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4. SEGUNDO GIRO: REGRAS PARA A DIREÇÃO DO CORPO

4.1 Devolver a pele enrugada

A última narrativa de O pão do corvo, que Nuno Ramos publicou em 2001, intitula-se “Não serve”. Nela existe um apelo para que se devolva algo que não nos pertence: “Devolve a pele enrugada. Devolve a boca sem os dentes. Devolve a mistura mutilada, herança que não serve. Devolve para a lua, toma. Espalha as suas cinzas. Já que a luz não vela este cortejo – carnaval, silêncio – fecha os olhos sozinho. Fecha por ti mesmo.”1

Se Nuno Ramos tinha visto na primeira parte de Os sertões, de Euclides da Cunha, a terra como uma exumação do cadáver, isto é, uma verdadeira lição de anatomia, nessa breve narrativa o corpo faz parte de um corpo ainda maior, a própria terra, compartilhando, assim, anatomias diferentes – embora, nesse caso, a anatomia do corpo humano pertença à anatomia da terra. “Não serve” funciona como uma passagem importante para um princípio da vida que não transborda: a própria atuação do corpo em um teatro anatômico e seu desaparecimento, que implica na obscenidade (literalmente um fora da cena) da transformação da matéria, exibindo uma pele que não se sustenta mais.

Trata-se de uma passagem dramática próxima daquela enfatizada por Georges Bataille em L’histoire de l’érotisme, em que a passagem do animal para o homem acontece por um drama. A questão é que esse drama está deslocado, pois o grau da animalidade varia, sem delimitar especificamente onde está o homem, onde o animal, como lemos na narrativa do artista. Em outro nível, o corpo é exposto ao limite da matéria e ao limite da própria pele. Nesse sentido, Nuno Ramos fala da vida como a devolução de algo que foi tomado de empréstimo. Podemos nos perguntar do que se trata esse empréstimo e a quem a terra emprestou o que agora não serve para o corpo. A quem devolver a pele enrugada, a boca sem dentes? Para a lua, como está enunciado na narrativa? Ou para a terra, que está presente em diversas obras do artista, sejam elas textos, ensaios ou instalações?

A pele deve ser entregue, mas o gesto de entregá-la é imperativamente mais importante. Devolver a pele quando ela torna-se inútil é uma regra de toda uma economia geral do corpo. Nove anos depois, em 2010, Nuno Ramos publica em O mau vidraceiro uma narrativa intitulada “Regras para a direção do corpo”. Se hipoteticamente o artista convocara o corpo a ser devolvido para a lua – mas que, de fato, será devolvido para a terra –, em “Regras para a direção do corpo” ele se pergunta para quem e de quem são as ordens que do corpo vêm. Há partes do corpo precisas, como os cabelos, que não estão ali apenas com o

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objetivo de proteger a cabeça, o sexo ou as axilas do frio, mas também para transmitir ordens: “ordens de quem? Para quem?”2 Uma vez que as regras emitidas pelo corpo são cegas e mudas, elas acabam tornando-se regras sem comando: “Todo corpo é um corpo invadido e contrariado.”3

Entre um imperativo – uma ordem que parece ter sido transmitida pelo escritor quando ele exige a devolução do corpo – e as regras para a direção do corpo, existe uma trajetória quanto aos modos de uso do corpo, de sua presença física até ao que Nuno Ramos chama de “corpo mínimo”, isto é, a existência póstuma e residual do corpo que sobrevive apenas no nome do morto. O nome próprio, assim, ocupa uma parte característica na distinção entre os homens, bem como, de modo geral, na separação entre estes e os animais – salvo no caso da presença de animais no ambiente doméstico, em que estes passam também a ter nomes, cumprindo boa parte das vezes a responsabilidade, sob os cuidados humanos, de ter documentos e vacinas; geralmente, quando morrem, participam ainda de um “ritual”, possuindo um lugar para serem enterrados, no caso, um cemitério de animais.

No texto, que tem a desenvoltura de um ensaio, Nuno Ramos fala apenas de “corpo”. O corpo, cuja fisiologia e metabolismo mantêm um princípio de vida em comum entre homens e animais. Um corpo que, em sua produção artística, está em comum com a terra, onde a morte atua, por vezes em um procedimento plástico e econômico que toca a transformação da própria matéria. Ambiguamente, existe na terra uma espécie de soberania, como se pode ler ainda no ensaio que o artista dedicou a Euclides da Cunha: “a Terra é o túmulo de todo ato, preservando-se dele.”4 Aqui, entramos em uma leitura reticular: difícil separar a escolha do artista por uma parte de Os sertões, o que ele redige sobre a referida parte e seu trabalho como escritor, ensaísta e artista plástico. Isso também quer dizer que essa escolha de Nuno Ramos implica em um projeto que liga a pele à terra. Do mesmo modo, com essa leitura aproxima-se a ligação que deriva da pele, de suas expansões, o que implica em sua invenção por contiguidade, sua aparência, seu corte e sua abertura, sua animalidade e seus aspectos fantasmáticos. A terra é um conjunto de forças que integra e desintegra os corpos, permanecendo, de certa forma, soberana. Assim, em consonância com as regras elaboradas em O mau vidraceiro, o corpo torna-se extensão, afinal, “tudo te é contíguo porque você é extenso”,5 como escreve Nuno Ramos na Regra III. Essa extensão, que implica em inventar uma pele para tudo, retoma a elaboração do pensador italiano Emanuele Coccia, em La vie

2 RAMOS, Nuno. Regras para a direção do corpo. In: O mau vidraceiro. São Paulo: Globo, 2010. p. 83. 3 RAMOS, Regras para a direção do corpo.

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RAMOS, Nuno. Ensaio Geral. São Paulo: Globo, 2007. p. 26. 5

sensible, que toma a voz como uma pele fônica.6 A regra VII existe a partir de uma vizinhança da voz, da lágrima, do suor e do esperma, fazendo com que a materialidade do corpo, visível e invisível pela própria pele, não seja apenas a carne, mas a sonoridade e a viscosidade pelo corpo produzidas: “tua voz é teu corpo ainda, bem como as lágrimas e teu suor (até evaporarem), tua porra (até secar).”7

Se, no primeiro giro, essa viscosidade produzida pela terra era o desastre das casas que caíam, imagem ampliada do poema de Carlos Drummond de Andrade, aqui a viscosidade produzida pelo corpo passa por seus movimentos vitais. Para que o corpo produza sua viscosidade, ele precisa manifestar vida. Na mesma regra VII, por exemplo, Nuno Ramos é preciso quanto à motricidade do corpo ao dizer que o “fígado também anda, o rim se deita, o olho canta e a voz caga.”8 Internamente, sob a continuidade da pele, o corpo aparentemente produz descontinuidades quando se pensa na funcionalidade de cada um dos seus órgãos. No entanto, a partir da pele, podemos afirmar que o corpo inteiro grita e, ao mesmo tempo, que cada parte dele grita: “quando der um grito, lembre que teu pâncreas também grita, e destila gritando a sua resina verde.”9 Em meio a uma economia restrita do corpo higienizado, existe uma “parte maldita” que, não apenas pela sua viscosidade, deve ser chamada de “animal”, pois podemos ler a animalidade como parte de um complexo erótico-estético-pulsional que produz descontinuidades entre o texto e uma obra plástica, obtendo nuances da pintura à instalação. Na verdade, cada texto de Nuno Ramos possui uma relação pulsional com o material viscoso enquanto em sua obra esse material está em ação.

A pele apresenta esse limite, pois, diante de sua capacidade de envelopamento do conjunto do corpo para conferir-lhe unidade e ultrapassando esse sentido, ela faz com que o homem exerça um papel teatral, ou seja, enquanto o homem se encena, a animalidade torna-se uma saída aos seus transbordamentos. A pele teatraliza o corpo por inseri-lo no mundo das aparências, e a discussão desenvolvida a partir de Adolf Portmann e Georges Bataille a seu respeito faz com que ela seja pensada para além de sua funcionalidade: afinal, mesmo cumprindo sua função fisiológica de envelopamento, a pele também é dispêndio quando pensamos nos signos de desejo que ela conduz. Diante da capacidade sensível da pele, que conjuga a parte e o todo, continuamos a leitura da Regra VII de “Regras para a direção do corpo”. No momento em que o corpo grita, um órgão como o pâncreas também grita: “Isso é

6 COCCIA, Emanuele. La vie sensible. Paris: Rivages, 2010. 7 RAMOS, Regras para a direção do corpo, p. 86.

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RAMOS, Regras para a direção do corpo, p. 86. 9

evidente na dor – o corpo inteiro sofre – e nas convulsões do prazer – o corpo inteiro goza – mas, é preciso lembrar, nos pequenos atos há a mesma passagem entre a parte e o todo.”10

Entre a parte e o todo, os pequenos atos: as lágrimas e o esperma, ou “a porra”, como diz Nuno Ramos, estão ligados diretamente ao pranto e ao prazer. Podem ser lidos como metonímias de ambos, embora a leitura não pare nessa figura de linguagem. Ela prossegue, porque as lágrimas trazem precisamente um signo de ambiguidade, aquilo já assinalado por Georges Bataille em Les larmes d’Éros, que liga o que é ordinário a um evento inesperado. O que Bataille reivindica como uma imagem inapreensível de Eros torna-se uma imagem inapreensível do corpo. Diante de “Regras para a direção do corpo”, notamos que existe uma parte inapreensível do corpo que foge das descrições nosológicas e anatômicas. Expondo a pele como uma textura da animalidade, chegamos à literatura com o que há de inapreensível no corpo, compreendendo ainda seus movimentos impossíveis. A animalidade torna-se um fenômeno literário entre outros usos das palavras.11 Mesmo que façamos um breve percurso por esses dois momentos para compreender a pele como uma textura da animalidade, é na literatura que o inapreensível do corpo toca em sua animalidade, é na literatura que a pele passa a ser um fenômeno por ela manifesto.

Pelo texto, o corpo pode ser montado e desmontado para que, assim, seja montado novamente. Ele se torna um jogo de combinações a partir dos órgãos e de tudo aquilo que foi e continua a ser transmitido pela história da figura humana para as artes visuais, para a constituição de um corpo anatômico que foi novamente cortado no campo da imagem, como ocorre no próprio plano fotográfico. Se Walter Benjamin nos incitou a pensar a obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica por volta de 1936, nós, por nosso turno, devemos pensar o corpo anatômico em um momento no qual as figuras humanas não tinham tanta facilidade de circulação: antes da fotografia, o corpo passava pela mão sem a mediação de imagens técnicas, isto é, havia um processo diferente de apreender suas medidas pelo desenho, pela pintura e por processos de impressão como o desenvolvido por Gautier d’Agoty, em cores. Nos planos fotográficos, o corte começou a ser operado de outro modo, e o detalhe do corpo existia em um nível de suplício distinto daquele da China Imperial que tanto fascinou o escritor Georges Bataille. O efeito do corte é um punctum da imagem do

10 RAMOS, Regras para a direção do corpo, p. 86. 11

Bataille anota de Nietzsche o seguinte fragmento: “vê-se nascer uma espécie híbrida, o artista, longe do crime pela fraqueza de sua vontade e pavor da sociedade e ainda não amadurecido para um hospício, mas prolongando curiosamente suas antenas em direção a essas duas esferas” (BATAILLE, Georges. Œuvres complètes VI. Paris: Gallimard, 2002. p. 56). “On voit naître une espèce hybride, l’artiste, éloigné du crime par la faiblesse de sa volonté et sa crainte de la société, pas encore mûr pour la maison de fous, mais étendant curieusement ses antennes vers ces deux sphères.”

suplício de Bataille, e para ele essa relação com a imagem tem um efeito literário. Isso quer dizer que a literatura suporta uma diversidade de regimes de crueldade elaborados pelo escritor, que todas as modificações que o corpo sofreu pelo viés da imagem também foram incorporadas pela literatura. A literatura, no entanto, produz imagens de uma forma particular, as quais são capazes de tocar os limites do corpo anatômico e de criar, por vezes, um corpo que escapa da anatomia. Assim, a partir de uma das regras para a direção do corpo, é possível dizer que “a voz caga”.

Na literatura, a animalidade ocupa um espaço ambíguo, em que ela é e não é algo típico do humano. Ao ladoda literatura, o homem torna-se um gênero em ritmo de mudar suas regras (incluindo as fisiológicas e as de gênero), que constantemente são desafiadas. Aqui a fisiologia transborda e o humano – como gênero e narrativa – entra em acordo com outras formas, sejam elas animal, mineral ou vegetal; pela literatura, um corpo humano é capaz de respirar sem pulmões, de copular sem órgãos sexuais e de perder a unidade que tem sob a pele. Desse modo, o texto expande-se como pele na medida em que toca a matéria.

O que Nuno Ramos não põe em matéria em termos de pintura, de escultura e de instalação, está assim posto em um viés literário, em poemas, ensaios e narrativas. Ele escreve o que a matéria plástica não alcança. Isso quer dizer que a literatura, para ele, seria resto? Ela toma visualmente o lugar em que o corpo seria posto à prova da matéria, em que, a partir da pele, pelo limite de sua figuração, pela animalidade, pelo limite do humano, seria sempre capaz de alcançar outra forma pelo viés literário. A literatura seria, ainda, um outro modo de manter o que é viscoso em uma dimensão verbal. Trata-se de um efeito alcançado no próprio texto, o de fazer com que os estados (sólido, líquido, gasoso) não passem de um para o outro sem que tomemos conhecimento desse trânsito. Além de marcar essa passagem, esse efeito mantém a tensão entre o que é sólido e o que é viscoso. Quando esse contraste não está fortemente marcado, a operação mental acionada por Nuno Ramos é uma semelhança por contraste: marcar bem a diferença entre o plástico e literário em lugar de buscar seus pontos em comum. Assim, o jogo entre as aparências é fundamental, aspecto que discutiremos em seguida a partir dos livros Cujo (1993) e Junco (2011).