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ESPELHOS DE UM IMPÉRIO NA ESCRITA DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA: ESBOÇOS INICIÁTICOS

Ana Paula Avelar (Universidade Aberta)

Será através da análise da “palavra” do padre António Vieira que proponho a desocultação do modo como foi revelado o estar num “Portu- gal Restaurado” e a necessária reconfiguração de um império, o do Reino de Portugal numa Europa de Seiscentos. Este exercício realizar-se-á atra- vés da análise dos textos de Vieira e da sua acção. Por isso, e ainda que não pretenda seguir um percurso biografista, este pontuará a minha análi- se, a qual se centrará em textos do sermonário vieirino1. São os esboços iniciáticos de uma investigação aqueles que aqui brevemente assinalo, centrando-me fundamentalmente nos vectores que expõem os primeiros momentos da (re)construção de uma ideia de um império a restaurar.

1 Estes são, como, claramente enuncia, de diferentes naturezas uns: “(…) panegíricos,

outros congratulatórios, outros apologéticos, outros políticos, outros bélicos, outros náuticos, outros funerários, outros totalmente ascéticos.” João Francisco Marques, “A cronologia da pregação de Vieira” , in Margarida Vieira Mendes, Maria Lucília Gonçalves Pires, José da Costa Miranda, Vieira Escritor, Lisboa, Cosmos, 2007, p. 118. A natureza diferenciada dos mesmos constata-se na edição crítica que está a ser elaborada relativamente ao sermonário vieirino. Recorde-se aliás as palavras do próprio Vieira quando referencia a diversidade dos seus sermões no prólogo que es- creve à edição dos mesmos. Ao exortar o leitor afirma: “Além desta diversidade ge- ral[Quaresmais, Santoriais, Mariais] acharás ainda neles outra maior, pelas diversas ocasiões, em que os sucessos extraordinários da nossa idade, e os das minha peregri- nações por diferentes terras, e mares, me obrigaram a falar em público. E assim uns serão Panegíricos, outros Gratulatórios, outros Apologéticos, outros políticos, outros Bélicos, outros Funerais, outros totalmente Ascéticos; mas todos, quanto a matéria o pemitia (e o mais do que em tais casos se costuma) morais.”. Padre António Vieira,

Ao sinalizar alguns dos momentos do intenso percurso de vida deste nosso imperador da língua Portuguesa, como escreveu Fernando Pessoa, fá-lo-ei no propósito de assinalar o modo como o nosso Padre António Vieira, pelo exercício da “língua”, expôs um sentir, aquelas que foram as suas “lutas”, defendeu um estar, o dado pela justeza das ideias, e cultivou um ser, o do Homem. É esse domínio da “língua” como instrumento da História, convocador de um império e o seu consciente e incisivo exercí- cio, que aqui evoco.

Como o próprio padre António Vieira defendeu nos seus escritos tanto o tempo, como o mundo, tem dois hemisférios: sendo um superior e visível, que consubstancia o passado, outro inferior e invisível, que con- substancia o futuro. Entre estes, exactamente no meio, situa-se o hemisfé- rio onde ficam os horizontes do tempo, os quais são instantes do presente, que vai sendo vivido, espaço onde o passado termina e o futuro começa. Subscrevendo a tradição da cultura ocidental do progresso linear de um tempo histórico2, Vieira reconfigura-o, operacionalizando coordenada e

reversivelmente os acontecimentos. Fá-lo através de uma ordenação inte- ligível de sentido finalista, mas progressivo3, de um presente em que o

passado intervém e onde futuro se projecta. Exorta, o padre António Viei- ra que o Mundo ouviu por isso mesmo, o que nunca viu, lerá o que nunca ouviu, admirará o que nunca leu e pasmará assombrado do que nunca imaginou.

Evidenciemos, então, as faces especulares de um império, arquitec- tado na palavra de Vieira, perdido ou nunca por si atingido na sua acção. Exercitá-lo-emos, tendo em atenção a visualidade exemplar de um quoti- diano, e tendo sempre presente que, ao intentarmos a análise da “pala- vra”, tomamo-la reconstruída. Como assinala Aníbal Pinto de Castro, evocando Vieira naquela que foi a sua intensa preparação da impressão dos seus sermões, os rascunhos ou borrões do pregador decerto apresenta- riam esquemas simples que cumpririam a estrutura fundamental da dispo- sitio, mas não consubstanciariam a forma do discurso dito4. Como o pró-

2

Cf. Penelope J Corfield, Time and the shape of History, New Haven and London, Yale University Press, 2007, pp. 17-18.

3 Cf. Pedro Calafate, “Expressões da temporalidade em António Vieira” in, Margari-

da Vieira Mendes, Maria Lucília Gonçalves Pires, José da Costa Miranda, op. cit., p. 191.

4 Como assinala Aníbal Pinto de Castro: “Iriam desde os esquemas simples elabora-

dos como estrutura fundamental da dispositio, a versões mais extensas, passando por gradações várias.

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prio padre António Vieira evidenciou ao seu leitor, a primeira razão, ou obrigação, por que começou a tirar da sepultura os seus borrões, foi que sem a voz que os animava, ainda que ressuscitados seriam cadáveres5.

Tomando a reconstrução do instante do Vieira pregador, na palavra escrita, exposta na do Vieira escritor6, deter-me-ei sobre alguns instantes do seu visível passado, recordando os vislumbres de uma ideia de impé- rio, espelhada na sua escrita e dele resgatador. No Colégio Jesuíta da Ba- ía, onde estudou, António Vieira foi influenciado pela figura do padre Fernão Cardim, ingressando, com cerca de quinze anos de idade, no no- viciado da Companhia de Jesus, revelando-se um jovem dotado para os “trabalhos dos soldados de Deus”.

Os hábeis exercícios de dialéctica e a cuidada formação na exegese das escrituras, a par do domínio da língua latina, preparam-no para a pre- gação, desenvolvendo os seus dotes diplomáticos. O detalhe e limpidez da sua escrita levarão a que, após ter recebido a sua formação como mis- sionário, e findo o noviciado, permaneça ao serviço da Ordem. Já regente de uma cadeira de Retórica, foi incumbido da redacção da carta ânua, relatório anual dos trabalhos da Província ao Geral da Companhia. Esta, escrita em latim, relata, entre outros assuntos, o ataque holandês de 1624- -25 à então capital do Brasil.

Os horizontes do tempo, onde o passado termina e o futuro se pro- jecta, começam a ganhar forma na minúcia como os instantes do presente são noticiados neste relato. Não estamos ainda perante o projectar de um futuro: vectoriza-se, contudo, um tempo. Recorde-se que este ataque ho-

Uma coisa é certa: como acentuaram Cantel e Margarida Vieira Mendes, a forma escrita que ele próprio fixou para a maioria da sua produção concionatória não re- presenta, ou raríssimas vezes poderá representar, a forma do discurso dito.”Ibidem, p. 81.

5

Cf. Padre António Vieira, Sermões I, p. 5.

6

Evoco aqui a já referida análise de Aníbal Pinto de Castro, quando escreve sobre a preocupação de Vieira restituir os seus textos à vida da acção oratória directa: “Essa restituição, por ele levada a cabo com tão demorado e acurado labor limae, terá re- almente reconduzido aqueles sermões à vida da oralidade que lhes dera tanta quali- dade e eficácia, nos púlpitos do Brasil, de Portugal e de Roma? Estou em crer que não. O Vieira pregador transformara-se, mediante esse árduo trabalho, num Vieira escritor. A dimensão desse percurso e da metamorfose que ele implicou é que será porventura um segredo que nenhuma clavis Prophetarum será capaz de abrir. Mas não nos desgostemos muito por isso. Sermões, ditos, já ninguém os ouviria nem ou- ve. Mas estes, escritos, hão-de ser sempre um milagre do único império que nos res- ta, o da língua portuguesa. “Ibidem, p. 92.

landês participa de um projecto de conquista do Brasil levado a cabo pela Companhia Holandesa das Índias Orientais (c.1621). Esta financiou uma frota de 26 navios e 3000 soldados que, no ano de 1624, invadiram a Ba- ía, o espaço por excelência de produção do tão cobiçado açúcar brasileiro. Perante a tentativa de contenção do avanço holandês por parte da coroa dual, assiste-se a sucessivos avanços e recuos da permanência batava no Brasil. No período compreendido entre 1630 e 1632, após a conquista de Olinda, os holandeses vão ocupar metodicamente uma estreita faixa em torno do Recife, começando a usufruir dos lucros da produção açucareira, suportada pela mão-de-obra escrava de origem africana.

No ano de 1633 encontramos António Vieira a pregar a uma confra- ria de escravos negros, esboçando-se já neste sermão aquele que viria a ser o seu estilo de pregação. Não é meu propósito analisar como é que Vieira foi abordando a instituição do trabalho escravo, e de que modo se configurou na sua palavra escrita o princípio, ao tempo aceite, de cativei- ro justo. Sinalizo tão-somente que logo nos primeiros sermões vieirinos são esboçadas as lucubrações que marcariam os sucessivos discursos. Esta é aliás outra das faces especulares de um império que se reconfigura na palavra de Vieira.

Em 1640, durante a segunda tentativa holandesa para tomar a Baía e após o avanço que estes tinham conseguido (1637-1640) sob o comando de Jean-Maurice Nassau, os dotes de oratória do Padre António Vieira resplandecem, no exímio exercício da palavra, no célebre sermão “Pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda”7, proferido na

Igreja de Nossa Senhora da Ajuda. Recorde-se que, nas várias igrejas bai- anas, tinham sido proferidas idênticas deprecações.

As palavras de Vieira transmitem a angústia dos sitiados8, esboçan- do-se já aqueles que serão os contornos de uma ideia de império, o em- blematicamente uno pela “Cruz”. Subscrevo Stephen Howe quando, em

7 Este foi o último sermão dos pronunciados em todas as igrejas da cidade durante

quinze dias.

8 Só um exemplo: “Finjamos, pois, o que até fingido e imaginado faz horror; fin-

jamos que vem a Baía e o resto do Brasil a mãos dos Holandeses. Que é o que há-de suceder em tal caso? – Entrarão por esta cidade com fúria de vencedores e de here- ges: não perdoarão a estado, a sexo nem a idade. Com os fios dos alfanges medirão a todos: chorarão as mulheres, vendo que não se guarda decoro à sua modéstia; cho- rarão os velhos, vendo que não se guarda respeito às suas cãs; chorarão os nobres vendo que se não guarda cortesia à sua qualidade; chorarão os religiosos e venerá- veis sacerdotes vendo que até as coroas sagradas os não defendem; chorararão fi-

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busca de uma delimitação operativa do conceito de império, afirma que não existem duas autoridades que concordem com uma mesma básica definição. Este é um conceito que Howe considera ser intrinsecamente versátil9, ao que eu acrescentaria as noções de plástico e orgânico.

Estes três aspectos transparecem na ideia de Império no Portugal de Seiscentos, nomeadamente na própria palavra de Vieira. Logo neste ser- mão de 1640, Vieira inscreve fugazmente no seu lamento, perante a ame- aça batava, o sentir de um desígnio imperial: “Mas por vós Senhor, o que- reis e ordenais assim, fazei o que fores servido. Entregai aos Holandeses o Brasil, entregai-lhe as Espanhas (que não são menos perigosas as con- sequências do Brasil perdido): entregai-lhe quanto temos e possuímos (como já lhe entregastes tanta parte); ponde em suas mãos o Mundo; e a nós, aos Portugueses e Espanhóis, deixai-nos, repudiai-nos, desfazei-nos, acabai-nos.” 10

Nesta ideia de império ecoam subliminarmente as vozes que clama- ram, em 1572, ser D. Sebastião o poderoso rei: “(…) cujo alto império /O Sol, logo em nascendo, vê primeiro; /Vê-o também no meio do Hemisfé- rio,/ E quando desce o deixa derradeiro;(...)” 11. Ecoam igualmente as vozes que consagraram Filipe II de Espanha, I de Portugal como o senhor do Ocidente e do Oriente12.

Contudo, ainda em 1640, já depois da Restauração, esboroava-se o ideal imperial dos Habsburg que se perpetuara pelo ceptro Filipino. Na