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7. TERCEIRO GIRO: NA PELE DE UM CACHORRO MORTO

8.1 Pergunte ao açougueiro

Quem encontra o fantástico ao procurar pelo real1 também opta por fazer um uso político da imaginação. No entanto, o embate entre o fantástico e o real não deve ser simplificado em esquemas, mas posto em confronto com o objeto literário. Esse confronto está ligado a uma difícil negociação entre diferenças: “a diferença entre o real e o imaginário não deveria ser negociável”,2 escreve Denis Hollier em Les dépossédés. A questão do corpo e do cadáver nos atlas e nas lições de anatomia marca uma postura que disseca o corpo humano para ampliar a linguagem ligada ao corpo, assinalando, assim, aspectos de uma morfologia do corpo no espaço de uma negociação impossível. Isso implica que uma vez que há uma cartografia interna do corpo, ela passa a existir intimamente relacionada a uma forma que lhe é exterior. Aliás, é pelo viés da interioridade que existe uma dimensão fundamental da vida em relação à qual Adolf Portmann – ao falar da “autoapresentação” – enfatiza a interioridade, que opera nas regiões limítrofes do vivente, mesmo quando se trata de um germe ou uma bactéria, enfim, de formas de vida cujas escalas estão distanciadas da humana.3

A tópica da interioridade é diferente em Georges Bataille. Em L’expérience

intérieure, existe uma escala que nos escapa entre animais lineares e não lineares, o que leva

1 A questão do real tem uma forte via lacaniana no sentido de ser um ponto de desencontro, um desencontro do real. Mas o real se apresenta como um retorno, como assinala Hal Foster em The return of real, mais precisamente quando ele traça uma genealogia do minimalismo e tece algumas reflexões em torno da Pop Art. Existe um efeito de repetição das séries contraposto ao realismo traumático de Warhol em seu mote: “Eu quero ser uma máquina” (FOSTER, Hal. The return of real. Art and Theory at the End of the Century. Cambridge/London: MIT Press, 1996. p. 130). “I want to be a machine”. Notemos a passagem do trauma freudiano ao troumatisme lacaniano (de trou – “buraco”). Nosso percurso pelo trou, pelo buraco, no entanto, está mais ligado ao universo lúbrico de Bataille, que vai de História do olho, de 1928, às suas investigações sobre o nascimento da arte nas grutas de Lascaux, de 1955: “o nome Lascaux é, desse modo, o símbolo das eras que experimentam a passagem do bicho humano ao ser delineado que somos” (BATAILLE, Georges. Lascaux ou la

naissance de l’art. Paris: Skira, 1994. p. 20). “Le nom de Lascaux est ainsi le symbole des âges qui connurent le

passage de la bête humaine à l’être délié que nous sommes”. Em “Bataille avec Lacan”, Roland Léthier ressalta a importância da obra de Georges Bataille para Lacan, de que tomamos apenas o aspecto de Les larmes d’Éros: “O efeito desta retirada (enlèvement) é legível na forma que Les larmes d’Éros efetua a distinção entre real, simbólico e imaginário. Esse último texto já não faz com que o leitor prossiga nas sugestões visuais violentamente eróticas, uma vez que ele é nivelado de modo demonstrativo e figurativo. A diferença aqui é significativa entre a intervenção de Borel, que nutriu o imaginário mórbido de Bataille e a de Lacan, estimulando a roubá-lo (removido como vestido)” (LÉTHIER, Roland. Bataille avec Lacan. La part de l’Œil, Belgique, n. 10, p. 67-80, 1994. Dossier Bataille et les arts plastiques. p. 79-80). “L’effet de cet enlèvement est lisible dans la façon dont Les larmes d’Eros effectuent la distinction entre réel, symbolique et imaginaire. Cet ultime texte n’entraîne plus le lecteur dans des suggestions visuelles violemment érotiques, il y a mise à plat du démonstratif et du figuratif. L’écart est ici sensible entre l’intervention de Borel, nourrissant l’imaginaire morbide de Bataille, et celle de Lacan le poussant à s’en dérober (l’enlever en tant que robe).”

2 HOLLIER, Denis. Les dépossédés (Bataille, Caillois, Leiris, Malraux, Sartre). Paris: Les Éditions de Minuit, 1993. p. 31. “La différence du réel et de l’imaginaire devrait ne pas être négociable”.

3

PORTMANN, Adolf apud STAMM, R. A. L’intériorité, dimension fondamentale de la vie. Revue européenne

em consideração um valor formal da constituição dos seus corpos e o aspecto de formarem ou não sociedades:

é somente a partir dos animais lineares (vermes, insetos, peixes, répteis, pássaros ou mamíferos) que os indivíduos vivos perdem definitivamente a faculdade de constituir, em várias entidades, conjuntos ligados a um só corpo. Os animais não lineares (como o sifonóforo, o coral) agregam-se em

colônias cujos elementos são cimentados, mas eles não formam sociedades.4

Georges Bataille, a partir de um comentário que considera sua leitura da obra do físico francês Paul Langevin, La notion de corpuscules et d’atomes, tinha em mente a ausência de uma essência nas pequenas unidades que se agrupam em colônias, formando, por assim dizer, cracas. De imediato, não se trata da discussão em torno de uma “comunidade”, presente em A experiência interior. Trata-se de aspectos formais da vida animal que Georges Bataille não desprezava e que estão presentes no mundo natural, físico e biológico. Em Bataille, o conhecimento de outras áreas da ciência é residual, pois ao mesmo tempo que ele critica a ciência, ele se vale de alguns dados para desenvolver suas ideias em relação a animalidade, ao erotismo e às transformações da matéria em um laço biológico estável.5

Em um confronto desigual entre Portmann e Bataille, a questão do valor formal (Formwert) da estrutura evolutiva dos corpos, em geral, é tomada do ponto de vista funcional. Esse é um ponto que desloca Portmann da zoologia, da biologia e das ciências em geral, pois, do lado dos biólogos, suas teses são incompreensíveis, uma vez que Portmann abandonou o ponto de vista científico para fazer, como analisou Stamm, “uma luta contra sua própria disciplina” ou uma “conversa filosófica”,6 tornando-se ao mesmo tempo ilegível aos biólogos e mais próximo do pensamento filosófico, literário e artístico.

Maurice Merleau-Ponty, nas notas de seu curso La Nature para o Collège de France, entre 1957 e 1958, especificamente na parte intitulada “L’animalité”, nos mostra que o animal não tem apenas uma utilidade, pois sua aparência manifesta algo que se parece com a nossa vida onírica.7 Merleau-Ponty fez uma leitura de Die Tiergestalt, de Portmann, e o lado onírico da aparência animal passou a existir literariamente. Georges Bataille havia anotado

4 BATAILLE, Georges. L’expérience intérieure. Œuvres Complètes V. Paris: Gallimard, 1992. p. 99. “C’est seulement à partir des animaux linéaires (vers, insectes, poissons, reptiles, oiseaux ou mammifères) que les individus vivants perdent définitivement la faculté de constituer, à plusieurs, des ensembles liés en un seul corps. Les animaux non linéaires (comme le siphonophore, le corail) s’agrègent en colonies dont les éléments sont cimentés, mais ils ne forment pas de sociétés.”

5 BATAILLE, Georges. Œuvres complètes I. Paris: Gallimard, 1992. p. 90. 6

STAMM, L’intériorité, dimension fondamentale de la vie, p. 59. 7

em A experiência interior: “no que diz respeito aos homens, a sua existência liga-se à linguagem. Cada pessoa imagina, e assim conhece, a sua existência com a ajuda das palavras.”8 Existência única, que também é alcançada pela percepção do animal, por sua inclusão na linguagem, bem como por sua incorporação como alimento.

É sob esse aspecto que seguiremos o percurso pelos açougues e abatedouros. Eles serão descritos e apresentados a partir de um poema definitivo para a estética do século XX, “Uma carniça” (“Une charogne”), de Charles Baudelaire, publicado em Les fleurs du mal. Esse poema nos aproximará das contribuições do pensamento heterodoxo de Georges Bataille, antecipando uma “tensão inigualável”, como se pode ler em La littérature et le mal, quando ele fala do ponto de partida de Baudelaire: “a démarche de Baudelaire não exprime apenas a necessidade individual, ela é a consequência de uma tensão material, historicamente dada de fora.”9 A carniça assume a tensão material, encarna-a como um corpo amorfo, para falar mais próximo de Nuno Ramos, cujo título O mau vidraceiro, de 2010, faz uma referência direta ao título de um poema de Le spleen de Paris. Em Ó, mais precisamente na narrativa “Manias, na trincheira”, Nuno Ramos parece descrever essa tensão material com um frescor que nos permite “tatear o corpo das coisas, suas texturas e perigos”.10 Esse frescor aproxima-se do jogo paródico de Georges Bataille.

Em L’anus solaire, a ideia de que o mundo é uma pura paródia faz com que uma coisa se assemelhe a outra, exigindo um jogo de aparências em que as formas se tornam decepcionantes. Segundo Bataille, “está claro que o mundo é uma paródia pura, quer dizer, que cada coisa que se olha é a paródia de uma outra, ou ainda, a mesma coisa que assume uma forma decepcionante.”11 Enquanto numismático, Bataille devia ter em mente o processo de cunhagem de moedas, para lembrar seu artigo “Le cheval académique”, em que existe a passagem de uma forma para a outra e que a “cópia” da reprodução de um cavalo clássico em uma moeda grega pode produzir uma imagem fruto de outra cunhagem, isto é, barroca, que nos termos de Bataille quer dizer “demente”. A cópia está também próxima da cópula, até porque essas formas que se alteram também passam pelo texto, pois “com a ajuda de uma ‘cópula’, cada frase liga uma coisa a outra (...) mas a cópula dos termos não é menos irritante

8 BATAILLE, Georges. Œuvres complètes V. Paris: Gallimard, 1992. p. 99. “En ce qui touche les hommes, leur existence se lie au langage. Chaque personne imagine, partant connaît, son existence à l’aide des mots.”

9

BATAILLE, Georges. Œuvres complètes IX. Paris: Gallimard, 1973. p. 205. “L’inégalable tension” de la démarche de Baudelaire n’exprime pas seulement la nécessité individuelle, elle est la conséquence d’une tension

matérielle, historiquement donné du dehors”.

10 RAMOS, Nuno. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2008. p. 126. 11

BATAILLE, Œuvres complètes I, p. 81. “Il est clair que le monde est purement parodique, c’est-à-dire que chaque chose qu’on regarde est la parodie d’une autre, ou encore la même chose sous une forme décevante.”