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1. PRIMEIRO GIRO: NO INÍCIO ERA A MORTE

1.4 O princípio da morte pelo molde: a pele e a animalidade

Uma vez no chão, surge um diálogo com a areia, com a terra, com a lama, enfim, com as forças telúricas que rompem com o espaço arquitetado pelo homem pelo que pode ser chamado de desastre, de acidente, de catástrofe. No poema de Drummond, a morte se apresenta pela chuva, pela lama, fenômenos que enfatizam não mais a iminência do fim dos corpos humanos, mas a do mundo por eles construídos e que, ao morrer, assiste também as suas mortes. O poema motiva uma obra plástica que deriva, que depende do espaço para falar da morte das casas, pela via das vozes (Morte das casas) ou das casas (ai, pareciam eternas!) que afundam na lama. A chuva e a lama evidenciam o corpo aberto em sua mais longínqua animalidade, aquela à qual Bataille se refere com certa nostalgia, perdida em uma “indignidade” própria da fera (bête) que se tornou homem.25 Lascaux ou la naissance de l’art é um ensaio de Bataille que deixa claro o problema dessa animalidade em questão: “essa visão da animalidade é humana naquilo que a vida que ela encarna é transfigurada nela própria, que ela é bela e, por esta razão, soberana, pela miséria imaginável.”26 Após esse excerto de Lascaux ou la naissance de l’art, a primeira tarefa é mobilizar o uso da palavra “bela” de uma perspectiva clássica que é revista, desde o Renascimento italiano, como o conceito de proporção perfeita.27 Desse modo, o que nos mobiliza no texto de Bataille não é o fato da ascensão humana ao saber, isto é, a formação de uma civilização material pelo trabalho e pela criação de suas ferramentas, mas algo que talvez passe à margem e que é fundamentalmente importante, o encontro com o sensível que, para Bataille, ainda está na

25 BATAILLE, Georges. Lascaux ou la naissance de l’art. Paris: Skira, 1994. p. 22-23.

26 BATAILLE, Lascaux ou la naissance de l’art, p. 24. “Cette vision de l’animalité est humaine en ceci que la vie qu’elle incarne est, en elle, transfigurée, qu’elle est belle et, pour cette raison, souveraine, par-delà la misère imaginable.”

27 Essa investigação faz parte do texto de Heinrich Wölfflin, Conceitos fundamentais da História da Arte, livro que teve sua primeira edição em 1915, sendo reeditado várias vezes. Livro, aliás, importante para a discussão sobre os aspectos do estilo (WÖLFFLIN, Henrich. Conceitos fundamentais da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 12.). Wölfflin, nesse sentido, foi importante para o escritor Georges Bataille e para o zoólogo Adolf Portmann, ao qual nos referiremos pontualmente ao longo deste trabalho.

obra de arte. Assim, a questão da animalidade passa por uma proposta modesta de não nos querermos ater a uma investigação ontológica do estatuto do homem, mesmo tomando a morte como um princípio de movimento. O ensaio L’animalité, de Dominique Lestel, permitiu-nos uma incursão pelo pensamento da animalidade sem que essa incursão se tornasse uma busca pela essência do homem ou do animal, mas sim por um espaço de sentido: “A animalidade não se direciona a uma essência do homem, muito menos a uma essência do animal, mas precisamente ao modo em que o homem e o animal habitam o mesmo espaço; trata-se de um espaço de sentido, antes de ser um espaço físico ou geográfico.”28 A animalidade, neste trabalho, torna-se operação de leitura de uma construção sensível que toma as atividades animais para a produção artística e literária. É por esse viés que chegamos à pele. Ela nos dá a dimensão de singularidade animal pelo contato e pelo molde, por sua aparição e desaparição. Mesmo diante de um problema da representação literária estamos diante da questão da pele, de suas dobras, de suas marcas e de suas impressões, como se pode ler com Georges Didi-Huberman em La ressemblance par contact.29 É a partir dessa leitura que a pele assume sua característica de campo e de veículo de signos desejantes. Sua aparição evoca sua desaparição e vice-versa, pois a pele, como um órgão opaco e de visibilidade, assume uma forma que se transforma pelas ações do tempo. No entanto, ela não é apenas um signo mortífero que marca a passagem do tempo sobre o corpo humano – destaque-se a existência de uma significativa movimentação econômica com fins “estéticos” dedicada a reverter a passagem do tempo sobre o corpo por meio de produtos de beleza. A pele reinventa o organismo e torna-se seu principal veículo junto ao mundo exterior. O corpo fala a linguagem da physis. E talvez seja esse o motivo que tenha levado Jean-Christophe Bailly a escrever que a animalidade, muito raramente, é denominada como “neutra”, do mesmo modo que ela não fala dos animais.30

A animalidade, tal como descreve Bailly, circunscreve uma zona de partilha (une

zone de partage) à qual o homem não escapa e diante da qual sucumbe.31 A vizinhança com a morte tenciona a zona de partilha da animalidade, ao mesmo tempo que a torna possível. Sendo visível e invisível em um determinado ambiente, o corpo produz suas marcas e sofre as

28 LESTEL, Dominique. L’animalité. Paris: L’Herne, 2006. p. 119. “L’animalité ne renvoie ni à une essence de l’homme ni à une essence de l’animal, mais plutôt à la façon qu’ont l’homme et l’animal d’habiter un même espace, qui est un espace de sens avant d’être un espace physique ou géographique.”

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DIDI-HUBERMAN, Georges. La ressemblance par contact. Archéologie, anachronismes et modernité de l’empreite. Paris: Les Éditions de Minuit, 2008. Para precisar o contexto dessa afirmação, Didi-Huberman escreve essa problemática a partir de Baudelaire: “Il n’y est question que de peau, de plis et d’empreintes.” (p. 139). Não existe questão senão na pele, nas dobras e nas impressões.

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BAILLY, Jean-Christophe. Le parti pris des animaux. Paris: Christian Bourgois, 2013. p. 36. 31

ações do tempo; simultaneamente, imprime nelas seus movimentos e gestos. Nesse sentido, será junto da plasticidade e do espaço literário que lemos a pele como um signo da animalidade. Georges Bataille, escreveu Georges Didi-Huberman, afirmou que tudo é uma questão de “emprego do tempo”. Enfim, o termo “empregar o tempo” nos parece uma armadilha que tangencia a utilidade e a economia. Equiparamos aqui as duas sentenças que guiam este primeiro giro – “no início era a morte” e “empregar o tempo” – para marcar a diferença entre ambos diante dos próprios modelos temporais, os quais fazem com que Didi- Huberman afirme que assim se torna possível pronunciar palavras aqui em questão, tais como “crise”, “morte”, “perda” ou, ainda, “decadência”.32 Possivelmente existe aí um apego a uma origem que nos faz sempre perguntar os fins do homem, pergunta e armadilha ontológica capaz de conduzir essa “origem” e “destino” para a busca de definições tais como “o que é” ou “para que serve” o homem, o animal, a arte, a literatura... Diante da responsabilidade de tais questões, optamos pela irresponsabilidade da literatura, cuja produção capaz de tudo dizer, como já lemos em Bataille, não diz simplesmente qualquer coisa. Não se trata de ser estritramente formal. A questão é que os movimentos das formas existem com impurezas e contingências. Diante desse aspecto que trazemos essa produção pela forma e pela contraforma, quer dizer, em termos de corpo e de molde, onde o contato é fundamental para a apreensão das marcas e traços do corpo. Assim, quando nos interrogamos então sobre os limites da temporalidade em torno dos textos e das imagens em relação ao corpo, um outro aspecto vem à tona: o emprego do tempo em uma economia da vida, emprego ao qual o homem, na medida que se inscreve no desenvolvimento da espécie, torna-se útil e, enfim, fez um bom emprego do tempo. Essa administração da vida pelo viés do tempo não merece ser o traço que distingue o homem do animal, sobretudo quando trazemos a animalidade, a morte e o fora da linguagem que pode chegar pelas vias da catástrofe, do acidente, do imprevisto e, ainda, em outra escala, por uma instalação artística, por uma performance ou um poema. Mesmo a lama, a morte das casas e dos túmulos exercem um papel fundamental para que a morte seja um molde, para que a vida, em si, seja uma escultura efêmera, e para que a pele seja a manifestação da animalidade.

Nas obras de Nuno Ramos que foram exibidas na 46a Bienal de Veneza, em 1995,

Craca e Caixas de areia, a animalidade é um fenômeno da pele, em toda a intensidade de sua

forma. Lorenzo Mammi faz a ligação de ai, pareciam eternas! (3 lamas) a essas obras pelo viés do molde: “o que é moldado na Craca e nas Caixas de areia não são bichos em geral,

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DIDI-HUBERMAN, Georges. La ressemblance par contact. Archéologie, anachronismes et modernité de l’empreite. Paris: Les Éditions de Minuit, 2008. p. 14.

mas exatamente esta ave, este peixe.”33 Em uma massa de animais e vegetais em movimento, existe a precisão de cada animal no volume esculpido. A insinuação desse movimento vem da terra, do princípio da morte que tudo arranca e arrasta pela sua lama originária e informe. Esse todo arrastado pela lama pode ainda ser um detalhe decisivo, que aparentemente é um movimento duplo contido no corpo que existe como base do vivente: a sístole e a diástole, o movimento do coração e, enfim, a respiração, a qual implica na inspiração e na expiração, quer dizer, na troca entre o mundo exterior e o mundo interior. O nível mais básico e fundamental da economia do vivente com o mundo, para dizermos com Jean-Christophe Bailly, é a forma animal do ser em vida.34 O molde, que vem como contraforma, aplica-se do lado negativo, na busca de uma imobilidade do corpo, mesmo que ela tenha, como em Craca, um efeito de movimento. Além da pele física, uma outra pele é inventada, isto é, a pele do contato, a pele que deixou a marca e o volume do corpo. A pele que é fruto dessa imobilidade, uma pele que vem da morte, que é também um fenômeno da terra, que liga os corpos a um movimento impessoal da vida.

Essa conexão da obra com a terra, em Nuno Ramos, passa pela animalidade em um momento no qual a polaridade entre literatura e artes visuais se dinamiza na pele que o artista inventa para tudo. Na elasticidade própria da pele, a animalidade participa de um movimento de contenção e de expansão no texto literário e nas instalações Morte das casas e

ai, pareciam eternas (3 lamas), assim como em Craca e nas Caixas de areia, que serão

retomadas e lidas criticamente no quarto giro. Se no início era a morte, a pele nos faz retomar o molde, criando outro aspecto a ser discutido, a questão da semelhança, que está inicialmente em Craca e nas Caixas de areia. Esse aspecto se insere ainda na discussão sobre a anatomia, sobre o abate animal, sobre a plasticidade da animalidade em obras de distintos momentos da produção do artista, que serão abordadas nos diferentes giros traçados ao longo deste estudo: a narrativa “Regras para a direção do corpo”, de O mau vidraceiro, de 2010; a instalação

Pele, I, II e III, de 1989; Monólogo para um cachorro morto, de 2005; e a escultura Craca e

as Caixas de areia, de 1995.

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MAMMI, Ai, pareciam eternas (3 lamas), p. 19. 34