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7. TERCEIRO GIRO: NA PELE DE UM CACHORRO MORTO

7.1 Poesia (pausa), entre nós dois

Pausa, abertura: Nuno Ramos evoca a poesia que existe entre ele e um cachorro morto, pois há uma fenda na linguagem aberta pela relação que ambos estabelecem. Semelhante à disposição das imagens de Junco, a poesia é o que surge entre os dois corpos, isto é, um terceiro corpo que existe de modo a evidenciar os detalhes do corpo do narrador, a fenda que existe entre ele e o cachorro morto e a matéria que lhes circunda: “Poesia (pausa), entre nós dois. Entre nós dois meu anjo, meu nojo, minhas mãos suadas e uma fenda. Vê, onde um corpo fendido recebe outro corpo e um terceiro nasce deles, entre eles, feito de. (Pausa) Vento, mau-cheiro, delícia; sabão, carranca, monotonia.”1

Se a poesia os aproxima, os toca como um corpo estranho, o toque e o contato do artista com um cachorro morto têm um efeito de distanciamento. Mesmo com o toque e com a voz existe um “um quilômetro parado entre nós.”2 O artista se depara com a carcaça do animal, e seu olhar, ao entrar em choque com essa situação, também envolve seu corpo com tudo aquilo que ele chama de terceiro corpo, compreendendo o mau-cheiro e a possibilidade de aquele animal morto converter-se em um banal produto de limpeza, retornando para nossa higiene. Assim, após cumprir uma série de protocolos, envolvendo embalagens dispostas em prateleiras como mercadorias (alimentação, higiene, limpeza, construção), cuja descrição nos leva até O globo da morte de tudo, de 2012, ele abandona a lembrança dos nomes e dos lugares onde esteve antes do encontro com o cachorro morto. Ele chega trazendo no bolso “um pequeno pedaço do sabonete gigantesco” em que esse cachorro morto se transformará devido a uma intervenção química: a partir das reações da soda cáustica ou do hidróxido de sódio, uma carcaça é capaz de se transformar em uma “grande massa perfumada.”3

O cachorro morto da narrativa é uma imagem que permanece no olhar que o narrador projeta. A imagem, nesse caso, é uma “matilha aprisionada” ao mesmo tempo em que existe uma tentativa para que ela se converta em corpo no seguinte imperativo formulado: “vire corpo, imagem.”4 Virar corpo, nesse sentido, pode ser tornar-se casca, derme, pelo, baba, plástico. Tornar-se corpo seria adquirir superfícies, ser matéria amorfa (baba), ter uma plasticidade (plástico). Fazer com que a imagem vire corpo, esse pode ser um dos propósitos de Monólogo para um cachorro morto e de Junco, pois Nuno Ramos cria um lugar no qual a

1 RAMOS, Nuno. Ensaio geral. Projetos, roteiros, ensaios, memória. São Paulo: Globo, 2007, p. 359. 2 RAMOS, Ensaio geral, p. 360.

3

RAMOS, Ensaio geral, p. 361. 4

matéria e o sentido se reorganizam no texto e no espaço instalativo por uma operação de montagem. Trata-se de uma montagem que evidencia as ligações entre a matéria e o sentido, enfim, uma cópula, tal como foi descrita por Georges Bataille em L’anus solaire.5

Uma cópula entre o artista e um cachorro morto, entre um tronco e um cachorro morto e entre uma carcaça e um sabonete. Essa cópula, seguindo tal caminho, termina na paródia anunciada por Georges Bataille, em que uma coisa é paródia da outra,6 inclusive a própria disposição das mercadorias, ramificadas em alimentação, higiene, limpeza, construção. Assim, é a partir de Nuno Ramos que afirmamos que um sabonete é a paródia de um cachorro. Nessa paródia evidente, existe uma troca de papéis, a qual acontece no monólogo no momento em que ele cogita a possibilidade de incinerar o corpo do cachorro, colhendo em seguida suas cinzas para lançá-las pela janela do carro. Esse é o desenlace para outra paródia. No entanto, o narrador-artista se coloca no lugar do animal morto, perguntando ao cachorro se ele faria o mesmo, concluindo com uma pergunta em torno do nome: “E quando reclamassem meu corpo, a família e os amigos enlutados reclamassem meu corpo, como descobriria meu nome? Que nome daria a eles? Que nome você daria? Qual o meu nome, cachorro?”7

Com a cópula chegamos a uma irredutibilidade da paródia: o nome. Como consta na Regra XIX de “Regras para a direção do corpo”, existe um corpo mínimo do qual ninguém se livra, isto é, o nome: “Há um corpo na laje onde escreveram o nome do morto. Há um corpo na laje onde escreveram o nome do morto. Há um corpo no nome do morto – escrito ou pronunciado. Ninguém se livra desse corpo mínimo.”8 Em Monólogo para um cachorro

morto, seria essa a última tentativa de livrar-se desse corpo mínimo, o nome próprio? Ao

trocar de lugar com o animal, abandonar o nome próprio, adotando um nome impróprio, ao serem incinerados em uma terraplenagem, não se sabe ao certo se eles conseguem se livrar do corpo mínimo.

5

BATAILLE, Georges. L’anus solaire. Paris: Lignes, 2011. 6

Retomando a citação: “Está claro que o mundo é puramente paródico, quer dizer, que cada coisa que olhamos é a paródia de uma outra ou ainda a mesma coisa sob uma forma decepcionante” (BATAILLE, L’anus solaire, p. 9). “Il est clair que le monde est purement parodique, c’est-à-dire que chaque chose qu’on regarde est la parodie d’une autre, ou encore la même chose sous une forme décevante.” Quanto à cópula, L’anus solaire valoriza o movimento circular da terra, a circulação das frases e também do coito, cujo movimento faz com que a terra gire e isso gera um movimento contínuo entre ambos (o movimento rotativo e o movimento sexual): “É assim que percebemos que a terra girando faz com que os homens e os animais copulem e (como o que resulta bem como a causa que provoca) que os animais e os homens copulando fazem a terra girar” (BATAILLE, L’anus solaire, p. 12). “C’est ainsi qu’on s’aperçoit que la terre en tournant fait coïter les animaux et les hommes et (comme ce qui résulte est aussi bien la cause que ce qui provoque) que les animaux et les hommes font tourner la terre en coïtant.” Essa passagem de Georges Bataille clarifica a passagem desse texto de Nuno Ramos para uma obra que esteve montada na mesma exposição que Monólogo para um cachorro morto. A obra se chama Verme, de 2010. 7

RAMOS, Ensaio geral, p. 362. 8

A instalação de Nuno Ramos, além do texto e do vídeo, possui uma construção escultórica que consiste em “cavar” o texto, isto é, deixá-lo em baixo relevo, em duas placas de mármore branco, uma diante da outra. O texto permanece visível, mas não legível, pois ele está impresso na parte interna das placas, que têm uma distância de 25 centímetros. No canto de uma das partes externas dos blocos-páginas está o vídeo. A instalação em mármore ganha ares de túmulo para uma carcaça que, no exterior, está em um vídeo, enquanto o texto segue visível, pouco legível na sua extensão e iluminado.

Figura 17 - Monólogo para um cachorro morto (detalhe), de Nuno Ramos

Fonte: Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro

Figura 18 - Monólogo para um cachorro morto, de Nuno Ramos