoire, pas de mémoire sans langage, pas d’outil sans geste, pas de geste sans un rapport du corps à la matière.”

29 MERLEAU-PONTY, Maurice. La Nature – Notes des cours du Collège de France. Paris: Seuil, 1995. p. 219. “Logos du monde sensible: un sens incorporé.”

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Tua mão não é tua mão, mas o que você sabe e domina da tua mão. Assim, entre o que para você funciona e o que tem disponível nessa mão, mas não usa, há um grande hiato. Mas lembre: outras épocas, outras culturas, usaram outros gestos e não ligaram para os gestos que você emprega, selecionando outros itens do menu-mão. O mesmo para você que vê, o mesmo para o que canta. No entanto, os gestos que você nunca fez, as notas que nunca cantou, também vivem, e passam, dentro de você, o tempo de vida que te será dado. Eles também são órgão – há, em teu rim, uma acidez que ele nunca filtrou, aguardando –, eles também são corpo. Preste atenção.31

Para um artista e escritor, o “menu-mão” é uma forma de elaborar novas formas e contraformas, de experimentar uma ao lado da outra, de contrastá-las, enfim, de tocar em outros gestos, inclusive os mais remotos, que lhe escapam. A mão em ação, em contato com a matéria evoca sua própria transformação, imprimindo o próprio corpo, chegando mesmo a expô-lo em seus limites, os quais estão na ordem do gesto técnico. Os limites do corpo, por suas regras, imprimem-lhe uma incapacidade ou movimentos construídos para tudo aquilo que permanece involuntário:

Não sei fazer do cão uma pedra/ dura, da alga um jacarandá/ mas sei que alguém/ maré ou lua/ faz isso por eles. Nada cabe em sua cara/ súbita, nós é que olhamos/ de perto, como um inseto/ deixa a sua marca/ begônia, magnólia/ ou salamandra na lama. Se há asa/ houve voo, afirmo – / aqui dois pardais se amaram/ antes da minha chegada./ Aqui jogaram meus restos/ pentes de terra, livros de cedro/ cobertos/ pela vontade vertical das árvores.32

Essa incapacidade, que escapa à techné, é alcançada de certo modo pelo regime da semelhança, em que ao atermos o olhar sobre o cachorro ao lado de um tronco, pela vizinhança das imagens, conseguimos transformar o cachorro em tronco e o tronco em cachorro. Isso justamente por uma questão de comparação de escalas, de espacialidade e, enfim, de lugar. Mas nós não saímos do lugar criado pelo próprio artista, pois o que ele está em vias de construir é um espaço para os fenômenos no qual sua mão não pode intervir sem a mediação da linguagem. Em todo caso, o poema – ao expor essa incapacidade do artista de transformar a matéria em distintas formas – estabelece um espaço para que isso aconteça na literatura. Afinal, se Nuno Ramos enfatiza a pele é para se ater aos fenômenos, às superfícies e às aparências, fazendo deles algo que é contíguo ao corpo, como ele mesmo escreveu na Regra III de “Regras para a direção do corpo”. Essa espécie de confissão diante de uma “incapacidade” é o motor da economia do corpo e da matéria, da pele e da animalidade

31

RAMOS, Regras para a direção do corpo, p. 87. 32

empregadas por Nuno Ramos no espaço literário. Este é ainda um espaço no qual a escultura

não é construída, negada pela performance do texto. Entre o que acontece e o que não

acontece, a matéria adquire um ritmo performativo que depende da falha e do insucesso do artista para dar cabo de uma escultura. Enquanto o escritor é o artista que falha ou experimenta, ele investiga a morfologia do corpo, da matéria, e elabora uma pele para tudo, como lemos no fragmento de Cujo:

Passei o asfalto frio sobre o breu, escurecendo-o. Parecia uma lama oleosa de grande toxicidade. Espalhei depois com um pincel o breu derretido sobre o asfalto frio para secá-lo. O resultado foi uma espécie de borracha brilhante, mineral, que recobria o feltro que estava por baixo de modo estranho. Agora eu tinha um pedaço de algo. Precisava erguer aquilo, dar forma, mas não sabia como dar essa forma. Não sei porque qualquer escolha parecia tão falsa. Queria que ela aparecesse por si só. Então juntei simplesmente vários pedaços e costurei num tapete disforme. Mas os contornos desse tapete pareciam sempre escolhidos cuidadosamente. Acabei destruindo tudo. Não consigo passar da pele.33

Nuno Ramos não consegue passar da pele, pois sua obra plástico-literária é um acontecimento de superfícies, de simulacros, de experimentações que incorporam acidentes a partir dos fenômenos capazes de serem produzidos em situações específicas. A matéria plástica torna-se um fenômeno da animalidade como podemos observar a partir do uso do breu, do asfalto, do feltro e, enfim, das camadas que ele chama pele. Ao invés de uma escultura, o artista constrói viscosidades, incluindo o mármore que ele utiliza em diversas peças para enfatizar um movimento erótico com uma força tumular da pedra e da matéria excessivamente sólida. Dessa relação, ele é capaz de manter a pele viva até que, intencionalmente, seja impossível passar da aparência, da pele. O corpo que não está em contato com as viscosidades, próprias ou de outrem, seca; não serve e merece ser devolvido: a pele enrugada, a boca sem dentes. O corpo se fecha sozinho, sepulta-se fechando os olhos, abandonando a experiência do olhar, bem como o cortejo que reúne carnaval e silêncio. Trata- se de um corpo que não serve, que seria absorvido pela terra, devolvido para a lua? Esse “Não serve”, por consequência, que sai do princípio de utilidade, atua na economia geral da matéria.

Em meio à indeterminação dos signos sensíveis da animalidade, corre-se o risco de ser genérico ao se falar de anatomia e de matéria para que se chegue à noção das texturas da animalidade sobre a pele. Ao inventar uma pele para tudo, ao não conseguir passar da pele,

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chegamos à pele das imagens, às suas texturas, as quais nos permitem elaborar um movimento contínuo que implica na passagem dos signos sensíveis manifestos em um cachorro morto e em um tronco de árvore. Se Nuno Ramos escreveu que um lugar talvez fosse “a sombra largada pela projeção da luz no chão”, ele provavelmente desdobraria esse lugar a partir do próprio simulacro que sua superfície produz, até tocar o ponto mais reticular da matéria, a própria poeira,34 a qual prova que um lugar pode ser feito a partir do cruzamento da luz com a sombra. Isso é tomado a partir da leitura de Génie du non-lieu, e das considerações de Georges Didi-Huberman acerca de uma concepção dos atomistas da Antiguidade,35 que conseguiram tornar inteligível o conceito de alma, apontando que seria o princípio do movimento de todas as coisas seriam os grãos de poeira que pairavam no ar: “Lucrécio, ao que se sabe, chamava de simulacros essas espécies de leves ‘membranas liberadas pela superfície dos corpos e que flutuam em todos os sentidos (como a poeira) pelos ares (per

auras)’.”36 Assim, se Nuno Ramos disse no poema que “um lugar não é uma luz, mas talvez sua sombra no chão”, podemos acrescentar, a partir de seu “talvez”, que um lugar também é aquele que, entre a luz e a sombra, permite que sejam vistos os “simulacros” descritos por Lucrécio, isto é, as leves membranas liberadas dos corpos flutuando pelo ar. A poeira seria “o modelo por excelência dos movimentos fundamentais, os mais secretos da matéria em geral”,37 escreve Didi-Huberman. Ao mesmo tempo, esse movimento é um fenômeno que cria uma nova camada sobre as superfícies, metaforicamente, uma pele sobre as coisas. A poeira, sempre em movimento, seria ainda na perspectiva de Lucrécio a agitação dos corpos que estão em uma luta eterna, sempre em movimento.

Por um instante, ao ler a terra como um corpo, nos autorizamos a ler o corpo como terra e convertemos sua lição de anatomia em uma lição de geologia. “Lição de geologia” é a narrativa de abertura de O pão do corvo, na qual pelo menos dois momentos precisos tratam desse aspecto:

Há uma camada de poeira que recobre as coisas, protegendo-as de nós. Polvilho escuro da fuligem, fragmento de sal e alga, toneladas de matéria em grãos que vão cruzando o oceano transformam-se em fiapos transparentes depositados pouco a pouco para preservar o que ficou embaixo. Quase nada

34 A poeira será discutida no quarto e último giro.

35 DIDI-HUBERMAN, Georges. Génie du non-lieu. Air, poussière, empreinte, hantise. Paris: Les Éditions de Minuit, 2001. p. 69.

36 DIDI-HUBERMAN, Génie du non-lieu, p. 70. “Lucrèce, on le sait, nommait simulacres ces ‘sortes de membranes légères détachées de la surface des corps, et qui voltigent en tous sens (comme la poussière) parmi les airs (per auras)’.”

37

DIDI-HUBERMAN, Génie du non-lieu, p. 69. “Le modèle par excelence desmouvements les plus

se tem pensado a respeito deste fenômeno. Trata-se provavelmente de uma enorme operação de camuflagem, de equalização de um sinal remoto que perceberíamos facilmente na ausência desta montanha de pequenos agregados. Algo dentro das coisas está sendo disfarçado, escondido a qualquer preço, e até mesmo o extrato de rocha, terra e lava seca onde pisamos, construímos nossas cabanas e parimos nossos filhos parece estar ali para embrulhar alguma coisa que tende ao centro.38

Na verdade, o movimento com que giram os gases aquecidos, os choques de massas polares com o ar mais leve e quente que vem dos trópicos, a condensação das tempestades sobre o oceano, todo o sal lançado na atmosfera, a luta das mucosas e das guelras, o sofrimento mesmo das aspirações humanas, dragões espalhando lantejoulas e escamas, vidas ceifadas, pedaços de madeira que naufragam, olhos que a catarata vela, bacia onde moram os sargaços, tudo o que ficou cinzento e floriu depois na primavera, tudo o que o outono equalizou com prata e monotonia, o rosado leve do poente, o ar que enche o peito de alegria, parecem na verdade parte de uma astúcia, gestos furtivos que não compreendemos, sequelas de um corpo enorme e defeituoso que tenta inutilmente recobrir-se, sumir debaixo da aparência.39

Voltamos à aparência, à superfície, porque não conseguimos sair da pele que agora tem a matéria em seu detalhe: a poeira. A poeira nos leva diretamente para as camadas que se acumulam sobre o corpo, para a matéria que constantemente recobre os poros. E, talvez, em O pão do corvo, devolver para a lua signifique devolver para a terra, no sentido do próprio contraste entre a luz e a escuridão. Entre “a terra e a lua” existe uma distância que é preenchida por uma camada de poeira, enfim, “a massa caindo sobre a massa”, “a matéria abraçando a matéria” e “areia, matéria, enigma”, como ainda se lê em “Lição de geologia”: “Tu verás uma multidão de corpos misturarem-se de mil maneiras no vazio”,40 escreveu Lucrécio ao descrever esses corpos primevos debatendo-se em um movimento contínuo.

O ato de devolução do corpo talvez seja mais antigo, e o encontro deste com a terra acontece pouco a pouco, no íntimo e secreto contato entre os poros e a poeira; uma mania de limpeza contribui para uma estranha maneira de esquecer essa terra que, mesmo em vida, ameaça cobrir os corpos, reivindicando a carne quando cobre a pele. A limpeza e a higiene, tal como as concebemos, vêm do próprio animal de que o homem escapa. É com o processo de transformação induzida por processos químicos que o sebo do animal se converte em um produto de higiene pessoal, como o sabonete ou o sabão. Esse processo de transformação também está nas páginas de Junco, pontualmente nos versos iniciais do fragmento 22 do poema: “Dentro do sabão/ sebo, soda, eu sei, mas/ amor materno/ e leite/

38 RAMOS, O pão do corvo, p. 9. 39 RAMOS, O pão do corvo, p. 10-11. 40

Citado em DIDI-HUBERMAN, Génie du non-lieu, p. 69. “Tu verras une multitude de menus corps se mêler de mille manières parmi le vide.”

farão sabão também?”41 Se a terra nos faz um chamado diário com a poeira sobre a pele, fazendo com que a matéria entre em contato com a matéria, é com o próprio animal que o homem apaga esse traço da terra sobre seu corpo. O encadeamento corpo, matéria e morte existente na breve narrativa “Não serve” pode ser um prenúncio para Monólogo para um

cachorro morto, de Nuno Ramos, concebido em 2005 e realizado no Museu de Arte Moderna

do Rio de Janeiro em 2011. A devolução para a lua nos aproxima de outro texto de O pão do

corvo, “Bando da lua”:

A última chuva forte arrancou a terra de cima deles. Andavam em bandos. Seguiam a lua. Está provado que não transmitem nossas doenças, mas gostamos do último ganido. Fazemos sabão. Fabricamos a farinha de ossos, pelo e sangue quente. Depois me lavo com isso. Animal isso. O melhor amigo do homem foge do homem. Fica secando no asfalto com a pata mole, moribunda.42

Os cães que, em Junco, aparecem mortos em várias posições, contrastantes com os diversos troncos de árvores, hipoteticamente fazem parte do “bando da lua”. Há de se investigar a presença de um desses cães em Monólogo para um cachorro morto, da mesma forma que a presença do tronco em um projeto semelhante, Monólogo para um tronco podre, os quais serão apresentados e discutidos no próximo giro.

41

RAMOS, Junco, p. 59. 42