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ITINERÁRIOS NOVELESCOS DE GASPAR PIRES DE REBELO NO MUNDO BARROCO DE SEISCENTOS

Artur Henriques Gonçalves (CELL/Universidade do Algarve)

Tanto melhor é o livro, quanto mais tem do entendimento, porque para os outros aproveita-se de outros e para estes só se aproveita de si.

GASPAR PIRES DE REBELO, Infortúnios Trágicos da Constante Florinda

Sacerdotes, teólogos e pregadores ilustres no seu tempo, Frei Gaspar Pires de Rebelo [Aljustrel: c. 1585 – Palmela (?): entre 1635 e 1648] e o Padre António Vieira [Lisboa: 1608 – Baía: 1697] são dois dos vultos maiores da prosa portuguesa de Seiscentos. Um exerceu o seu mester pe- dagógico através da edificação recreativa e exemplar da Novela, o outro da oratória sagrada e moralizadora do Sermão, congregando, em suma, o proveito e o deleite do público a que se destinavam e que o Barroco Pe- ninsular tão bem compreendia.

É pouco provável, porém, que estes dois contemporâneos se tenham alguma vez cruzado nas trajectórias da vida ou que soubessem, sequer, da existência um do outro. O primeiro, ligeiramente mais velho, terá passado toda a vida confinado à Província Transtagana e Senhorios da Ordem Mi- litar de Santiago de Espada, a que pertencia como frade regrante desde 1610. O segundo trocou muito cedo o universo cosmopolita de Lisboa pela longínqua Baía de Todos os Santos, cidades que substituirá, por pe- ríodos mais ou menos prolongados, pelas cortes da Europa e pelos sertões da América do Sul, umas vezes ao serviço diplomático da Sereníssima Casa de Bragança, outras em missões de evangelização da Companhia de Jesus, onde ingressara em 1623 como noviço. Quando o Padre Jesuíta volta a pisar a capital do Império, em 1641, é quase certo que o Frade Espatário já tivesse falecido há algum tempo na pacatez e sossego do Real Convento de Palmela.

O conhecimento de que dispomos actualmente destes dois homens da cultura seiscentista é todavia muito desigual. Se para o Padre António Vieira é fácil de traçar o seu perfil biobibliográfico, de delinear com grande precisão as diversas etapas da sua carreira de estadista e eclesiás- tico, de seguir passo a passo os momentos mais significativos da sua lon- ga e agitada existência, de entrever a dinâmica e profundidade do seu pensamento, tantas vezes povoado pela mais acesa polémica de contorno utópico e visionário, outro tanto se não pode dizer de Frei Gaspar Pires de Rebelo, de quem continuamos a saber muito pouco, ignorando-se, mesmo, as datas exactas do seu nascimento e morte.

A consulta das folhas de rosto, licenças, dedicatórias e prólogos das primeiras edições da obra, a leitura atenta da documentação arquivada nos Livros das Chancelarias Antigas da Ordem Militar de Santiago de Espada, bem como o confronto de outras fontesdirectas e indirectas dis- poníveis nos arquivos e bibliotecas nacionais e internacionais, permitiu- -nos apurar que Gaspar Pires de Rebelo nasceu em Aljustrel, por volta de 1585,1 e faleceu em local indeterminado entre 1635 e 1648,2 muito pro-

vavelmente no Arcebispado de Évora, de onde nunca se terá afastado no decorrer de toda a sua vida. É plausível que o grau de licenciado que já possuía em 1632 tenha sido obtido na Faculdade de Teologia da Univer- sidade do Espírito Santo em Évora, que terá frequentado entre 1603 e 1615/6.3 Em 1610, veste o hábito de Santiago, professa no Real Convento

de Palmela como Clérigo de Missa e recebe a Capela Curada de Nossa Senhora da Conceição, anexa à Igreja Matriz de Mértola. Em 1611, ob- tém o Benefício Curado da Igreja Matriz de Ourique, acedendo, nos anos

1

Antes de 21 de Julho de 1585, porque no dia 21 de Julho de 1610 é designado por «Clérigo de Missa» nos documentos mais antigos que o referem nos Livros das

Chancelarias Antigas da Ordem de Santiago e, depois do Concílio de Trento, a idade mínima requerida para um sacerdote se ordenar e celebrar no altar o santo sa- crifício da eucaristia ser os 25 anos.

2

Mais precisamente entre 25 de Fevereiro de 1634 e 7 de Julho de 1648, por corres- ponderem, respectivamente, às datas do último texto conhecido que Frei Gaspar Pi- res de Rebelo redigiu e assinou, a «Dedicatória a Dom Diogo Lobo», inserida no

Tesouro de Pensamentos Concionativos (1635), e da Licença mais antiga da edição príncipe e póstuma das Novelas Exemplares (1649/50).

3

Gaspar Pires de Rebelo terá entrado na Faculdade de Artes por volta de 1603 (c. 18 anos) e obtido o grau de licenciado em 1606/7 (c. 21 anos). Terá ingressado, de se- guida, na Faculdade de Teologia, conseguindo o bacharelato em 1613/4 (c. 28 anos) e a segunda licenciatura em 1615/6 (c. 30 anos), i.e., depois de ter tomado ordens sacras e ter atingido a idade mínima exigida pelo cânon eclesiástico.

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seguintes, aos Priorados das Igrejas Matrizes de Entradas (1613), Garvão (1617), Castro Verde e Aldeia Galega (1625). Finalmente, é-lhe passada a Provisão de Recebedor da Fábrica da Igreja Matriz da Vila de Castro Verde (1625).

Num curto período de dez anos, o Padre e Licenciado Gaspar Pires de Rebelo publicou uma novela de amor e aventuras peregrinas em duas partes – Infortúnios Trágicos da Constante Florinda (1625)4 e Infortúnios de Arnaldo buscando-a pelo mundo (1633),5 reeditadas em 1633 e 1635,6

– e um diálogo de edificação religiosa – Tesouro de Pensamentos Conci- onativos sobre a explicação dos Mistérios Sagrados e Cerimónias Santas do Santíssimo Sacrifício da Missa (1635).7 Depois deste ano, que não andará decerto muito longe do da sua morte, presumimos, o silêncio ins- tala-se, só sendo interrompido pela edição póstuma de seis Novelas Exemplares (1649-1650),8 ao cuidado de um devoto e anónimo amigo,

que as terá resgatado de uns papéis deixados pelo escritor e sacerdote.9 Pouco mais se poderá acrescentar ao registo biobibliográfico de Gaspar Pires de Rebelo, para além da particularidade de estar circunscrito à vigência da Monarquia Dual, que não refere uma única vez em nenhum dos seus textos.10 As novelas, diálogo e prólogos que compôs fazem tam-

4 Desconhecemos a existência de exemplares da editio princeps de 1625, publicada

em Lisboa por Giraldo da Vinha. Vd. Gaspar Pires de Rebelo (1633), Infortúnios

Trágicos da Constante Florinda, segunda impressão revista pelo autor, Lisboa, An- tónio Álvares [1625].

5

Desconhecemos a existência de exemplares da editio princeps de 1633, publicada em Lisboa por António Álvares. Vd. Gaspar Pires de Rebelo (1635), Segunda Parte

da Constante Florinda em que se trata dos infortúnios que teve Arnaldo buscando- -a pelo mundo, Segunda impressão revista pelo autor, Lisboa, António Álvares [1633].

6

Ambas publicadas em Lisboa por António Álvares. Vd. notas anteriores.

7

Vd. Gaspar Pires de Rebelo (1635), Tesouro de Pensamentos Concionativos sobre

a explicação dos Mistérios Sagrados e Cerimónias Santas da Santíssimo Sacrifício da Missa e significação das vestiduras sacerdotais com que ele se celebra, ordena- do em forma de diálogo a um Sacerdote e seu Ministro. Lisboa: António Álvares [1635].

8

Vd. Gaspar Pires de Rebelo (1649-1650), Novelas Exemplares. Terceira Parte. Compostas pelo autor das duas partes da Constante Florinda, Lisboa, António Álva- res [1649-1650].

9

Vd. «Prólogo aos Leitores», da edição supra citada.

10

A referência mais próxima à união dinástica das duas coroas hispânicas de Portu- gal e Castela encontra-se documentada na Novela Exemplar Quinta intitulada o

bém tábua rasa dos eventos históricas que antecederam ou consubstancia- ram o processo de Restauração de Portugal como entidade política autó- noma de Castela. Tudo leva a crer que em 1637,11 quando se dão as «Al- terações de Évora», cidade que tão bem conheceria, o autor e teólogo alentejano já tivesse dado a alma ao criador.

Gostaríamos de ver o Padre António Vieira a citar Frei Gaspar Pires de Rebelo nas centenas de Cartas que compõem a sua Epistolografia co- nhecida. Mas isso não acontece uma única vez. Aliás, seria pouco prová- vel que tal se pudesse verificar, visto que, à excepção da «Ânua da Pro- víncia do Brasil», composta na Baía em 1626, todas as restantes missivas estão datadas de anos muito próximos ou posteriores ao da morte do frade regrante da Ordem de Santiago.12 A situação inversa seria ainda menos

verosímil, pois, segundo julgamos saber, Frei Gaspar Pires de Rebelo só terá cultivado as «cartas amatórias ou namoradas»,13 que incorporou, às

dezenas, na produção novelesca curta e longa.14

O sucesso que a obra de ficção alcançou ainda em vida do autor atravessará todo o Barroco, esmorecerá um pouco com o advento do Ilu- minismo, para voltar a ser redescoberto pela Pós-Modernidade na vira- gem do milénio. No decurso desta longa carreira de contactos mais ou menos intensos com o público leitor, os três títulos novelescos do sacer-

Desgraciado Amante Peralvilho, quando o pícaro Peralvilho de Córdova, ao rela- tar o início da sua digressão pelo nosso país como «Moço de Comédias», afirma, P. II,fol.º 200,da ed. cit.: «Fuime com elles [comediantes], & dahi a poucos dias nos partimos para Portugal, que he onde elles tem o ganho mais certo pera passar a vida; ainda que menos seguro pera sustentar a honra: mas como esta he boa de contentar, com ella dissimulaõ, & com a outra contemporizão».É verdade que Gaspar Pires de Rebelo não envereda por uma crítica clara e inequívoca à política cultural seguida pela Monarquia Dual, mas, mesmo assim, não deixa de recriminar a forma passiva como o público português aceitava a falta de autonomia teatral face à do invasor castelhano.

11

Vd. supra, nota 2.

12

A segunda mais antiga foi enviada de Paris «Ao Marquês de Nisa», a 4 de Março de 1646. Vd. Padre António Vieira, Cartas, nova edição revista do texto publicado em 1925 pela extinta Imprensa da Universidade de Coimbra, coordenada e anota- da por J. Lúcio de Azevedo (Lisboa, Imprensa Nacional, 1970, tomo I, pp. 73-76).

13 Designação seguida por Francisco Rodrigues Lobo, na Corte na Aldeia e noites de Inverno (1619), diálogo III, p. 104 da edição de José Adriano de Carvalho (Lis- boa, Presença, 1991).

14 Mais precisamente 68, das quais 15 nos Infortúnios Trágicos da Constante Flo- rinda, 24 nos Infortúnios de Arnaldo e 29 nas Novelas Exemplares.

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dote e escritor alentejano atingiram uma confortável trintena de reedições completas até aos nossos dias.15 As últimas impressões dos Infortúnios Trágicos da Constante Florinda e de Arnaldo buscando-a pelo mundo saíram muito recentemente dos prelos lusófonos e em datas muito chega- das nas duas margens do Atlântico, a portuguesa em 200516 e a brasileira em 2006.17

O mesmo se não pode dizer da sua faceta devota de teólogo e prega- dor professo. Diferentemente do Padre António Vieira, Frei Gaspar Pires de Rebelo não publicou um único sermão dos muitos que terá proferido nos vários priorados das igrejas matrizes alentejanas onde exercia as fun- ções de clérigo de missa, curador de almas e sacerdote, não se conhecen- do, sequer, o esboço manuscrito de nenhum deles. É pena que o anónimo editor das Novelas Exemplares não nos tenha fornecido, no «Prólogo aos Leitores» da obra póstuma, uma notícia mais pormenorizada da natureza dos «papéis» que sobreviveram à morte do escritor e seu «particular ami- go». Algum texto de natureza mais devota haveria com certeza. Quanto ao Tesouro de Pensamentos Concionativos, diálogo travado entre um sa- cerdote e o seu ministro sobre a explicação dos mistérios sagrados e sig- nificação das vestiduras sacerdotais, completamente esquecido nos nos- sos dias, o seu historial resume-se a uma única impressão, de que pode- mos encontrar inúmeros exemplares nas bibliotecas portuguesas e estado- -unidenses. O êxito da obra não terá ultrapassado, por certo, os limites religiosos em que o seu autor se movia, não tendo despertado a atenção nem dos leitores nem dos críticos coetâneos, a ponto de esgotar a edição e promover a sua reedição.

O grande contributo do autor de Aljustrel reside, por conseguinte, na área dos «livros de novelas», sobretudo por ter sido o introdutor absoluto da «novela bizantina» e da «novela picaresca» nas letras nacionais, cujos protótipos seriais tiveram origem europeia, nos séculos I e XVI da era cris- tã, respectivamente com a helenística História de Quéreas e Calírroe, de Cáriton de Afrodísias, e com a renascentista Vida de Lazarillo de Tormes y

15

Num total de vinte e nove edições completas da produção novelesca (dezoito dos

Infortúnios Trágicos, onze das seis Novelas Exemplares e duas da O desgraciado

amante), contra uma única do Tesouro de Pensamentos Concionativos.

16

Vd. Gaspar Pires de Rebelo (2005), Infortúnios Trágicos da Constante Florinda, edição de Nuno Júdice, Lisboa: Teorema.

17 Vd. Gaspar Pires de Rebelo (2006), Infortúnios Trágicos da Constante Florinda,

de sus fortunas y adversidades (1554), de autor anónimo castelhano. Além disso, foi um dos grandes cultores barrocos da novela curta costumbrista, ou de costumes, mais conhecida por «novela cortesã», espécie tardia da novella italiana trecentista, desenvolvida em primeiríssima mão por Gio- vanni Boccaccio no Decamerone (1353) e imitada, depois, por todas as grandes literaturas do velho continente.

Torna-se particularmente difícil identificar as fontes exactas segui- das por Frei Gaspar Pires de Rebelo na concepção das duas partes dos Infortúnios Trágicos, que enquadramos no âmbito genérico das novelas de amor e aventuras peregrinas seiscentistas, tão em voga então na Penín- sula Ibérica.18 Afastados, de imediato, os relatos gregos anteriores à «Se- gunda Sofística» e os criados pelo «Renascimento Bizantino», por terem conhecido uma divulgação impressa posterior ao falecimento do escritor lusitano, resta-nos a hipótese de este ter seguido tanto o modelo helenísti- co canonizado por Aquiles Tácio e Heliodoro19 na fase final do «Período Imperial» de Roma, como o modelo hispânico recriado por Lope de Vega e Miguel de Cervantes20 no apogeu dos «Séculos de Ouro» de Castela. Em contrapartida, o papel desempenhado pela obra novelesca do autor alentejano no panorama literário nacional é inquestionável, não só por ter sido a primeira novela desse tipo a ser redigida em português,21 mas, aci-

ma de tudo, por ter servido de ponte de ligação entre o romance antigo gre- co-bizantino e o romance moderno europeu.

Estruturalmente, os Infortúnios Trágicos seguem de muito perto o paradigma canónico do género referido, dado relatarem o encontro- -separação-reencontro de um jovem e fiel par de namorados: Florinda e Arnaldo. A morte inesperada dos dois após o casamento constitui, contu- do, uma autêntica libertação dos «infortúnios trágicos» dos bens munda- nos. Ao optar pela vitória da «constância» do amor em vida dos protago-

18 O grupo serial iniciou-se no espaço ibérico em 1552, com Los Amores de Clareo y de Florisea y las tristezas y trabajos de la sin ventura Isea, natural de la ciudad

de Éfeso de Alonso Núñez de Reinoso, imitação parcelar, paráfrase ou tradução castelhana do Leucipe e Clitofonte de Aquiles Tácio, a que se seguirão, em 1565 e 1582, as duas versões da Selva de aventuras de Jerónimo de Contreras.

19 Vd. Aquiles Tácio, Leucipa e Clitofonte (séc.

II d. C.); e Heliodoro, Etiópicas ou

Teágenes e Cariclea (séc. III d. C.).

20

Vd. Lope de Vega, El Peregrino en su Patria (1604); e Miguel de Cervantes, Los

Trabajos de Persiles y Sigismunda. Historia Septentrional (1617).

21 Exclui-se, obviamente, o registo das habituais citações em latim e a transcrição de

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nistas e ao prolongar a sua união para além da morte, Frei Gaspar Pires de Rebelo consegue recuperar – como sacerdote atento que decerto seria e à luz da doutrina pós-tridentina então vigente – o sentido trágico da própria existência humana, visto ser através do amor que se procede à transfor- mação da vida que é morte (esfera dos homens) em morte que é vida (es- fera de Deus). Ironicamente, o exemplo da morte conjunta dos dois heróis novelescos – inexistente na tradição do romance antigo grego e bizantino e no moderno castelhano – resulta numa forma peculiar de libertação su- perior, pois se em termos humanos os separa, em termos divinos acaba por os unir para todo o sempre, funcionando, neste sentido, como uma autêntica passagem de efemeridade da vida material para a eternidade da vida espiritual.

O Licenciado Gaspar Pires de Rebelo comprova, ainda, estar a par das tendências literárias do barroco seiscentista ibérico: primeiramente, por ter sabido ultrapassar o mero padrão arcaico das «novelas sentimen- tais», que tanto sucesso haviam obtido na passagem do período gótico para o renascentista; depois, por ter conseguido antever a posterior trans- formação da matriz clássica dos «relatos de amor e aventuras peregrinas» nos novos paradigmas barrocos contidos nos «relatos alegóricos» com- postos a lo divino. Aqueles em que a passagem efémera dos homens- -mulheres pelos sendeiros e escolhos da vida terrena mais não significa- vam, afinal, do que o prelúdio da sua entrada gloriosa nas esferas celesti- ais, para assim poderem gozar a eterna presença de Deus.

A inclusão de vinte e cinco «histórias periféricas» na estrutura narra- tiva da «história nuclear» dos Infortúnios Trágicos permite ao seu criador realçar as superiores qualidades do par central de heróis novelescos, atra- vés do recurso à técnica do mise en abyme, ou de duplicação de relatos, e demonstrar as suas reais capacidades de novelista multifacetado. Essa sua aptidão nata para a recreação secular será posta ao serviço da efabulação de recorte essencialmente cortesão, com incursões muito expressivas pelo universo pastoril, cavaleiresco e mourisco. Se, por vezes, não consegue resistir ao apelo exercido pelos enredos típicos de sinal sentimental, logo matiza esta tendência, como bom conhecedor que era das preceptivas e gosto estético da centúria, com a travessia constante dos trilhos exempla- res da ascese eremítica, da práxis académica, dos avisos sentenciosos e dos adágios graciosos. No final, o leitor é sempre confrontado com o grande à-vontade do escritor na arte de inventar histórias e de as pôr à disposição dos leitores, procedendo, por sistema, à reunião do útil e do agradável, do proveito doutrinário e do deleite literário.

A obra póstuma de Gaspar Pires de Rebelo engloba seis novelas cur- tas e autónomas, que os promotores da impressão designaram, com algum sentido de oportunidade editorial, de Novelas Exemplares,22 provavel- mente por influência da colectânea homónima de Miguel de Cervantes, publicada em Madrid no ano de 1613. Cinco delas – Desgraças venturo- sas, Os enganos mais ditosos, Os Gémeos de Sevilha, A custosa experi- ência e A namorada fingida – integram-se no grupo serial das «novelas cortesãs», visto a intriga de todas elas ter como pano de fundo as diferen- tes cortes e as grandes cidades peninsulares seiscentistas (Lisboa, Coim- bra, Barcelona, Madrid, Valhadolid, Toledo…), cuja vida buliçosa, aven- tureira e singularmente erótica retratam. A restante – O desgraciado amante Peralvilho – insere-se, em contrapartida, no grupo serial das «no- velas picarescas», dado ser arquitectada como um testemunho autobiográ- fico oral, apresentado pelo pícaro Peralvilho de Córdova, um moço de muitos nomes, de muitos amos e de muitas manhas, através de um discur- so de cariz evasivo e exemplar, que problematiza e redimensiona, realista e ironicamente, o conceito coetâneo de honra.

Já referimos a pouca probabilidade de o Padre António Vieira e de Frei Gaspar Pires de Rebelo se terem alguma vez avistado ou tido notícia um do outro. É que se o primeiro viajou pessoal e incessantemente pela Europa e pela América, o segundo limitou-se a pôr as suas personagens a viajar por ele. Curiosamente, muitos dos quadrantes percorridos pelo pre- gador missionário serão palmilhados pelos protagonistas imaginados pelo pregador novelista. A vida tem destas coisas. A ficção confunde-se, mui- tas vezes, com a própria realidade. Não esperemos, todavia, que os rei- nos, condados, principados, ducados e grão-ducados, repúblicas, senho- rios, estados e territórios, cidades e aldeias, estradas e caminhos de Por- tugal, Espanha, França, Itália, Flandres, Grã-Bretanha, Turquia e Berbe- ria; que as Índias de Castela e de Portugal; que o Canal da Mancha e os Mares Oceano, Mediterrâneo, Adriático, Tirreno e Egeu referidos nos di- versos núcleos narrativos da obra em apreço, ou que as acções localizadas