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Acontecimentos milagrosos

sob o comando do almirante Jacob Willekens e do general Johane van Dorth (co-

7. Acontecimentos milagrosos

As relações do homem com o sobrenatural constituem uma parte im- portante em todas as culturas7. Os acontecimentos inexplicáveis em contex-

to religioso são geralmente vistos pelos crentes como sinais das entidades divinas e explicados como milagres e têm um poderoso efeito no aumento da fé e na motivação para a acção. Essas situações são geralmente caracte- rizadas por grande conteúdo emocional e desenvolvem nas pessoas com fé o ânimo necessário para vencerem as dificuldades do momento.

Na carta que estamos a analisar há várias situações deste tipo, come- çando por duas referências a sinais premonitórios da chegada dos holan- deses à Baía:

“Alguns dias antes da chegada dos inimigos, estando no coro em oração dois dos nossos padres, viu um deles a Cristo Senhor Nos- so, com uma espada desembainhada contra a cidade da Baía, como quem a ameaçava. Ao outro dia apareceu o mesmo Senhor com três lanças, com que parecia atirava para o corpo da igreja. Bem entenderam os que isto viram que prognosticava algum castigo grande; mas de qual houvesse de ser estavam incertos. (p. 12)

Ficou claro com a chegada dos holandeses que as experiências per- ceptivas dos padres tinham um significado que eles na altura não soube- ram identificar.

Um segundo sinal divino, desta vez de bom augúrio, é dado durante a resistência aos holandeses. Após aclamação do bispo D. Marques Tei- xeira como capitão-mor, a motivação para o combate contra os holande- ses era bastante forte, não faltando um sinal divino:

E parece que se punha o céu da nossa parte, porque no mesmo tempo viu Sua Senhoria no ar uma bandeira com Cristo crucificado de uma parte, e da outra Santo António, cuja festa naquele dia ce- lebrava a Igreja. (p. 25)

Este sinal positivo de apoio divino veio a ser confirmado em outras ocasiões como no episódio na ilha de Taparica, fronteira à Baía, onde os invasores

7 TITIEV, Misha (2009), Introdução à Antropologia Cultural. Lisboa: F. C. Gulben-

… levados pelo furor herético, deram muitos golpes numa cruz que à porta de uma ermida estava arvorada. Tornando poucos dias de- pois, os nossos, como era costume, os esperavam, e, encontrando com eles ao saltar em terra, a cruz, que antes estendia os braços de leste a oeste, se foi torcendo do meio para cima, ficando o pé imó- vel, até que os braços se puseram de norte a sul, abertos para os que pelejavam. Parece dava mostras de que os ajudava a vingar su- as injúrias. (p. 28)

Mas o milagre de maior impacto na população esteve relacionado com um crucifixo que se encontrava na capela do Colégio da Baía. Os holandeses:

arrastando-o, o lançaram de uma varanda abaixo. Caiu em terra, quebrou-se a cruz de pau e com a força do golpe se fez em peda- ços, e a imagem (coisa maravilhosa), que não era de metal mais forte, antes mais fraco, ficou tão inteira como se a terra dura, em que caiu, estivesse alcatifada de colchões ou cochins brandos. (p. 67)

A imagem de Cristo foi recuperada, passados dois dias, por dois sol- dados portugueses e posteriormente levada para Pernambuco,

… embarcou-se o soldado, levando consigo o Senhor. Chegou, e, tanto que a terra soube do grande tesouro que em si tinha, não se pode facilmente explicar o alvoroço e devoção com que todos de- sejavam de o ver e venerar. Foi depositado na casa da Santa Mise- ricórdia, enquanto se lhe restituía a sua cruz e na primeira dominga de Julho o levaram em procissão, com grande solenidade, ao nosso Colégio, onde foi colocado na Capela de Jesus. (p. 68)

O acontecimento foi bem aproveitado pelos jesuítas, dizendo Vieira que o padre reitor pregou “com grande abalo do auditório” a uma audiên- cia numerosa vinda de todas as partes devido à guerra; “concorreu toda e, por isso, foi o maior concurso que de muitos anos a esta parte se viu na terra” (p. 68).

A imagem de Cristo salva na Baía, deu origem, conforme explica Vieira ao Geral da Companhia, a um culto regular e à criação de uma confraria com quatro mordomos eleitos, que continuaram “a mesma de- voção com grande fervor” (p. 68).

Episódios deste tipo parecem ser intemporais e fortemente enraiza- dos na cultura portuguesa, como mostra o episódio verificado quase 400

Carta do P.e António Vieira ao Geral da Companhia de Jesus 193

anos depois, na catástrofe que se abateu sobre a Ilha da Madeira, em Fe- vereiro de 2010. Tendo a capela das Babosas, na freguesia do Monte, sido completamente arrasada pela enxurrada, a imagem de Nossa Senhora da Conceição foi resgatada “miraculosamente” da lama, segundo o padre Giselo Andrade, encontrando-se completamente intacta. A imagem foi depois transportada para a Sé do Funchal onde ficou exposta durante os ofícios religiosos que ali se celebraram com grande fervor.

No final, a carta de Vieira para o Geral da Companhia em Roma vol- ta a referir a importância para a Companhia da canonização do padre An- chieta, descrevendo mais um milagre que teve como cenário uma nau que saiu de Pernambuco em socorro da Baía, capitaneada por Jerónimo Ca- valcante de Albuquerque. No caminho “achou uma nau holandesa de maior porte que a sua. Travaram-se ambas a pelejar das seis da manhã até às cinco da tarde (…) Sucedeu aqui um caso milagroso, e foi que pôs o padre na câmara da popa uma relíquia do santo padre José Anchieta” (p. 69).

Segundo Vieira, a relíquia protegeu a nossa nau e “tudo se atribuiu, com muita razão, aos merecimentos do santo padre José Anchieta. Sua canonização se espera e deseja com grande alvoroço de toda esta provín- cia, assim dos da casa como dos de fora, e não duvidamos de haver de ser um grande meio para uns se emendarem e outros se melhorarem” (p. 69). 8. Conclusão

A análise do discurso de Vieira na carta ao Geral da Companhia mostra que esta encerra várias mensagens que parecem traduzir o senti- mento e as grandes preocupações dos padres da Companhia de Jesus no Brasil:

1. Mostrar que os cerca de 120 padres viviam e actuavam de acordo com os votos professados e regras estabelecidas pela Companhia. 2. Realçar o importante papel da Companhia na resistência aos ho-

landeses, combatendo-os inclusive de espada em punho, mas sem descurar a assistência espiritual aos soldados portugueses. 3. Mostrar a boa colaboração da Companhia com a Coroa, mobili-

zando os índios para ajudar nas obras públicas, financiando os padres, as despesas necessárias.

4. Mostrar que o relacionamento com os índios era óptimo e os pa- dres da Companhia faziam bem o seu papel de evangelização e

de cristianização, procurando abolir práticas contrárias à doutrina da Igreja, como a poligamia.

5. Chamar a atenção para as dificuldades causadas por alguns colo- nos que se opunham à concentração dos índios promovida pelos padres, com o objectivo de melhor os poderem escravizar e ven- der.

6. Afirmar a superioridade dos padres da Companhia e sua influên- cia na sociedade local, nomeadamente junto dos índios.

VILANCICOS NEGROS DE SANTA CRUZ DE