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4. SEGUNDO GIRO: REGRAS PARA A DIREÇÃO DO CORPO

5.1 Lições de anatomia e atlas anatômicos: a pele como um signo de corte

Maria Filomena Molder, em O pensamento morfológico de Goethe, nos apresenta o ato de conhecer como um ato de se colocar na pele das coisas: “o ato de conhecer só alcança a sua autêntica dignidade se o observador se colocar na pele das coisas”.1 O gesto de colocar- se na pele das coisas evoca um conhecimento tátil e plástico que implica em uma invenção de outras peles, enfatizada no ato de criação plástica e literária. Assim, a exigência de Maria Filomena Molder motiva-nos a fazer um percurso pelos atlas de anatomia, nos quais o corpo tornou-se um objeto aberto a ser conhecido a partir de uma abertura por um corte na pele.

Após a passagem pelos anjos de Bataille e de Benjamin e pelas regras do corpo do “segundo giro”, nosso percurso continua, assim, por alguns atlas anatômicos. Michel Foucault assinala que, em um primeiro momento, nos séculos XVII e XVIII, o poder sobre a vida tem suas origens na concepção do corpo como uma máquina e que, em um segundo momento, no século XIX, fundamenta-se o “corpo-espécie” (“corps-espèce”), no qual essa mecânica do vivente serve como suporte aos processos biológicos que implicam em descobrir níveis de duração da vida – os nascimentos, as mortes ou as condições de saúde2 –, enfim, o controle das populações. Assim, com essa “vontade de saber”, o que se passa com o corpo humano coloca-se diante do drama do próprio corpo, posto em cena em um verdadeiro teatro da

anatomia. Diderot havia assinalado que na pintura, como na moral, é perigoso ver o que há

1 MOLDER, Maria Filomena. O pensamento morfológico de Goethe. Lisboa: Casa da Moeda, 1995, p. 266. Para contextualizar a citação de Maria Filomena Molder, que discute pontos comuns entre o pensamento (morfológico) de Goethe e René Thom, acrescentamos o excerto integral: “Além dos comuns assinalados entre Goethe e R. Thom, existem ainda outros, sobretudo avaliáveis a partir de Esquisse d’une Sémiophysique, que constituem prolongamentos ou novas conexões dos anteriores e que mostram a confluência de um e outro pensador. Em primeiro lugar, a mesma concepção de uma intencionalidade da natureza, de uma inteligibilidade inerente, propriedade daquilo que aparece, das formas, antes de qualquer conceptualização no sentido estrito da palavra (cf. op. cit., p. 31). Em segundo lugar, o reconhecimento, no estudo vivo, da autonomia em cada nível da organização, o que leva ao afastamento de qualquer visão reducionista, unilateral, que tomou formas precisas no empreendimento desmedido de decifração exaustiva do metabolismo vital ao nível molecular; de acordo com Thom, esta autonomia expressa-se segundo uma morfologia de saliências e pregnâncias (cf. idem, p. 114). Finalmente, o acto de conhecer só alcança a sua autêntica dignidade se o observador se colocar na pele das coisas (ibid, p. 49), ensaio de mímese, tentativa de conversão na coisa, em que consiste o cerne do modo goethiano de pensar”. Esta citação, e todo o estudo O pensamento morfológico de Goethe, contribuem para nossa investigação ao indicar que existe toda uma morfologia da pele que começa com o ato de conhecer, e daí a escolha do ato de conhecer como um gesto de corte, fazendo um percurso pelos teatros da anatomia até às considerações de um não saber existente na pele, um deslizamento para o incognoscível (Bataille) que implica na exposição da animalidade como uma textura que envolve o humano. Derivando da relação de Maria Filomena Molder e de Georges Bataille, a pele torna-se uma dinâmica vital de camadas em que sua própria manifestação visível é um campo performativo do não-saber no espaço do saber.

sob a pele.3 Abrir o corpo não era apenas um tabu religioso, mas uma questão metafísica, uma vez que sempre existe o “espectro do outro corpo”.4

A ideia da representação do corpo não nos põe somente diante de um teatro, mas também diante da necessidade de esgotar os saberes em torno da vida, os quais, enfim, tomam o corpo humano como um de seus objetos. Nesse sentido, pode-se dizer que o homem é animalizado. O teatro, nesse caso, funciona às avessas. Se o corpo, intencionalmente, precisa desenvolver algum tipo de expressão para atuar, um dos papéis principais requer a imobilidade do ator. A atuação, digamos, pertence ao retrato de um grupo, cuja direção, vinda do médico, está em cena. Assim, todo um gênero pictural se forma em torno de um corpo exposto aos eventos mundanos dos teatros de anatomia. Os teatros de anatomia eram eventos em que a Universidade praticamente rivalizava com o teatro em sessões, gratuitas ou pagas, que aconteciam em auditórios circulares, com o modelo de um anfiteatro. Na Holanda, no século XVII, a lição de anatomia assumiu uma grande importância, e o corpo médico posava para os pintores durante a dissecação de um cadáver, atentamente observada pelos espectadores. Isso fazia com que a dissecação fosse ritualizada e dividida em uma sucessão de cenas que implicavam na abertura do abdômen e depois do tórax, como descreve Gérard Dessons em Rembrandt, l’odeur de la peinture.

De um lado, o teatro evocava uma didática mais direcionada ao saber, quer dizer, uma didática do corpo aberto, como se existisse uma verdade sob a pele;5 de outro, essa abertura tornava-se imagem, voltando a ser superfície pictórica, elemento importante para um gênero que se valia, ainda, da importância social das dissecações públicas, como ressalta Michel Lemire ao comentar a existência de cerca de vinte “lições de anatomia” na Holanda entre 1603 e 1773. A primeira de que se tem notícia é The Anatomy Lesson of Dr Sabastien

Egbertsz, 1601-1603, de Aert Pietersz.6 Mas, sem dúvida, a pintura do gênero mais celebrada pela História da Arte é a de Hamerisz van Rijn Rembrandt, La leçon d’anatomie du Dr. Tulp, de 1632. Entre essas duas pinturas existe uma nítida diferença em relação ao que é mostrado. Na primeira, temos um retrato do corpo médico. Dizemos retrato porque, mesmo que se trate de uma pintura de grupo, os rostos são tratados na pintura praticamente de forma individual, pois os olhares dos modelos estão voltados para o pintor. Historicamente e picturalmente, o

3 DIDEROT, Denis. Pensées detachées sur la peinture. Paris: Hermann, 1995. p. 431.

4 Como assinala DESSONS, Gérard. Rembrandt, l’odeur de la peinture. Paris: Laurence Temper, 2006. p. 31. 5

Alain Bouchet cita um fragmento de Anatomie générale, de Xavier Bichat (1801): “Abra alguns cadáveres: você logo verá desaparecer a obscuridade que uma única obervação não podia dissipar” (BOUCHET, Alain.

L’esprit des leçons d’anatomie. Paris: Cheminements, 2008, p. 6). “Ouvrez quelques cadavres: vous verrez

aussitôt disparaître l’obscurité que la seule observation n’avait pu dissiper.” 6

MIDDELKOOP, Nobert E. Rembrandt under the scalpel. The Anatomy Lesson of Dr Nicolaes Tulp Dissected. Amsterdam: Mauritshuis, 1998. p. 9.

corpo ainda não está aberto. O retrato de grupo ainda segue o modelo de uma pintura típica da guarda-civil, isto é, “civic-guard paintints”.7 Nesse sentido, Gérard Dessons se refere a La

leçon d’anatomie du Dr. Tulp como um simulacro teológico, no qual “o Verbo medicinal

torna-se carne anatômica. O ritual da dissecação parodia uma Incarnation: ele consagra a abertura do corpo, a inscrição de um discurso, que é uma nominação.”8

Outra imagem marca a passagem do animal para o homem, levando em consideração a existência de estudos em anatomia comparada nos quais predominava a concepção do corpo como uma máquina. Os modos de funcionamento dos corpos teriam algo em comum, o que possibilitava adquirir conhecimentos do corpo humano pela via de corpos animais. Existe em uma iconografia da anatomia comparada: diversas mensagens em flâmulas empunhadas por esqueletos (memento mori, mors ultimum. Vita brevis, homo bvlla, no se te

ipsvm, omnes codem cogimuss acqua lege necessitas portitur insigna et imos, pvlvis et vmbra sumus), além de uma convivência de esqueletos de humanos e de animais, como na gravura

de Bartholomeus Dolendo, The Theatrum Anatomicum in Leiden, 1609. As máximas escritas nas gravuras deste gênero davam ao espectador a lembrança da efemeridade da existência.9

Figura 12 - The Theatrum Anatomicum in Leiden, de Bartholomeus Dolendo

Fonte: MIDDELKOOP, Rembrandt under the scalpel, p. 9.

Na gravura de Dolendo, um corpo aberto ocupa lugar privilegiado, no qual o ventre aberto do cadáver tem o mesmo eixo de todo um instrumental astronômico que marca a

7 MIDDELKOOP, Rembrandt under the scalpel, p. 9.

8 DESSONS, Rembrandt, l’odeur de la peinture, p. 37. “c’est le Verbe médical qui se fait chair anatomique. Le rituel de la dissection parodie une Incarnation: il consacre l’ouverture du corps à l’inscription d’un discours, qui est une nomination.”

9

relação entre organismo e cosmos. Essa relação entre organismo e cosmos pode ser notada na leitura da revista Documents, mais precisamente em textos de Michel Leiris.10

Figura 13 - A lição de Anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt

Fonte: MIDDELKOOP, Rembrandt under the scalpel, p. 23.

A lição de anatomia do Dr. Tulp aporta uma “cena de origem” do gênero para o

imaginário anatômico ocidental. Sua dimensão – 169,5 x 216,5 cm – corresponde a uma explícita exposição da carne em um momento de aspiração científica, ou a um “tableau vivant científico atravessado pelo ‘triunfo da Sapientia sobre a Malitia’.”11 Assim, se existe uma moral em torno das lições de anatomia, ela visa a ser o triunfo do saber sobre os males do corpo. Ela instaura uma teologia da medicina, enfim, uma busca pelo poder sobre a própria vida. Existe, no entanto, uma ferida, uma abertura que mantemos no plano literário. Para isso, é marcante o que escreveu Jean Genet no ensaio “Le secret de Rembrandt”: “é todo o

10 Por esse viés de leitura, os textos de Michel Leiris para a revista Documents são: “Notes sur deux figures

microcosmiques des XIVe et XVe siècles” [Notas sobre duas figuras microcósmicas dos séculos XIV e XV], publicado no primeiro número da revista; “L’homme et son intérieur” [O homem e o seu interior], no número cinco da revista, editado em 1930 e, ainda no segundo número de Documents publicado em 1930, “Toiles récentes de Picasso” [Telas recentes de Picasso].

11

HEKSCHER apud MIDDELKOOP, Rembrandt under the scalpel, p. 23. “A scientific tableau vivant through ‘the triumph of Sapientia over Malitia’.”

organismo que está trabalhando para esta ferida.”12 Igualmente importante é que, seguindo pelo quadro de Rembrandt, os olhares dos personagens não se voltam para a abertura do corpo ou, mais precisamente, para a sua “ferida”. Não existe um consenso do grupo em manter o olhar direcionado para o antebraço aberto que exibe os nervos e a musculatura, isto é, para a parte aberta do corpo. Encontramos na tão célebre pintura de Rembrandt uma outra lição sobre a lição de anatomia. Um médico, que segura um desenho esboçado em uma página, escuta os ensinamentos do Dr. Nicolaes Tulp, mas observa também, no canto inferior direito, um grande tratado aberto. É a cena de uma lição, isto é, um dispositivo pedagógico no qual a palavra tem um poder espiritual sobre o corpo, no qual o discurso abre o cadáver.13

No quadro de Rembrandt, o grupo está notavelmente reduzido. Seu entorno é escuro e não existe um público fora do quadro, o que configura o aspecto escolar de uma sala de aula. Enquanto o Dr. Tulp profere sua lição, o nervo do braço esquerdo do cadáver é cortado. Espantosamente, o corpo médico está bem mais próximo tanto do morto quanto do professor e, por fim, a pele do morto, alva, contrasta com a ausência de pele de seu braço. Foi o poeta Jules Laforgue quem inaugurou a forma de pôr em evidência a pele dos personagens dos quadros de Rembrandt, como se eles possuíssem uma “lepra na pele”,14 sendo quadros que deixam a impressão de uma doença no ar. Abordar os quadros de Rembrandt faz com que toquemos em uma questão fundamental em relação à pele e, sobretudo, em seus desdobramentos nas manifestações artísticas contemporâneas que estão no limite da abjeção: manter distância de uma determinada obra.15 As camadas de sentido de um Rembrandt mudaram de seus contemporâneos até os dias de hoje, mas o procedimento de exposição da anatomia, que passa pela abjeção, saindo do discurso técnico, ainda encontra distintos modos de sobrevivência. A “lepra na pele” dos personagens foi algo atribuído por um poeta do século XIX. Existe ainda uma anedota em torno de Rembrandt que faz alusão à distância que os visitantes deveriam manter diante dos seus quadros: “o odor da pintura poderia te fazer

12 GENET, Jean. Œuvres complètes V. Paris: Gallimard, 1979. p. 32. “c’est tout l’organisme qui est au travail

pour cette plaie.”

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O professor de literatura francesa da Paris 8, Gérard Dessons, analisa em Rembrandt, l’odeur de la peinture a contemporaneidade do Discours de la méthode, de Descartes, e da pintura de Rembrandt. Ambos, Rembrandt e Descartes, estavam na Holanda. Dessons chega a uma formulação segundo a qual o discurso anatômico opera uma desmontagem (do corpo) que responde simetricamente às longas frases de Descartes, sintaxe esta que mimetizava a circulação perpétua do sangue, descoberta em 1628 pelo médico inglês William Harvey (DESSONS, Rembrandt, l’odeur de la peinture, p. 43).

14 DESSONS, Rembrandt, l’odeur de la peinture, p. 68.

15 Efeito, aliás, que pode encontrar uma perspectiva diferente na literatura de Georges Bataille, precisamente nas cenas impressionantes de L’histoire de l’œil e seu correspondente distinto, o material plástico utilizado pelo artista Nuno Ramos, compreendendo, inclusive, suas narrativas e poemas.

mal.”16 O visitante está diante da pintura como se tivesse diante dele uma carcaça, ou, mais precisamente, uma carniça. Vinte e três anos depois de A lição de anatomia do Dr. Tulp, em 1655, Rembrandt conceberá um animal escorchado, mais precisamente um boi, Le bœuf

ecorché.

Figura 14 – O boi escorchado, de Rembrandt

Fonte: Museu do Louvre

Ao se aproximar dessa “natureza-morta”, que está no Museu do Louvre, em Paris, a sensação de odor se funde às massas das cores em movimento, cujo efeito realmente nos leva a uma representação da carne aberta do animal. A carne aberta do animal em Rembrandt enfatiza uma relação entre a matéria e o gesto, e faz com que concordemos com Jean Genet sobre o fato de que Rembrandt, sobretudo em sua fase mais escura, faz com que nosso olhar fique mais pesado, mais bovino.17 O tema do boi escorchado aparece no poema homônimo de Eugène Guillevic:

16

DESSONS, Rembrandt, l’odeur de la peinture, p. 82. “l’odeur de la peinture pourrait te faire du mal.”

17 A citação precisa do ensaio “Ce qui est resté d’un Rembrandt déchiré en petits carrés bien réguliers, et foutu aux chiottes” é a seguinte: “quando se está diante de um quadro de Rembrandt (sobre aqueles do final de sua vida), nosso olhar se torna pesado, um pouco bovino. Algo o retém, uma força grave” (GENET, Jean. Œuvres

complètes IV. Paris: Gallimard, 1989. p. 21). “Quand il se pose sur un tableau de Rembrandt (sur ceux de la fin

É pela carne por onde passava o sangue, da carne Por onde tremia a miraculosa,

O incompreensível calor dos corpos. Existe ainda

Algo da iluminação do fundo do olho. Poderíamos ainda acariciar esse lado, Poderíamos ainda lá repousar a cabeça E cantarolar contra o medo.18

O poema de Guillevic participa de uma forma de transmissão da natureza morta do quadro de Rembrandt. O poeta se aproxima com os versos do que o pintor recomendava tomar distância. A imagem literária é fundamental para entender a relação que Georges Bataille, Eli Lotar e Michel Leiris estabelecem com os abatedouros na revista Documents. Para radicalizar a imagem do poema e a relação humana com um animal morto, nos perguntamos se seria ainda possível cantarolar contra o medo e repousar a cabeça no ombro de um corpo humano escorchado, mudando o distanciamento que existe na Lição de anatomia

do Dr. Tulp. A relação anatômica entre homem e animal de Le bœuf écorché se distingue da

relação anatômica desenvolvida por Rembrandt a partir da anatomia de Versalius, pois o pintor cita a tradição dos écorchés presente no De humani corporis fabrica:

Hekscher relacionou a escolha da dissecação do antebraço com as teorias de Andreas Versalius (1514-1564).Versalius, um médico nascido em Bruxelas, tinha praticamente deixado de lado a distinção entre a teoria e a prática no ensino da medicina. Durante suas palestras em cidades como Pádua, Bolonha e Louvain, ele mesmo encarregou-se do trabalho anatômico com um assistente. A impressão do título De humani corporis fabrica libri

septem (Os sete livros sobre a Estrutura do Corpo humano), publicado m

1543, mostra-o em pé, ao lado da mesa de dissecação em um teatro anatômico imaginário, explicando suas teorias a um grande público reunido em sua volta. Tulp estava familiarizado com as teorias de Versalius, seu professor em Leiden, onde o Theatrum Anatomicum tinha sido erguido. Em De humani corporis fabrica, Versalius descreve o braço como o principal instrumento do médico, o “primarium medicinae instrumentum” e, definitivamente no fronstispício havia um antebraço que ele tinha representado. Assim, a dissecação do antebraço no grupo retratado por Rembrandt faz de Tulp um novo Versalius, um Versalius redivivu.19

18

GUILLEVIC, Eugène. Terraqué. Paris: Gallimard, 1968. p. 25. “C’est de la viande où passait le sang, de la viande/ Où tremblait la miraculeuse,/ L’incompréhensible chaleur des corps.// Il y a encore/ Qualque chose de la lueur du fond de l’œil./ On pourrait encore caresser ce flanc,/ On pourrait encore y poser la tête/ Et chantonner contre la peur.”

19

MIDDELKOOP, Rembrandt under the scalpel, p. 22. “Hekscher has linked the choice of a dissection of the forearm to the theories of Andreas Versalius (1514-1564). Versalius, a medical man originally from Brussels, had more or less abolished the distinction between theory and practice in the teaching of medicine. During his lectures in such cities as Padua, Bologna and Louvain he had himself carried out the anatomical work previously left to an assistant. The title print of Versalius’s De humani corporis fabrica libri septem (The Seven Books on the Structure of the Human Body), published in 1543, shows him standing beside the dissecting table in an

Versalius entra em cena pelo teatro de Rembrandt, mais precisamente pelo saber do Doutor Tulp. Ele está atravessado pela divinização do saber anatômico, que faz do corpo humano o corpo de um animal divino.20 O cadáver em sua imobilidade, no entanto, ensina menos que a palavra impressa no tratado ou no registro oral da aula-dissecação. Pouco a pouco, os espectadores do teatro da anatomia saem da pintura, como as lições de anatomia de Thomas de Keyser, The Osteology Lesson of Dr Sebastiaen Egbertsz, de 1619, ou a de Nicolaes Eliasz Pickenoy, The Anatomy Lesson of Dr Johan Fonteijn, de 1626. Em ambas o cadáver está ausente; o que existe, respectivamente, são um esqueleto e um crânio. Eles se valem do esqueleto, figura retórica do barroco cuja força de síntese está pautada no Memento

mori. Assim, se Rembrandt cita Versalius, podemos situar essas duas outras imagens como

citações da Vanitas, de Hans Baldung Grien, que está em Les larmes d’Éros, de Georges Bataille, ou na própria vanitas do Bœuf écorché, embora esta imagem assuma sua força semântica da vida passageira no século XVII, como nos mostram Federico Ferrari e Jean-Luc Nancy em Nus sommes – la peau des images:

É a Vanitas do século XVII, a figura de um esqueleto que não procura abrir o nu, como diria Didi-Huberman, ou a trazer a nudez “em direção àquilo que se escapa sem pose a uma representação distinta” (Georges Bataille), mas que tenta mais precisamente escorchar, retirar a vitalidade do que é vivente, pacificar a inquietude da carne, espiar e escrutar além do “segredo” da pele, escolher o esquema que repousa sob a nudez: sua origem e seu fim.21

Longe de uma construção cujo fim seria uma vitória do saber sobre as doenças e as fraquezas do corpo, convém observar que o esqueleto – ou o crânio – está diretamente ligado ao sentido da finitude, do esgotamento – nas imagens de Baldung, uma criança (Eros) e imaginary anatomy theatre, explaining his theories to a large audience gathered round him. Tulp was familiar