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VIEIRA PREGADOR BARROCO Ana Hatherly

(CHC-IdEP/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa)

O título geral deste ciclo de conferências dedicadas à obra do Padre António Vieira – O Tempo e os Seus Hemisférios – a meu ver, ilustra bem uma tentativa de abarcar a variedade de áreas abrangidas pela obra deste prolífico autor que, no seu conjunto, é um verdadeiro universo.

Outro modo de abordar a representatividade da obra de Vieira seria descrevê-la como produto da vida de “um homem do seu tempo”, já que verdadeiros expoentes do seu tempo são sempre os grandes autores de obras e de actos que, por isso mesmo, “se vão da lei da morte libertando”. Vieira é tudo isso e, para nos restringirmos aqui a uma breve abor- dagem de uma das suas facetas de prosador barroco, digamos que ele foi não só um verdadeiro homem do seu tempo mas também uma espécie de paradigma poliédrico da sociedade do seu tempo.

Maria de Lourdes Belchior, na sua introdução a Vieira Escritor, co- lectânea de textos de vários autores sobre a obra publicada do pregador, descreve-o como homo universalis considerando o seu legado ilustrativo tanto de uma invulgar dimensão criadora pessoal como de uma época histórica da cultura portuguesa particularmente conturbada. (Belchior, 1997)

Durante os vários anos da minha vida que dediquei ao estudo da obra de alguns autores do período barroco português, incluindo Vieira, o meu ponto de partida foi sempre o de orientar a minha investigação no sentido de observar a sua representatividade do ponto de vista da História das Ideias, da História das Mentalidades, onde se inscrevem a imagina- ção, a sensibilidade, o excesso, o delírio das representações e dos princí- pios defendidos, que poderiam ir do sublime ao grotesco, do mais elevado ao mais terra-a-terra, do mais inspirado ao mais vulgar, do didáctico ao

recreativo, do político ao dogmático, enfim, o seu universo multifacetado que permitia que todos os excessos coexistissem sem se contrariarem, porque uns existiam em consequência dos outros.

Dados os limites de espaço e de tempo que aqui se me impõem, esta será apenas uma breve incursão na polifacetada obra que são os Sermões de Vieira, escolhendo para esta palestra o tema da presença da mulher na sociedade da época, pelo pregador neles tratado e por mim já abordado noutro lugar (Hatherly, 1997), a que agora se deve acrescentar a recentís- sima publicação de O Padre António Vieira e as Mulheres, de José Edu- ardo Franco e Maria Isabel Morán Cabanas, que aborda também esse te- ma com grande profundidade.

Como personagem, a mulher surge frequentemente nos Sermões de Vieira, certamente devido ao facto de o pregador se basear tanto na Histó- ria Sagrada como na História Universal, ambas cheias de heroínas de di- versos tipos. Outro motivo a considerar será o elevado número de mulhe- res que constituíam o seu público, tanto religiosas como seculares, as quais, segundo ele, e dependendo das situações, careciam de elogio, aviso ou admoestação.

De uma maneira geral, a atitude de Vieira para com a mulher é a cor- rente no seu tempo: de um lado ela é Eva, a tentadora, de outro é Maria, a salvadora. E cito:

A mãe do género humano meteu no mundo a pena e o pecado; a mãe do Redentor trouxe a ele o merecimento e a graça. Eva feriu, Maria sarou: Eva foi a causa da enfermidade, Maria da saúde; Eva da morte, Maria da Vida. E a razão desta diferença é, diz Santo Agostinho, porque Eva inventou a desobediência dos preceitos di- vinos, e Maria ensinou a obediência. (Vieira, 1959: vol. X. 415) Portanto, o mal que a Mulher tradicionalmente representa diz respei- to à sua responsabilidade na Queda, uma vez que o pecado original foi o que “perdeu” o Homem.

No Sermão de Santo António, o pregador interroga:

Que causas ou cousas houve tão poderosas que puderam arrancar do Paraíso a Adão? As duas que dizemos: a mulher e o alheio. A mulher porque foi Eva que o fez comer o pomo vedado; o alheio porque sendo de Adão todas as cousas que havia no mundo, só o pomo vedado não era seu. Se o alheio botou a perder Adão no mundo quando todas as cousas eram suas, que será a quem tem pouco de seu? Se a mulher botou a perder Adão quando não havia

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no mundo outra mulher, que será quando há tantas e tais! (Idem: vol. VII, 287)

E depois de uma longa dissertação sobre as virtudes do matrimónio como forma de minorar a tentação a que o Homem está sujeito, citando Tertuliano, acrescenta:

Posto que morreu há tantos séculos aquela Eva, vive contudo em toda a mulher a sentença com que Deus a condenou em todo o mesmo sexo; e assim viverá sempre, e será imortal nele, isto é, em ti, o castigo da mesma culpa. Tu és a porta por onde entra o Diabo ao Homem. (Ibidem: 242)

Eis que surgem em destaque as duas presenças recorrentes tanto na parenética barroca como em muitas outras formas de expressão do fascí- nio que ambas exerceram na época, confirmando a forma obsessiva como foram pensadas e sentidas, admiradas e temidas.

Na sociedade barroca, que era a do Padre António Vieira, em que o apelo aos sentidos era determinante para o processo de persuasão, propa- ganda e atracção do indivíduo à ordem social, a pregação era um meio de penetração nas consciências e de controlo psicológico. Assim, para além das figuras femininas extraídas da História Sagrada ou secular, antigas ou contemporâneas, para além das orações gratulatórias ou fúnebres, para além dos 30 Sermões do Rosário, há um caso em que Vieira se dirige di- rectamente a um público feminino específico que é exemplar de alguns dos efeitos a que o pregador recorre para atingir devidamente o seu audi- tório: trata-se do Sermão do Demónio Mudo, pregado em Lisboa, no Mosteiro de Odivelas, em 1651. (apud Vieira, 1959: Vol. III, 317-351)

Tanto quanto se sabe, o Padre António Vieira pregou nesse Mosteiro pelo menos quatro vezes: em 1643, em 1644, em 1651 e em 1653. O Sermão do Demónio Mudo, constituído por XI capítulos, tem por mote uma sentença de Lucas (Erat Jesus ejiciens daemonium, et illud erat mutum (Lc. XI:14) e entre os sermões pregados às freiras de Odivelas será dos que mais directamente se dirigem à sensibilidade feminina da época, já que o Demónio é considerado um perseguidor incansável dos crentes e habitante infalível de mosteiros e conventos. Diz o pregador:

O Demónio como espírito soberbo, atrevido e sem temor nem re- verência dos lugares sagrados, entra pelos claustros religiosos, pas- seia os corredores e dormitórios, e por mais fechadas que estejam as celas, sem gazua, como ser ladrão, se mete e mora nelas muito

de assento. Por sinal, Senhoras, que muitas o deixastes na vossa ce- la, e o achareis lá quando tornardes.

Criado o necessário suspense, o pregador cita um exemplo ocorrido em Itália com um visitador que, tendo por ordem do Papa Inocêncio X inspeccionado alguns conventos femininos, “não conseguira arrancar das paredes e muito menos dos afectos um objecto essencial: o espelho.” (Ibidem). E relatando ao Papa a sua experiência, o visitador concluíra: “enquanto uma religiosa se quer ver ao espelho, não tem acabado de en- tregar o coração ao Esposo do Céu, e ainda lhe ficam nele alguns ressai- bos do amor e vaidade do mundo”.

Tendo tido conhecimento dessa ocorrência, o pregador afirma: Com esta tão autêntica e bem fundada notícia, fiquei eu persuadido a uma coisa e me resolvi a outra. A primeira a que fiquei persuadi- do, com vénia de tão venerável comunidade, é que nos conventos e celas das religiosas o espelho é o demónio mudo. A segunda a que juntamente me resolvi, foi que vindo a Portugal havia de publicar e pregar neste caso no primeiro lugar a que pudesse pertencer.

Declarado o argumento do sermão, o pregador entrega-se a um longo circunlóquio sobre a origem do espelho à luz da sabedoria antiga para depois explicar: “O Demónio primeiro foi anjo, e depois Demónio: o es- pelho, primeiro foi instrumento do conhecimento próprio, e depois do amor-próprio, que é a raiz de todos os vícios”. Assim, o grande perigo do espelho é o da revelação da formosura: já que Lúcifer, vendo-se ao espe- lho, “e contemplando nele a sua formosura, maior sem controvérsia, que a de todos anjos, ficou tão namorado e tão enlevado na mesma (…) que não se contentou com menos que ser como Deus”. E mais adiante:

O espelho é um demónio mudo, de pior casta que os outros: os ou- tros lançam-se com orações e jejuns (…) porém estes são muito mais rebeldes e obstinados. Estão tão pregados à parede e muito mais ao coração, que orará e jejuará a dona da casa quanto quiser- des e muito mais do que quiserdes, mas o espelho não há-de ir fo- ra.” (Idem: 322)

O espelho é insidioso: mudo adula, mudo encarece, mudo atrai, mudo afeiçoa, mudo enfeitiça, mudo engana, mudo mente e des- mente juntamente, negando o que é e fingindo o que agrada. (Ibi-

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Por seu turno, “a formosura é um engano e uma mentira muda. De sorte que deste mudo e desta muda se representa no teatro do espelho um diálogo que se ouve sem voz, tão aparente à vista, tão pintado ao desejo e que tanto persuade, engana e tenta como o mesmo Demónio” (Ibidem: 327).

Tendo fustigado o seu auditório com estes eloquentes argumentos, o pregador vai dirigir-se directamente às freiras de Odivelas, como religio- sas e como mulheres, interpelando-as assim:

É possível que uma virgem consagrada a Deus e desposada com o filho de Deus, há-de estar tão casada com o espelho? É ela mulher? É ela filha de Eva? Pois de lá vem esta inclinação e não é muito que tenha lançado tão fortes raízes

E acrescenta:

Diz Tertuliano que quando Eva foi criada no Paraíso, se já se tives- sem inventado as lisonjas com que se costuma enfeitar a formosu- ra, e se já houvesse também os espelhos aos quais fosse lícito en- ganar e mentir, como hoje fazem, também Eva se havia de deixar enganar deles.

Abrimos aqui um parêntese para lembrar que hoje sabemos que o Mosteiro de Odivelas também tinha as paredes dos corredores cheias de espelhos e que as celas das freiras, segundo o que o Padre Manuel Ber- nardes escreve na sua Nova Floresta (vol. V), “pareciam um armazém de bric-a-brac” “onde certamente não faltavam os espelhos…”

Voltando ao Sermão do Demónio Mudo, torna-se evidente que a maior preocupação das mulheres é a da formosura – ou melhor, a vaidade – e, acrescenta o pregador, “por isso há tantas no mundo e fora do mundo que gastam horas e perdem os dias inteiros em se estar vendo, revendo e contemplando no espelho, como se não tiveram nem esperaram outra gló- ria.” (Ibidem: 330)

Fazendo o ponto da situação do muito que ficou exposto (e que aqui não podemos reproduzir), concluindo o seu sermão, o pregador não pode- ria deixar de insistir na fragilidade do espelho, como feito de vidro que é, e do seu natural paralelo com a fragilidade da formosura, e assim interro- ga:

Que cousa é a formosura, senão uma caveira bem vestida, a que a menor enfermidade tira a cor, e antes de a morte a despir de todo os anos lhe vão mortificando a graça daquele exterior e aparente

superfície de tal sorte que, se os olhos pudessem penetrar o interior dela, o não poderiam ver sem horror?” (Ibidem: 350).

Eis como se chega do sermão ao barroquíssimo quadro da Vanitas! Porém, e para terminar numa nota positiva, o pregador acrescenta que não é seu intento

… desacreditar a formosura, nem a estimação ou o desejo dela. Antes, para acabar sem agravo ainda dos olhos mais apaixonados, e sem variar, nem dizer nada do que fica dito, digo por mim e exor- to a todas as fieis esposas de Cristo, que, para agradar a seu divino Esposo, amem, desejem, e procurem com todo o afecto conservar e aumentar a formosura; mas não a frágil, senão a constante; não a que descompõe a enfermidade, senão a que compõe a saúde, não a que diminuem os anos, senão a que dura mais que os séculos, não a que é despojo do tempo, senão a que há-de triunfar na eternidade”. (…) “Fiquem agora considerando os olhos mais cegos, se se deve deixar um espelho, que é o Demónio, por um espelho que é Deus”. E para concluir esta minha breve dissertação vou ler um soneto de Lope da Vega Carpio, contemporâneo do Padre António Vieira, que ilus- tra bem a ideia generalizada que na época se fazia da personalidade da mulher:

Es la mujer del hombre lo mas bueno Es la mujer del hombre lo mas malo; Su vida suele ser, y su regalo, Su muerte suele ser, y su veneno. Es vaso de bondad, y virtud lleno, A un aspid Lybio su ponzoña igualo; Por bueno, al Mundo su valor sefialo, Por falso, al Mundo su valor condeno. Ella nos dá su sangre, ella nos cria; No ha hecho el Cielo cosa mas ingrata Es un Angel: y a vezes una harpia. Tan presto tiene amor, como maltrata; Es la mujer, al fin, como sangria, Que a vezes dá salud, y a vezes mata. Muito obrigada pela vossa atenção.

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Bibliografia

BELCHIOR, Maria de Lourdes (1997), Vieira Escritor, Lisboa, Edições Cosmos.

FRANCO, José Eduardo, Maria Isabel Morán CABANAS (2008), O Padre

António Vieira e as Mulheres, Porto, Campo das Letras.

HATHERLY, Ana (1997), O Ladrão Cristalino, Lisboa, Edições Cosmos. VIEIRA, Padre António (1959), Sermões (15 vol.), Porto, Lello & Irmão.

O PADRE ANTÓNIO VIEIRA PRECURSOR